6. A fidalga de culotes
- Agradeço vossa hospitalidade, Eduardo.- D. João entrou na sua carruagem.- Espero vossa resposta Helena.
- Ela chegará, majestade. Até breve.- Fiz uma vénia ao despedir-me.
- Até amanhã, se Deus quiser, vossa graça.
- Passai bem, Eduardo.- Despediu-se e a carruagem partiu.
- Papá eu não quero ir para a corte!- Entrei em pânico assim que a carruagem já estava a uma distância segura.
- Não podes recusar, Helena. O teu nome será manchado se não aceitares ser dama de companhia de Francisca. Terás uma das posições mais acima na corte, terás um monte de regalias e benefícios. Encontrarás um bom marido.
- Eu não quero casar, não ainda, papá.- O meu coração apertou-se, já tínhamos falado sobre isso. Pareceu-me ter deixado a minha posição clara, apesar de ter engolido toda a minha dignidade.- Acabei de chegar de longe. Quereis-me longe novamente?
- Não, claro que não meu anjo.- Abraçou-me já dentro de casa.- Eu não vou estar aqui para sempre Helena, quero-vos estável e em segurança antes de me ir. Sabeis, só poderás herdar alguma coisa dos meus bens quando tiveres um marido, é a lei.
- Então a lei está mal!- Resmunguei.
- Não vos quero ver triste. Ainda falta para vos ver de branco.- Tentou tranquilizar-me.- Agora acerca da corte...
- Tudo bem.- Resmunguei.- Mas só depois do fim de semana. Não cedei ao rei: ou para a semana ou nada feito.
- Sim, senhora.- Sorriu.
- Já tenho os baús prontos.- Mudei de assunto. Estava ansiosa por voltar a Sintra.
- Fico feliz em saber, apesar de ainda faltarem uns dias.
- Perdão, senhor Lencastre.- Bianca entrou.- Queria apenas comunicar a Helena que o senhor padre começou a fazer as confissões.
Respirei fundo. Se havia algo que eu não gostava era de me confessar. O que é que eu tinha feito de errado até agora? Nunca roubei nem matei. Parece-me a mim que estou muito bem.
- E que Guilherme pede autorização para poder voltar ao Brasil.- Terminou com receio.
- Se essa for a vontade dele, pois muito bem. Ide chamá-lo. Quero agradecer-lhe pessoalmente por ter trazido Helena em segurança.
- Sim senhor.
...
- Ireis para a corte?- Bianca sorriu entusiasmada enquanto caminhávamos para a Sé.
- Sim. Assusta-me profundamente, porém o papá acha que lá me darei melhor.
- O marquês terá as suas razões.- Comentou indiferente.- Tende cuidado Helena. Vistes em França como a corte é um lugar perigoso. Juro que vi dois homens atrás da cortina a... cometerem o pecado da carne.- Sussurrou.
- Atrás da cortina do corredor?- Não arranjariam um quarto?
- Em Lisboa as coisas não são diferentes. Cá para mim o rei tem as melhores rameiras de Lisboa na cama.
- Bianca, se o rei as tem lá ou não, não é da nossa conta. Não me compete decidir com quem o rei se deita.- Cortei friamente o tema. Gosto muito pouco das coscuvilhices alheias.
- Tende cuidado menina, alguém poderá aproveitar-se de si.- Aconselhou uma ultima vez.
- Terei Bianca.- Terminei o assunto ao entrar na Sé. A igreja é um lugar de silêncio e comunhão com Deus.
⭐👑⭐
- Avô!!
- Helena?- O velhote voltou-se para a porta ao ouvir-me.- Helena, minha doce e pequena Helena.- Abraçou-me com força, deixando cair a bengala.- Pensava que já não te via mais.- Afagou os meus cabelos com carinho e saudade.- A minha netinha...
- Avô, já sou grande.- Sorri-lhe.
- Vais ser sempre pequenina para mim.- Beijou-me a testa.
O avô Manuel já tinha cabelo grisalho e embora estivesse próximo dos 80 anos, eu não lhe daria mais de 70. Está sempre com um sorriso amável e amoroso no rosto e além disso... gosta de me fazer muitas vontades, pelo que me lembro.
Antes de chegar, estava sentado frente à lareira, com a casaca verde, igual aos culotes, camisa branca e renda. Muita renda nos pulsos, ao pescoço e nas meias. Os sapatos de tacão castanhos completavam o visual habitual.
- Não sabia que tinhas regressado. Porque é que não me avisaste que vinhas a Sintra, teria preparado um banquete e...
