A Biblioteca
Sentada na biblioteca da universidade, Ana devorava atenta cada uma das páginas de seu romance preferido, Anna Karenina de Tolstoi.
-Não quero expulsá-lo.
- Então não mude nada, deixe as coisas como estão - murmurou ele, em voz trêmula -Mas aí tem o seu marido.
Mesmo com seus olhos imersos no livro, percebeu por entre os cílios que alguém a observava e aproxima-se lentamente.
Então o homem parou em sua frente, fez uma mesura delicada com uma de suas mãos nas costas e a outra em sua direção, pedindo-lhe a mão, como faziam os lordes com suas damas.
A voz mansa e sedutora dele, tomou o silêncio de sua concentração.
- Case-se comigo, minha linda e doce Anna? - ela chamava-se Ana, mas era evidente que o homem referiu-se a ela daquela forma, única e exclusivamente pelo personagem Anna Karenina.
Olhou-o com a surpresa saltando de seus olhos amendoados e disse-lhe.
- Nossa!! Isso foi tão...
- Insano? - antecedeu ele, voltando à postura normal. - , é eu sei, perdoe-me, não pude resistir, não é todo dia que vejo uma linda mulher lendo, Tolstoi, Anna Karenina é meu preferido, uma obra de arte impecável.
Ana sorriu timidamente.
- Permita-me apresentar-me, sou o professor...
- Eduardo Smirnov. - surpreendeu-o.
- É aluna aqui na USP?! - demonstrou surpresa.
- Não, mas fui sua aluna de literatura durante 3 anos.
- Eu me lembraria de você. - ponderou. - Ah! Ana Laura, não é mesmo?
- Sim, eu mesma.
- Você era tão...
- Desajeitada?
- Não, tímida.
- Continuo tímida.
- Mas está mais linda agora que não preciso olhá-la apenas como aluna. Gosto da mudança, sutil e avassaladora.
Ela reprimiu o sorriso, baixou o olhar pois sentiu-se corar.
- Ah! Perdoe-me. Não foi minha intenção fazê-la enrubescer. - puxou uma cadeira e se sentou.
- Essa sua leitura, tem alguma coisa a ver com minhas aulas?
- Digamos que tive o melhor professor de literatura dessa universidade, um amante da literatura Russa.
- Por acaso sabe se o avô dele era Russo?
- Sim.
- Ele deve ser um louco por sair por aí pedindo uma mulher em casamento só por que ela lê Tolstoi.
- Tolstoi, Fiódor Dostoiévski, Nikolai Gogol, Daniil Kharms, entre outros. Esses escritores são simplesmente fascinantes, muito de suas obras exteriorizam eles próprios.
- Bravo!! Vejo que aprendeu tudo direitinho.
- É que o professor de literatura em questão, despertou em mim a paixão por esses autores. Eu amava suas aulas e suas histórias.
- Lembra-se das histórias?! - surpreendeu-se.
- Sim, como esquecer os detalhes de suas aventuras na biblioteca de seu avô, e de ele ler os clássicos em russo.
Algo o incomodou.
- Envergonho-me ao ouvi-la falar da biblioteca.
- O que houve?
- Com o falecimento do meu avô e de meu pai, o casarão ficou abandonado, na verdade agora está em reformas, mas a biblioteca encontra-se em estado deplorável, não tive tempo de reorganizá-la.
- Eu poderia ajudá-lo com isso, se desejar é claro.
- Faria isso?
- Faria qualquer coisa para ter esses clássicos em russo em minhas mãos.
- Combinado, pego você hoje às cinco da tarde, só me passe o endereço de onde devo apanhá-la.
Ana foi pega de surpresa, contudo não conseguiu negar o convite tão espontâneo, então escreveu em uma folha de papel e o entregou.
Ele disse levantando-se apressado.
- Estou atrasado, fez-me perder o juízo senhorita. Tenho muitas aulas ainda.
Às cinco da tarde quando Ana saiu na portaria de seu prédio, como ele havia instruído, ele já estava esperando-a, e entrar no carro do professor mais cobiçado da universidade parecia-lhe surreal. No caminho falaram sobre tudo um pouco, era incrível como em tão pouco tempo alguém consegue conhecer a outra pessoa da forma com que ela o ficou conhecendo, Edu era um comunicador nato.
