50. A primeira pedra
O empregado hesitou antes de encher o copo outra vez. As suas mãos tremiam como varas verdes.
Eu não pago a esta gente para serem amadores.
- Sai.- Peguei eu mesmo no jarro.- Estás demitido.
- Majestade, imploro-lhe eu...
- Não te mandei falar. Mandei-te embora.
O jovem saiu a soluçar. Que idiota, já tinha idade para se fazer um homem.
Aquela austríaca está a fazer as coisas piores ainda do que eu já esperava.
Num ímpeto de coragem abri a gaveta e levantei o fundo falso, dando com as cartas que ia escrevendo para Helena. Algumas já cheiravam a mofo de tanto tempo ali guardadas.
Eu devo ser masoquista.
As palavras escritas doem-me, como cicatrizes mal curadas esfregadas com sal. É duro como um banho frio num dia de graniso.
Eu amo-a, e ela afastou-me.
É tão duro e difícil continuar sozinho, Helena é a melhor conselheira e amiga que tenho, fez tudo por mim e pela minha família.
Era mais fácil rir e ignorar o meu pai quando me falava das minhas futuras paixonetas, agora sinto-me um idiota:
Nenhuma mulher te deve desviar do teu caminho, seja ela quem for, e o teu caminho é manobrar o barco até chegar a bom porto.
Como se fosse gostar assim tanto de uma mulher.- Ria-me, lembrando-me apenas das ousadias que degustava delas.
Hum... pobre inocente.- Sorria-me de lado, como me se achasse tolo.
Guardei as palavras com cuidado, organizando-as pela data para as voltar a fechar bem fundo na gaveta, como faria com os meus sentimentos.
Se Helena se sente ofendida, então não falarei nunca mais do assunto.
Conformado com a minha sina molhei a pena na tinta e como todos os dias fui assinando as folhas de autorizações, penas judiciais, decretos e leis...
- Majestade, a rainha veio confessar-se e devo dizer-lhe que muito me apoquenta o que me confidenciou.
- A menos que seja a falta de castidade, frei Gaspar, eu não quero saber. Para ser honesto, enoja-me saber os segredos e pecados da minha esposa. Ela ainda não achou um confessor conveniente, ou tem mesmo de andar aí a usar o meu?- Suspirei aborrecido e um tanto ou quanto apático.
- Majestade...
- Também lhe andais a contar os meus pecados e segredos, frei? Podeis começar pelas amantes, e quantas delas engravidaram. Talvez volte para donde saiu.
- Majestade!- Elevou o tom e fechou a porta.- Deixai vossas birras de lado. Enfrentai a situação como um homem! É por Portugal! Não vos pedimos que vistais uma armadura e caminheis de espada erguida para a batalha, pedimo-vos apenas que cumprais um contrato!
Era suposto fazer-me sentir melhor?! Talvez eu encontrasse paz na guerra.
Fechei os olhos e suspirei bebendo um pouco mais.
Eu vi o que a guerra fez ao meu país. Não foi assim há tantos anos. Guerra pelas fronteiras e no seio da família. Esta vida é podre. Começa por fora até envenenar o interior!
- Não volto a falar mais no assunto.
- Ótimo. Agora que vos encontrais mais são...
Ou o mais próximo disso.
- A rainha confidenciou-me o quanto ficou incomodada com a vossa... aproximação.
- Ela é casada comigo.- Ergui a sobrancelha estupefacto.
- E vós não sois casado com ela, ainda.- Reforçou.- A rainha não gosta de exibir esse tipo de comportamento em público, acha uma extrema falta de...
- Espera!- Ri, deparando-me com a astúcia de Maria Ana. Tinha de dar-lhe o crédito, sem dúvidas.
Sem decência para me dizer tudo isto na cara, preferiu "confessar-se". Ela sabia onde iriam bater as suas palavras.
- Espertinha, muito espertinha.- Mordi o lábio divertido.- E vós caistes como um idiota.- Recostei-me.- Da próxima vez que a rainha for purificar a alma, eu dispenso saber.
- Ham... como queirais.- Vergou-se atrapalhado.
⭐👑⭐
- Isto merece um banquete! Não, uma festança! Vou mandar matar um porco...
- Henry.- Sorri feliz por saber que estava tão contente quanto eu.- Porque não jantas lá em casa hoje?
- Eu adoraria...
- Sejam discretos. Se o marquês sabe o que aconteceu vão surgir problemas, e dos graves.
- Então e a noite de núpcias?- Perguntou e Bianca ficou vermelha.