- Era uma surpresa.- O papá tomou a palavra.
- Como estás, Eduardo?- O avô perguntou.
- Bem, e vós Manuel?
- Vai-se andando. Se Deus quiser ainda aguentarei mais uns anos.
- Claro que sim, avô!- Abracei-o com força.
- Mas bem...- Puxou um cadeirão para junto da lareira para me sentar.- Temos muita conversa a pôr em dia. Traga chá, por favor.- Pediu à governanta.
As grandes janelas mostravam muito nevoeiro, mal se viam as rosas no jardim. Iria chover provavelmente.
Sabia muito bem estar junto à lareira na companhia da família e de um chá.
- A simpatia que deixou para a filha, faltou-lhe a ele.- O papá resmungou e puxou um cadeirão para si mesmo junto à lareira.
- Papá não comeces, por favor.- Pedi baixinho.
- Só o venho ver por ti.- Resmungou.
- E eu agradeço. Tinha muitas saudades do avô.- Sorri-lhe.
- Como foi por lá? Quero saber tudo!- O avô anunciou ao sentar-se ao meu lado e acender o cachimbo.
- Aborrecido sem vocês.- Admiti divertida.
Depois de lhes contar tudo o que vivi e passei, pedi permissão para ir montar. Andar a cavalo em Sintra era outra coisa, não era cavalgar, era liberdade completa!
- Ide, porém com cuidado.- Advertiram.
- Sempre.- Sorri beijando as suas bochechas.- Volto antes de almoço, portem-se bem.- Brinquei e ouvi o avô rir.
Nos aposentos que o avô me disponibilizou despi o vestido e troquei-me por uma blusa de linho branca, uns culotes castanhos claros com as meias brancas e os botins pretos de couro um pouco acima do joelho.
Fiz uma trança rápida e apertada e segui para os estábulos. Um cavalo castanho claro com uma mancha branca entre os olhos que seguia até ao focinho já me esperava pacientemente. Era muito dócil, que anjinho!
- Queres ajuda?
- Eu consigo, papá.- Respondi enquanto verificava se a pistola tinha pólvora suficiente.
Algo que aprendi no Brasil é que é sempre bom estar prevenido.
Prendi a pistola na sela e subi para o lombo do animal.
- Já tínhamos conversado quanto aos trajes de montada, Helena.
- Tentai montar de vestido e depois então podereis conversar comigo a respeito disso.- Respondi de sorriso no rosto.
- Helena, é desrespeitoso uma mulher vestir e montar com roupas masculinas.- Advertiu.
- Papá, só hoje. Prometo.- Tracei os dedos atrás das costas.
- Tudo bem.- Cedeu com um suspiro.- Tende cuidado.
- Terei!- Saí a galope pelos terrenos dos Albuquerque.
O nevoeiro e a humidade depressa ensoparam a minha roupa que parecia um tanto ou quanto pegajosa. O frisado do meu cabelo estava a dar cabo de mim: as madeixas que caíam da trança estavam todas no ar!
Por entre as árvores pareceu-me ver algo. Segui a passo, lenta e silenciosamente. Seria um veado? Estava na clareia e sim, era mesmo um veado de astes enormes!
Indiferente, deu com o olhar mim e assim ficou por longos momentos. Estávamos a uns... 10 metros de distância ou assim e o veado simplesmente ficou ali, quieto, como se a minha presença lhe fosse indiferente, como seu eu não fosse uma ameaça. Talvez achasse mesmo que não era uma. Continuava a sua vida a pastar as ervas da clareira.
Depois, tudo mudou. Sem saber por quê correu para longe sem me encarar uma ultima vez. Não foi de mim que teve medo, não correria assim do nada. Havia algo entre as árvores. Um javali? Uma fêmea?
Ouvi enfim algo mexer-se entre as folhas.
- Quem está ai?- Eram passadas demasiado calculadas para serem dadas por qualquer animal.
Peguei na pistola sem fazer barulho quando não ouvi resposta. Estava perto... Fiz mira na direção do barulho.
- Majestade?- Desviei a arma rapidamente. Que raio é que o rei fazia aqui?
- Bom dia para vós também.- Respondeu com certa ironia. Arrumei a arma.
Eu ainda estou a tentar formular qualquer coisa. O que raio é que este miúdo estava a fazer em Sintra, nas terras do meu avô, sem guardas e com cara de quem acabou de sair da cama?! O desgraçado afastou o animal bonitinho!
- Estava muito bem; até que vós aparecestes.- Tomei o caminho outra vez antes de dizer algo pior. Pensa no papá, Helena. Pensa no papá.