Caminharam por toda à casa e Ana atentando-se aos detalhes, nitidamente encantada com a decoração extravagante e elegante.
- É uma Matrioska?
- Sim, existem muitas dessas bonecas espalhadas por aí.
Na cozinha tudo estava muito organizado, limpo e em plenas condições de uso.
- Achei que tivesse dito que à casa estava abandonada?
- Ela está em reformas, mas já estou morando aqui, e à cozinha é uma das partes que faço muito uso, sou um chef ávido.
Ele a guiou por um corredor gigantesco e no final entraram em um dos quartos, que em seu canto esquerdo havia uma escada que levava ao subsolo, para a biblioteca.
A biblioteca estava de fato abandonada, era um lugar privado de qualquer iluminação natural e com pouca iluminação artificial, tinha em suas paredes, prateleiras de madeira maciças decrépitas e abarrotadas de livros. Se aquele ambiente se encontrasse no térreo, ousaria dizer ter sido atingido por um tornado. Havia em um canto uma antiga poltrona de camurça palha e ao seu lado uma mesa oval repleta de livros e papéis. No chão muitos livros destruídos e papéis avulsos.
- O que aconteceu aqui? Por que toda essa destruição?
- Foi um ataque de fúria, aconteceu quando meu pai morreu. - respondeu-a sereno.
Ana não assimilou as palavras com a imagem serena que ele lhe passava.
Então falou:
- Estas paredes devem ter tantas histórias. Elas cheiram a história.
- Elas cheiram a mofo. - replicou com o tom de voz ressentido e ríspido.
Ela o olhou assustada e então ele voltou a falar.
- Tem muitas histórias incrustadas nestas paredes, as mesmas que impregnam minha alma. Passei horas e horas trancado aqui dentro aprendendo russo. - o mesmo tom de ressentimento recaiu sobre suas palavras.
- Achei que fosse um apaixonado.
- Minha paixão era apenas uma obrigação.
- Não me recordo dessa parte das histórias.
- Não a compartilhei com mais ninguém.
Ana suspirou, e começou a caminhar pela biblioteca observando o nome dos grandes autores que simplesmente brotavam das prateleiras.
Estava simplesmente deslumbrada, e quando estendeu sua mão para apanhar um dos livros, ele a advertiu severo.
- Não toque nesses livros!
Ela congelou ao som de sua voz, então ele caminhou até Tolstoi, e apanhou o exemplar em russo de Anna Karenina e deu-o em suas mãos.
Ao abri-lo, ela sentiu uma emoção indizível, então, Edu disse-lhe:
- Leia-o para mim.
Ana estreitou os olhos e respondeu-o.
- Não sei ler em russo.
As feições do professor mudaram como as estações do ano, foi de primavera a outono em um milésimo de segundos.
- Como não sabe? Então se diz uma apaixonada pela literatura russa e não sabe seu idioma?
Percebendo a abrupta mudança, Ana disse-lhe:
- Acho que foi um erro ter vindo até aqui.
- Não, não Ana, por favor, perdoe-me, é esse lugar, ele mexe comigo. Pode tocar nos livros e fazer o que quiser.
Ele conseguiu assustá-la com aquele comportamento duplicado, então Ana passou a pensar onde estava com à cabeça quando resolveu oferecer-se para conhecer a biblioteca. Achava que o conhecia, foi seu professor durante anos, mas ela não o conhecia, e passou a temer cada palavra que saia de seus lábios.
Confusa, caminhou até uma prateleira e apanhou Crime e Castigo, aquele livro tinha algo de negativo nele, então, ela virou-se e o encarou. Percebeu por sua vez, que ele estava com os punhos cerrados, e ao assustar-se com a expressão em seus olhos e punhos, deixou o clássico despencar de suas mãos.
- Viu só o que fez sua estúpida! - esbravejou ele com severidade.
Sua atitude pegou-a de surpresa, assim ela levou seus olhos receosos na escada, e ele logo a advertiu.
- Não, não querida, ainda é muito cedo para pensar em ir embora, antes vamos comer juntos, beber juntos e encenar o amor de Anna e Vronski. Para isso, terá que decorar todas as falas, eu já as sei de cór.