Optei por fingir que não ouvi.
- Hello?!
- Oh... era a sério?- Endireitei as costas, sem saber que mais fazer.- Bem, pedirei para porem o melhor serviço na mesa, o melhor vinho e providenciarei uma carruagem, que já será tarde e perigoso para se ir a cavalo do palacete a Cascais.
Reparei na sua cara de tédio e no demorado suspiro.
Que desavergonhado!!!
- Pode ser borrego? Eu gosto de borrego.- Sorriu e piscou-me o olho.
- Já não está cedo.- Reparei que o céu pintava apenas tons de azul cada vez mais escuros.- Até parece que a comida é má lá em casa!
- Verdade, ganhei mais peso desde que vim para Portugal.
O caminho não foi longo, visto não termos ido tão longe quanto esperavamos. Às vezes o inesperado é bem melhor.
- Mande pôr mais um prato na mesa, por favor.- Sorri entrando em casa pela porta das cavalariças ao lado de Henry, depois de deixarmos os nossos cavalos aos cuidados dos empregados.
- Nada disso! Não quero essas botas imundas nas carpetes!- A governanta declarou quando nos viu prestes a subir as escadas.
- Teria a gentileza de me trazer as minhas pantufas?- Aborreci-me enquanto Bianca me ajudava a descalçar.
- Senhora simpática.- Henry comentou.
- Alguém tem de pôr ordem nesta casa.
- Será o mais... adequado?- A governanta chegou pouco depois e deixou as pantufas no chão.
- Nada seria mais adecuado.- Suspirei mais relaxada na maciez nos meus pés. As botas de couro são demasiado severas e desconfortáveis para se usar por tanto tempo.- Vamos lá.
- Finalmente, estava a ver que te tinha de ir buscar por uma orelha a Cascais!
- Papá...!!- Bufei zangada vendo-o levantar-se do sofá ignorando o livro que lia.- Eu já não sou uma criança!
- Serás sempre uma criança para mim!- Firmou a voz.
Um sorriso carinhoso surgiu no rosto de Henry.
- Não tem com que se preocupar, Eduardo. O tempo ao lado de Helena parece voar, não queríamos chegar tão tarde.
- Sim, não aconteceu nada de errado. Tudo conforme as normas, senhor marquês. Henry foi sempre muito respeitoso. Uma tarde normal e muito bem passada.
- Que subtil, Bianca.- Murmurei-lhe.- Então... pensei que Henry pudesse cá jantar e depois usar uma carruagem, que à noite não é seguro andar por aí.
- Certamente não quero acabar como uma peneira.
- Que engraçado, Hyde!- Atirei-lhe uma almofada.
- Desculpa, milady.- Entregou a almofada a Bianca enquanto ria.- Sabes que te amo.
- O teu humor é péssimo.
- Depois de jantar estavamos a pensar em ir à ópera. Dizem que a rainha vai.- Beatriz manifestou-se.
- Ópera? Ham... não sei, foi um dia longo... divirtam-se.
- Vem lá Helena, vai ser giro.- O meu irmão insistiu.- Não vais ficar sozinha em casa.
- Pois não. Eu tenho de ficar também.- Catarina sorriu ao olhar para a filha que brincava com cubos de madeira.
Levei a mão abaixo do peito, lembrando-me que tudo aconteceu há um mês por esta mesma razão.
- Não me achas capaz de cuidar da minha sobrinha? Foi um acidente, eu não... Eu sou responsável!
- Não se trata de responsabilidade, milady.- Henry pousou a mão no meu ombro, e encarei-o sem entender o que queria dizer, olhei então para Catarina.
- Eu não me perdoaria se te voltasse a acontecer alguma coisa. Ainda não me perdoei, na verdade.
- Esta conversa não leva a lado nenhum. Vamos jantar.- O papá terminou o assunto.
- Vão andando, eu vou escolher o vinho.
Reparei que um sorriso travesso surgiu no rosto de Henry.
- Mas...
- Não demoro nada.- Prometi.
- Eu vou contigo, sempre quis saber como é garrafeira. Lucas, dá um olhinho à tua filha, sim?
Sentia-me mais descansada assim, a garrafeira era um lugar um pouco assustador para mim. Era húmido, cheiro de aranhas, teias e era acima de tudo, arrepiante.
Desci as escadas e no corredor mais velho, apenas usado por criados, peguei numa vela.
Precisei de respirar fundo algumas vezes antes de conseguir entrar.
- Não é bem como a imaginava.- Catarina olhou ao redor.