- Isso foi muito rude, D. Helena.- Constatou com aquela voz de vítima.- Não apreciais a minha companhia?
- Enquanto estivermos totalmente sozinhos, nos terrenos de meu avô quando acabastes de afastar um animal belíssimo, não. Não aprecio.- Sorri com a maior franqueza.
O idiota seguia-me com a maior diversão, como se me tirar do sério lhe fosse um passatempo.
- Que aconteceu com vossos guardas?
- Preferi vir sozinho.- Respirou fundo.
- Não pretendo interromper vossa comunhão com a natureza.- Sorri afastando-me dele.
- Ficai, gosto de vossa companhia.
- Vossa graça honra-me com tais palavras.- Revirei os olhos ao mandar-lhe um sorriso.
- Pensei que estivéssemos em paz um com o outro.- Comentou confuso.
- E estamos!- Deixei claro.- Eu não disparei.- Sorri novamente.- É precisa muita paz.
- Atreveis-vos a ameaçar o rei?- Agora o tema tornou-se sério.
- Não. Mas o rei acabou de afastar o meu viado!- Eu tinha mesmo gostado do bicho.
- Perdão, não pretendia afugentar-vos a caça. Onde estão os cães?- Olhou em volta divertido.- Ireis tirá-los de dentro das calças?- Riu.
É esta criança que governa?
- Devia ter ficado no Brasil...- Resmunguei baixinho.
- Vosso pai teria morrido de saudades.- Tentou amenizar o clima.
- Com certeza que vossa companhia amenizava a dor da distância.
- Nunca vos ensinaram que montar com vestimentas masculinas é proibido para as mulheres?
- Ireis prender-me?- Gargalhei.- Ireis tirar as correntes de dentro das calças, é?
Um sorriso presunçoso tomo-o.
- Estais assim tão interessada no que tenho dentro das calças, Helena?
- Cuidado, rei.- Adverti séria.- Quando se passa a desrespeitar uma dama o assunto já tem direito a um estalo.- Virei-lhe costas ofendida e prossegui caminho.
- Aceitai as minhas desculpas, não era essa a intenção.- Parecia sincero agora.
- Desculpas aceites.
- Também não queria importunar-vos com a minha presença.- Parou e pouco depois parei também. O seu olhar queimava a minha pele.- Até outro dia, Helena.
Com quem iria implicar agora?
- Ficai. Não é seguro um rei andar por aí sozinho.- Convidei friamente.
- Vossa profunda preocupação comigo aquece o meu coração.- Falou.
- Tendes um?- Ri e engoli a gargalhada perante o seu olhar.- Mas bem, que fazeis em Sintra?
- Queria fugir de Lisboa. Aqui é tudo mais tranquilo.
- Concordo.- Sorri. Sempre tínhamos algo em comum.
- O que gostastes mais de visitar?
- A Holanda. Sítio simples e simpático, embora tenha a sensação de que iria amar a Inglaterra. Tem uma corte requintada e justa. Além disso os ingleses têm fama de serem românticos quando querem.
- Entre outras coisas.- Sorriu de lado.- Aconselho-vos a procurar entre os italianos se quereis o pacote completo.
- Agradeço o conselho.- Rimos os dois.
- O que vos fez regressar, Helena?
- Vós.- Encolheu os ombros com um sorriso.- A coroação de um novo rei pareceu uma boa desculpa para deixar o Brasil. O meu irmão anda atarefado com a esposa, não havia mais tempo para mim. Aqui tenho o meu pai. É a melhor das companhias.- Parei de falar sobre mim.- Sentis falta do vosso?
- Apenas dos concelhos. D. Pedro nunca foi um pai presente.
- Lamento muito.
- Não lamentes, agora teria sido uma despedida complicada.- Sorriu de lado.- Embora não tenha de vos referir isso, sabeis melhor que eu do que se trata.
Preferi não responder.
- Não vos é desconfortável montar de... calças... de... afastadas... no meio... Não quero ofender, de verdade, estou apenas curioso!- O seu receio divertia-me.
- Não, não é incómodo nem doloroso.- Mordi o lábio para não rir.
- Quanto ao veado, deixai-me ir buscar os meus cães e trazer-vos-ei a cabeça.
- Por Deus, não façai tal coisa, peço-vos!- Impedi-o assustada.- O animal é bonito demais para acabar numa parede a ganhar pó.
- Uma forma um pouco radical de pensar.- Refletiu.
Senti umas quantas gotas e quando olhei para o céu negro já chovia torrencialmente.