- Encenar? Não entendi.
- Anna, Anna, minha Anna Karenina - meneava à cabeça negativando as palavras.
- Não me chame assim. - advertiu-o.
- Aqui dentro dessa biblioteca você é Anna Karenina. - decretou.
Ana sentiu os pelos de seu corpo se arrepiarem, não por nenhum motivo prazeroso, mais apenas assombroso.
As feições de Edu estavam transformadas e seus olhos nebulosos passavam apenas desiquilíbrio. Caminhou até uma prateleira, pegou um livro e o entregou a Ana. Era uma edição de Anna Karenina, em português.
- As falas que deve decorar estão todas marcadas. - alertou-a. - Vou subir para preparar o nosso jantar, enquanto isso você faz o dever de casa.
- Está maluco? Não vou ficar aqui embaixo de jeito nenhum, me leve para casa.
Então Edu riu discretamente e caminhou até uma escrivaninha, abriu à gaveta, apanhou algo e foi em direção a Ana, que naquele momento já tremia de pavor devido à mudança de personalidade gritante de seu professor.
Ele a tocou afetuoso em sua face dizendo-a:
- Ah! Por Deus Ana, não me faça sentir vontade de usar essa relíquia de família em você. - mostrou-lhe uma faca espada russa com cabo em detalhes de ouro.
Ana ficou paralisada, tamanho era seu pavor enquanto Edu afastava-lhe os cabelos para o lado ameaçando passar aquela faca em seu pescoço. Ela fechou os olhos e nem se quer respirou.
- Se for boazinha, não precisarei usar isso em você.
Ela apenas assentiu.
O professor caminhou rumo à escada e no meio do caminho virou-se e disse-lhe.
- Ah! Havia me esquecido de avisá-la, quero que use o vestido que está em cima da cama. Esteja dentro dele quando eu voltar.
Ana levou seus olhos para à porta que Edu havia apontado antes de subir na escada e encarcerá-la na biblioteca ao trancar uma espécie de alçapão. Ela entrou em uma espécie de torpor e assim que aquele momento passou e caiu em si, correu para à escada e passou a gritar desnorteada socando o alçapão, e ao perceber que aquilo lhe parecia inútil, desceu e foi até à porta que Edu havia-lhe indicado.
Quando abriu à porta, teve a ingrata surpresa ao deparar-se apenas com uma cama, um pequeno banco com uma jará de plástico com água, e um copo. No canto esquerdo havia um pinico, para seu total desespero, era seu cativeiro. O cérebro dela não acompanhava seus olhos aflitos que vasculharam cada centímetro do sufocante espaço, e ao pensar em ficar presa ali, suas mãos suaram e seu coração bateu descomedido em sua garganta, pois estava prestes a abandonar aquele corpo que em breve estaria cativo ali naquele espaço claustrofóbico. Olhou para à cama, e lá havia um vestido preto de veludo com rendas venezianas do século XIX da Rússia Czarista, exatamente como o descrito por Tolstoi. Ana caminhou em prantos até o vestido deslumbrante e o apanhou em suas mãos.
Esteja dentro dele quando eu voltar, Lembrou-se.
Assim, em prantos, começou a se despir e entrar no lindo vestido.
Em seguida, colocou-se a chorar e gritar até ficar rouca, desistiu e se encolheu no canto direito da cama e enrolou-se em si mesma, tentando acordar daquele pesadelo terrível. Após ter passado pouco mais de duas horas, ouviu o barulho do alçapão sendo aberto novamente, e quando ouviu o atrito de botas contra a madeira da escada o horror instalou-se nela de uma forma súbita e cruel.
Passou a ouvir uma canção suave, era Beethoven, Moonlight Sonata.
Edu entrou no quarto onde Ana encontrava-se encolhida e apavorada, sua serenidade era assustadora.
- Oh! Minha doce, Anna, levanta-te dessa cama. - estendeu suas mãos para ela, que tomada de seu pânico o obedeceu prontamente.
Ele abaixou-se em mesura e tocou-lhe o peito da mão com os lábios, beijando-a.
Vestia um elegante uniforme militar russo, branco com um detalhe em dourado nos ombros.