O ambiente parecia molenga com a pouca luz oscilante da vela. As sombras eram temerosas para mim.
Reconheci os vinhos que o papá tinha reservado para o meu casamento e peguei numa garrafa.
Não sei se era o momento certo.
- Deve ser um dia muito especial hoje.- Catarina reconheceu a garrafa que esteve na mesa da sua boda.
Sorri, ainda hesitando em contar-lhe... precisava de alguém que me dissesse como era suposto funcionar a noite de núpcias.
As ilustrações mouras só entram em cena a partir do terceiro ano de casamento.
- É sim.- Decidi escolher mesmo aquela garrafa. Se abriu uma quando João cá veio, porque não quando Henry cá janta?!
- Como por exemplo?
- O meu casamento.- Admiti baixinho.- Esta tarde casei-me com Henry. Queria comemorar.
Caiu-lhe tudo. A sua boca foi ao chão!
- Helena isso é... o teu pai sabe? Porque é que não estivemos presentes? Quem testemunhou? Foi bonito? Como era o ramo? E o padre? E o beijo? E...
- Foi tudo maravilhoso!- Suspirei apaixonada, lembrando-me de todos os detalhes.- Fomos só nós dois. Sozinhos... com Bianca.
Catarina sorria largamente e orgulhosa.
- Parece que a pequena Helena cresceu.
- Sim.
Eu cresci há muito tempo. Porque é que só me achavam crescida depois de casar?!
- Não queria contar nada a ninguém. Foi o nosso momento, o nosso segredo louco!- Ri e olhei para a garrafa.- No entanto, como a mamã, bem... Deus a tenha, preciso que me digas como é a noite de núpcias.
Nunca vi Catarina tão vermelha e acanhada.
- Por favor, esta tarde Henry falou disso e fiquei sem saber que dizer.
- Calma.- Pediu.- Escolhe o segundo melhor vinho do teu pai. Vais querer este na vossa primeira noite juntos.- Escolheu ela mesma o vinho e arrumou a garrafa que tinha em mãos.- Acerca da vossa noite... pede-lhe para esperar até ao dia oficial do casamento.
Henry parecia ansioso demais para esperar tanto.
- Não conseguirão uma noite a sós até lá. Além disso, o teu pai pode pedir para um médico te analisar para mostrar a Henry que és realmente casta.
- Eu sou virgem!
- Todos sabem, mas homens gostam de gritar isso de peito cheio, como autênticos galos: o teu pai, porque a filha é uma santa imaculada, o teu marido, porque andou enrolado com dezenas de mulheres e vai finalmente poder estrear uma só para si.
Eu queria socar o meu irmão pela maneira como fez Catarina sentir-se.
- E hoje vocês vão sair, divirtam-se. Amanhã falamos com mais calma sobre este assunto. Estamos a ficar sem tempo.
- Sim.- Lembrei-me que nos esperavam à mesa de jantar.
Quando saí da garrafeira, soprei a vela que afinal estava mesmo a acabar e sacudi os ombros da casaca devido ao pó.
- Demoraram.- O meu irmão endireitou-se na cadeira.
- Com o pó não dá para distinguir as garrafas.- Provoquei o papá que voltou a resmungar pela milésima vez que o tempo era a essência do vinho, e que não havia vergonha em demonstrar isso.
- Este é um dos melhores vinhos que cá tenho.- Sorriu e abriu a garrafa, vazando primeiro para Henry e então para Lucas, e depois para mim e Catarina.
Os empregados serviram o jantar e Beatriz fez a oração.
- Amén.
Peguei nos talheres e engasguei-me quando senti a mão de Henry no meu joelho.
- Está tudo bem?- O meu irmão perguntou.
- Aham.- Peguei no guardanapo muito atrapalhada.
Sentia o joelho formigar e então senti apenas um dedo subir e descer sobre a minha coxa.
Sorri enervada e pisei Henry com toda a força que tinha. Não havia de ser muita, porque eu estava de pantufas e ele de botas de couro, contudo uma advertência nunca era demais.
Principalmente quando sabe que não consegue acabar o que começa.
Eu queria que realmente entendesse que devíamos esperar pelo casamento oficial.
⭐👑⭐
- Hum... até admira que sempre tenha decidido comparecer.- Suspirei quando encontrei Maria Ana à espera na carruagem.
Não era um caminho longo até à ópera. Era um caminho que tinha tédio de fazer a pé.
A minha provocação foi completamente ignorada por ela, que apenas ergueu mais o queixo e olhou para o lado contrário ao meu.
