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Capítulo 1 - Laucian

Chovia muito naquela tarde e Laucian se abrigava abaixo de uma grande e solitária árvore. Após seis dias na estrada sob calor intenso, aquela chuva era até reconfortante, apesar de ser inconveniente. Laucian não era estranho a viagens, mas aquela era particularmente longa e já ansiava chegar em seu destino. A estrada cortava uma planície com poucos lugares que lhe oferecessem alguma sombra ou abrigo, a chuva parecia que demoraria a parar, por isso precisava continuar andando ou teria que dormir em local desprotegido.

Laucian ainda era, obviamente, mais velho que a maioria dos humanos, porém, como um elfo que havia vivido mais ou menos setenta anos, sua aparência era a de um jovem adulto. Tinha cabelos castanhos, longos e cheios de poeira da estrada, olhos castanhos claros, quase amarelos e pele clara corada pelo sol. Carregava consigo um bandolim à tiracolo, um bornal com seus poucos suprimentos de viagem, um arco longo, uma aljava com flechas e uma espada longa na bainha pendurada à esquerda da cintura. Não era muito bom manejando a espada, a trazia mais por precaução, Preferia evitar os conflitos ou, caso fosse realmente necessário, usar o arco. Às vezes o arco e o bandolim trocavam de posição e ele entoava belas canções pela estrada. Procurava usar sempre roupas simples, uma camisa de algodão sob um colete de couro batido sem mangas para não atrapalhar os movimentos e uma capa verde desbotada longa e larga, com capuz e mangas compridas que mantinha tudo o que carregava seco, mesmo durante as chuvas mais fortes.

Quando criança, Laucian costumava fugir de casa para visitar vilas e fazendas próximas. Sempre apreciou muito a companhia tanto de elfos quanto de humanos e, tão logo atingiu a idade adulta, abandonou a pequena vila élfica na fronteira de Mihallian e aderiu a estrada como seu novo lar. Adorava conhecer novas cidades, novas pessoas e escutava com atenção cada história para que pudesse passá-la adiante. Usava bastante da sua habilidade musical para conseguir dinheiro tocando em tavernas ou em praças, trocando seu virtuosismo por um punhado de moedas, hospedagem, caronas e, algumas vezes, até comida e bebida. Não almejava muito além disso e assim era sua vida, uma canção de cada vez.

Apreciava belas mulheres e com elas demonstrava uma habilidade ímpar com as palavras. Sabia sempre o gracejo certo, o momento do toque, a canção a ser cantada e raramente terminava uma noite sem companhia, se assim o desejasse. No entanto, não tinha vocação para se prender, afinal sua vida seguia sem rumo, guiada pelo acaso e segundo os caminhos que Zellyr mandasse.

O fim da tarde se aproximava e Laucian estava molhado, seus suprimentos de viagem estavam se esgotando e não tinha onde passar a noite. Não havia calculado bem a distância e caminhar em pleno verão era exaustivo até para alguém acostumado a viagens. Contava que encontraria caravanas de mercadores e poderia pedir uma carona, mas nem essa sorte ele teve.

Antes que a noite tomasse por completo o céu, avistou de longe uma pequena carruagem puxada por um cavalo branco que vinha na direção contrária. Havia dois homens, um nas rédeas e outro ao seu lado empunhando uma besta carregada com o virote. Laucian imediatamente trocou o arco pelo bandolim, achou que era melhor não parecer uma ameaça. Ao se aproximarem, o elfo ficou no canto da estrada dando passagem livre à carruagem, mas sinalizou e se apresentou aos homens.

— Boa tarde, senhores. Sou Laucian Galanodel e venho de Mihallian. Saberiam me informar a quanto tempo estou de chegar em Florensia? — O leve sorriso no rosto do elfo tirou um pouco da nítida tensão demonstrada pelo homem armado.

— A pé? — desdenhou o guia da carruagem. — Pelo menos mais um dia. — Sua voz não soou muito amigável. O outro permaneceu calado, apenas observando os arredores.

Havia um antigo conflito entre os orcs e Weissen, o reino dos homens no oriente do continente. Os orcs recuperaram todas as terras que haviam perdido em guerras anteriores e avançaram ainda mais. Depois de anos de tensão, outras hordas de orcs invadiram a fronteira leste de Ancelon. Este era o principal motivo de Laucian ir pela primeira vez tão longe, mas mesmo ali podia sentir a tensão do conflito. Isso se devia à informação difundida de que todos os orcs que trabalhavam em Ancelon seriam aceitos como guerreiros caso aderissem à causa de sua raça. O bardo achou melhor seguir sua viagem e deixar que os homens seguissem seu caminho.

— Obrigado, senhores. Tenham uma boa viagem.

Ao passar pela carruagem, notou duas flechas fincadas na traseira e marcas retilíneas no entorno, sinais claros de que havia passado por um ataque. O elfo passou a se preocupar, além do mau tempo, com a possibilidade de encontrar orcs à procura de encrenca. Aproveitando-se da resiliência natural dos elfos contra exaustão e sono, prosseguiu enquanto pôde com apenas a tênue claridade do crepúsculo como guia.

Laucian havia viajado o suficiente para perceber bons locais de descanso, assim como os melhores caminhos para ir vagando, bandolim em mãos e canções nos lábios. Este era um desses caminhos que normalmente os inspirava, contudo a situação obviamente havia mudado. Trocou o instrumento pelo arco, dedilhou suas flechas na aljava para garantir que caso fosse necessário, nenhuma delas ficaria presa. Seus passos ficaram mais rápidos, longos e pesados, seus olhos percorriam os arredores e suas orelhas pontudas ficaram atentas a qualquer desafino da natureza.