- Esqueceu-se do adorno? - indagou-a pegando às pérolas em cima da cama, e a grinalda de violetas, para seus cabelos.
Deu a volta em Ana e foi vesti-la com o lindo colar, afastou-lhe os cabelos, exalou o cheiro dela com profundidade e beijou-a em seu lóbulo.
- Belíssima! - sussurrou.
Em seguida puxou-a delicadamente, levando-a de volta ao cenário da biblioteca. A mesa agora estava no centro, e devidamente posta para o jantar com o cardápio russo, que Edu havia preparado.
Serviu-a primeiro uma vodca artesanal, a Nazdavóvia, e a instruiu como beber, em seguida vieram às entradas, zakuskis em russo, entre elas salmão defumado. Em seguida, uma segunda entrada, Borscht a famosa sopa de beterraba. E por fim, serviu-a do prato principal, Pordjarka.
- Por que está tão calada, minha querida? Não está apreciando o jantar, preparei-o com carinho.
Ana tentou ser gentil, pois assim achava que seria melhor.
- Está tudo perfeito, Eduardo.
Ele deu um soco na mesa e em seguida disse tranquilo.
- Vronsky, para você minha linda Anna.
- Vronsky. - ela pronunciou trêmula.
- Por que eu? - interpelou ela.
- Você me escolheu, olhava-me deleitosa durante às aulas, você deseja-me, via isso em seus olhos.
Ele levantou-se da mesa, foi até Ana e ofereceu-lhe a mão gentilmente.
- Agora é a hora mais esperada desse encontro, eu esperei quatro longos e inflamados anos para isso. - informou-a. - Meu amor por você é cruciante.
O amor de Vronsky por Anna Karenina, era cruciante, já Edu, não sabia o que era amar, sabia apenas como satisfazer sua ânsia por desejos macabros que tinham como palco a biblioteca, que antes no passado servia-lhe de uma espécie de quarto de castigo, do qual só podia sair quando aprendia as novas lições em russo. Tinha paixão por Anna Karenina, e escolhia suas vítimas, entre mulheres que se chamavam Ana.
Aproximou-se de Ana, e seu encantamento enternecido por sua beleza, levou-o a tocá-la com ternura. Ana sentiu-se apavorada ao seu toque.
- A partir de agora, somos apenas, Conde Vronsky e Anna Karenina, não me decepcione.
Ela engoliu a seco.
Edu guiou-a em uma dança no meio da biblioteca, então, beijou-a enlouquecido, e assim como Vronsky, cobria-a de beijos em seu rosto e em seus ombros desnudos, despiu-a de seu longo vestido e levou-a até à cama no cômodo ao lado. Ana entregara-se a Edu, tamanho era seu medo, tamanho era seu desespero, e assim, com ele instruindo-a atuaram o ato de amor de Vronsky e Anna, e o fizeram com perfeição, a qual somente dois amantes de Tolstoi, que conheciam cada fala, gravadas em suas memórias, eram capazes de encenar.
Enquanto Edu a tinha submissa em seus braços, possuindo-a, disse então as palavras de Vronsky, começando assim encenar às cenas de amor do livro.
- Anna, Anna - disse trêmulo -, Anna, pelo amor de Deus.
- Meu Deus! Perdoa me! - disse Anna, soluçando.
Ela continuou a sussurrar as palavras de Anna Karenina, como se tivesse verdadeiramente incorporado a personagem.
- Está tudo acabado. - disse ela - Só tu me restas, não o esqueças.
Então Edu a respondeu.
- Como poderei eu esquecer a minha própria vida? Por um momento de felicidade como este.
- Que felicidade? - exclamou ela em desgosto. - Suplico-te, nem mais uma palavra, nem mais uma palavra.
Naquele momento, Edu pegou sua faca espada, embaixo do travesseiro, que escondera quando fora pegar o colar, e cravou-a no peito de Ana, sem nenhuma misericórdia.
Saiu de cima do corpo inanimado dela, e disse ao cadáver, sem nenhum tipo de pesar enquanto lambia o sangue na faca.
- Perdoe-me minha Anna Karenina, nunca apreciei o final que Tolstoi escreverá para você.
Joice Cruz
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