A sensação da água fria era deliciosa.
- Vinde, não podemos adoecer.- D. João fez sinal e esperámos um pouco debaixo de uma grande árvore. Deveria de estar ali à séculos.
- Que fazeis nos vossos tempos livres?- Perguntei.
- Jogo às cartas e vós?
- Leio.
- Posso perguntar que tipo de livros?- Sorriu.
- Depende. Agora ando a ler um romance.- Encostei a cabeça à árvore enquanto as minhas mãos sentiam a humidade das folhas no chão. Sorri com a sensação.
- É bom?
- Dentro do possível.
- Quem morre?- Divertiu-se.
- Ele... talvez ela também.- Refleti.
- Que aconteceu?
- Amaram.- Respondi simplesmente.
- Já estavam prometidos a outros?
- Ela sim. Era casada com o imperador da Áustria. Ele era um camponês que veio entregar legumes ao palácio. Um encontro errado, com as pessoas erradas, à hora errada.- Encarei o rei.- O marido também não a amava. Humilhava-a e tudo mais... Ser rainha deve ser uma chatice, sem ofensa.
- Não ofendeis. Ter uma rainha também deve ser uma chatice.
Este rei era muito divertido!
- De verdade! Não fazem nada, só têm de ter filhos, muitas vezes são feias e quem tem a culpa é o rei!- Resmungou.- Não sabem satisfazer um rei na cama, quando o rei fornica com outra é ofensivo... Desculpai as palavras ofensivas, mas é uma valente chatice!
- Em França o rei exibe a amante, a rameira como se fosse a própria rainha. Nojento. Homens não têm vergonha na cara.
- Não, não temos mesmo.- Deixou claro.
A chuva pareceu dar umas tréguas.
- É melhor voltarmos. Prometi a meu pai que regressava pela hora de almoço.- Levantei-me e montei novamente.
- Ficais muito bem vestida de homem, sabeis?- Disse-me já em cima do seu cavalo.
- Vou levar como um elogio.- Sorri-lhe.- Deveis ficar o cúmulo da sedução vestido de mulher.
- Obrigada, acho.- Rimos os dois.
Subíamos a serra, era lá que ficava o palacete do avô.
- Tendes a noção de que sois a mulher mais rica do reino?- Perguntou do nada.
- Não. A mais rica é vossa irmã mais nova, o homem mais rico sois vós. Não irei herdar os bens dos Albuquerque, nem dos Brotas Lencastre porque tenho um irmão mais velho.
- Verdade, nem me lembrava desse.- Encolheu os ombros.- Tendes influência e conhecimento...
- Se me ides pôr como dama de companhia de vossa irmã, nem tentai usar-me como moeda de troca com algum estrangeiro importante.
- Com certeza não será necessário.- Sorriu.
- Isso não é resposta que se dê!- Impus-me atravessando à frente dele, para que parasse.
- É a resposta de um rei. É uma honra servir a família real, Helena.
Arght! Voltou a ser o reisinho idiota!
- Mesmo que se...
- Silêncio.- Pedi ao ouvir algo estranho.
- Como vos atreveis a dar-me ordens?!- Gritou.
- Silêncio.- Pedi baixinho. Não sabia o que se mexia além. Podia ser um coelho ou salteadores. Seria um fartote encontrarem o rei.
- Rapariga insolente!- Voltou a gritar.
Três homens vestidos de negro, com lenços a taparem-lhes o rosto apareceram à nossa volta, circundando-nos... não havia por onde sair.
- Que lindo. Porque não gritais agora?!- Resmunguei.
- Ouvirei vossos conselhos com mais atenção para a próxima, prometo.- Falou-me baixo, usando um sorriso assustado.
- Ficai calado, então.- Mandei.- Bons dias cavalheiros, algum problema?
- Não, estamos apenas de passagem, menina.
Quando um homem estranho usava o "menina" é porque as coisas iam ficar feias.
- Quem são vocês?- Perguntou um outro. Tinha uma cicatriz da testa à bochecha do lado esquerdo da cara.
- Eu sou...
- O meu irmão, Miguel. Eu sou Maria. Servimos o senhor Albuquerque. Fazíamos a ronda deste lado das suas terras, muitas vezes senhores perdidos pisam no que não lhes pertence sem intenção.- Aticei levemente.- O meu conselho é que seguis uns 500 metros pela serra abaixo e depois mais um quilometro para a direita, encontrareis o caminho.
Riram como se o que eu disse fosse a melhor das piadas.
- Não me parece, boneca.- Apontou-me a espada.
Estamos perdidos!
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