Andou enquanto conseguiu noite adentro, mas o alvorecer ainda estava longe, assim como seu destino, enquanto o cansaço aumentava e diminuía o seu ritmo. Encontrou uma uma árvore frondosa o suficiente para servir de acomodação, escalou-a e prendeu-se ao topo para não cair durante seu sono. Quando garantiu que os únicos sons eram os animais, adormeceu.

Havia acabado de pegar no sono quando o som de passos pesados, metal batendo e vozes graves o acordaram. Movendo-se silenciosamente deslizou pelos galhos para observar melhor o que era. Lá estava um grupo de aproximadamente dez orcs marchando rapidamente pela planície. Não pareciam se preocupar com o barulho que faziam e pareciam bem humorados. Alguns vestiam roupas de couro, outros tinham cotas de malha e um possuía uma armadura de placas de metal e um elmo adornado com chifre de bode, todos portavam armas, algumas enferrujadas e outras novas e brilhantes. Se Zellyr enviava maus presságios, aquele era inegavelmente um.

Não havia muito o que ele sozinho pudesse fazer, então, movimentou-se silenciosamente de volta para entre as folhas da árvore. Não poderia vê-los bem dali, contudo o importante era que ele também ficaria oculto. Observou-os o quanto pôde, e ouviu o som de suas vozes, passos e metais passando próximo até que foi se distanciando. Por segurança, esperou os primeiros raios da alvorada aparecerem antes de se mover. O sono havia passado por completo devido à tensão que preencheu seu corpo. Cuidadosamente desamarrou seus pertences e desceu. Tudo estava tranquilo, mas ainda sim preferiu acelerar o ritmo.

O nascer do sol trouxe ao elfo mais tranquilidade. Orcs e ladrões não eram comuns durante o dia, mesmo assim era necessária toda a cautela. Juntamente com a tranquilidade viera também a fome. Não poderia correr o risco de ser pego sem forças e aquela região era pobre em frutos. Precisaria caçar.

A fauna naquelas planícies era discreta e astuta. Laucian sacou seu arco e retesou uma flecha. Ouviu um som conhecido vindo de cima. Patos selvagens voavam baixo devido às nuvens pesadas de chuva que novamente se formavam, o que facilitaria a caça. Ergueu o seu arco para o alto, reajustando um pouco para compensar o vento, puxou a flecha até que a pena estivesse próxima à sua orelha e, no momento certo, soltou. Foi um tiro certeiro, abatendo o pássaro instantaneamente. Era uma ave grande, desajeitada e, portanto, suficiente para sustentá-lo até Florensia.

Acendeu uma fogueira, assou um pouco da carne e deixou o restante defumando. Após ter comido, o elfo estava novamente caminhando. As nuvens se dispersaram e agora o sol brilhava forte no céu bem acima dele, contudo era possível avistar que mais chuva vinha do sul. Provavelmente chegaria forte no final do dia e ele acelerou ainda mais o ritmo.

Finalmente, do alto de uma colina pôde avistar seu destino. Provavelmente mais algumas horas de caminhada, mas a simples e distante imagem da fumaça que saía das chaminés da pequena cidade já havia enchido seu coração de ânimo novamente. Uma canção veio à sua mente e seu bandolim veio às suas mãos enquanto iniciava a descida. Ele se distraía facilmente enquanto tocava, voltou a caminhar lentamente sem perceber e seus sentidos todos se voltavam à música, ignorando os sons ao redor.

Seu senso de urgência apenas retornou quando as nuvens negras encobriram o sol, deixando apenas uma pequena parte do azul do céu visível ao norte, a forte chuva era iminente. Mais uma vez, Laucian se viu obrigado a guardar seu bandolim sob o manto esverdeado e acelerar sua caminhada. Se seu instrumento se molhasse, o som ficaria ruim.

Florensia era muito pequena, as poucas casas, o estábulo e a taverna formavam um círculo ao redor de uma praça e no centro existia uma estátua suja e cheia de lodo de um homem com barba longa e um capuz cobrindo o rosto. O homem segurava uma bengala em uma das mãos, dando a entender que era velho, porém ela não tocava o solo e sua coluna estava ereta, demonstrando que ele não tinha dificuldade para caminhar. A outra mão estava com a palma para cima e dois dados estavam sobre ela. Aquela era uma das raras estátuas de Zellyr, O Andarilho, protetor dos viajantes, comerciantes, bardos, mas também dos ladrões. Apesar de modesta e praticamente irrelevante para o reino, o povoado ficava no encontro de quatro estradas. Uma ia para o oeste, até o litoral, e por ela chegavam grandes carroças e caravanas com mercadorias que vinham de terras pouco conhecidas além do Grande Oceano. A segunda estrada era irregular e quase abandonada, indo ao extremo norte do reino, alcançando as grandes Montanhas de Prata, montanhas cobertas por neve durante todo o ano e lar dos mitológicos Dragões de Prata. Por não existir nenhuma grande cidade ao norte e o frio extremo impossibilitar a produção agrícola, ela era pouco utilizada. Raramente alguns aventureiros vinham por ela.

A terceira estrada era por onde Laucian vinha. Larga, com poucas curvas, toda de terra e, em épocas de chuva, se tornava barrenta, tornando a travessia difícil e a viagem bem cansativa. Ela ligava Florensia à região nordeste do reino. Para o sul, a mais importante das quatro rotas, bem larga e, em muitos pontos, bem pavimentada. Levava diretamente à cidade de Ancelon, a capital do reino.

Tão logo Laucian pisou em Florensia e os primeiros pingos de água caíram, grossos e pesados, seguidos por uma forte chuva, ventos e trovões. Já era noite e ele precisou correr até o único local aberto na cidade, uma placa velha, suja e torta acima da porta indicava o nome da única taverna da vila, o Touro Manco.

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