- Cheirais a vinho... outra vez!
- Falastes?- Fingi-me surpreso.
- Eu não me casei com um bêbado.- Declarou num modo superior e voltou a olhar para a rua.
- Isso era suposto ofender-me?
Pude jurar que ouvi um grunhido.
Foram as suas únicas palavras pelo resto da noite.
Tentava provocá-la para que me desse uma boa desculpa para uma zanga, mas a verdade é a que Helena me tinha contado: Maria Ana era mais madura que eu.
Não por estas palavras, mas eu apanhei a ideia.
Era pragmática, fria, e não desperdiçada palavras, como as inglesas.
Apenas quando saiu da carruagem para o Teatro sorriu, sempre cordeal e elevada. Sabia o seu papel como adereço, pelo menos.
Não me lembro qual a peça de hoje, estou aqui para não estar um bordel algures por aí. Não tem havido gente interessante na corte para os meus desejos.
Fomos cumprimentados por todos os aristocratas presentes, que nos brindavam com os seus copos de champanhe e sorriam felizes pelo casamento.
Adoráveis!- Replicavam.
Tolos! Se ela fosse da minha família, seria a prima que eu ia ignorar completamente na ceia de Natal. Oh espera... ela é mesmo essa prima!!
Quando finalmente alcançamos o nosso camarim espaçoso, todos os que já se encontravam sentados se ergueram para monstrar o seu respeito. Retribui com o habitual sorriso e sentei-me; depois de mim, a minha noiva.
A voz da cantora deixava-me surdo, no entanto havia uma atriz belíssima no palco. Tinha um papel secundário no meio daquele galinheiro. Maria Ana parecia adorar.
Pareceu menos tensa e mais à vontade, sem toda aquela postura defensiva. E então reparei no que Helena me disse. É só uma mulher.
Este casamento deve agradar-lhe tanto quanto a mim e fui eu que o pedi, com certeza deve ter amado alguém em Viena e foi arrancada à força do seio familiar para vir ter comigo, um autêntico estranho. Eu estava a ser injusto com ela.
Engolindo o meu orgulho e puxando um pouco de compreensão e bom senso, alcancei a sua mão sobre o tecido bonito do vestido, no escuro da sala.
A princípio não fui correspondido, contido quando retribuiu o gesto senti-me menos tolo.
Tentei prestar atenção na peça, bastava uma palavra minha para quebrar este estreito fio de confiança.
Reparei no camarote do marquês, estava acompanhado pela amante. Uma vez mais Helena não veio. Há uns tempos isso foi catastrófico.
Intrigado dirigi a minha atenção para o camarote do embaixador inglês... e lá estava ela em todo o seu explendor, ao lado de Henry e de Lucas. Como era bonita...
Henry parecia um idiota a olhar para ela. Ignorava completamente a ópera e sorria como o imcebil que era, mas quem poderia não sorrir ao lado de Helena?
A conversa de hoje ainda me destroça o coração... até despertar, por sentir a minha mão pender.
Se a austríaca não queria a minha solidariedade então tudo bem! Problema seu!!!
Ela é que perde!
Intervalo!! Uff!!
- Eu vou apanhar ar.
A mal-educada virou-me a cara.
Ninguém quer saber das tuas birras, mulher!!
Eu queria apanhar ar, os fidalgos não, por isso interromperam o meu caminho.
Hoje não estou com pachorra, cavalheiros!
- Conde...- Reparei no conde de Aveiro, sobre o ombro de um dos que falavam comigo.- Com licença.
- Majestade!- Interrompeu a conversa que trocava com o embaixador italiano para falar comigo.- Quanta honra...
- Boas noites, como ides?- Tentei não ser tão direto nos meus objetivos.
- Muito bem, e vossa senhoria?
- Fantástico.- Acho que saiu mais irônico do que pretendia.- Como vai vossa esposa?
- Bem. Está no camarote, foi um castigo trazê-la. Mulheres...- Riu feito idiota para o embaixador.
Luíza estavas de esperanças de mim, e este ser desprezível ousava esfregar na cara de todo o mundo a mulher adúltera que carrega um filho do rei. Se Maria Ana descobre, é de vez que fica mal-humorada.
Virei costas e fui procurar o seu camarote, um guarda guiou-me até lá.
Afastei a cortina apenas um pouco e vislumbrei os seus bonitos cabelos loiros.
- Luíza?- Despertei a sua atenção.
Assustada, levantou-se às pressas. A sua barriga estava enorme... a minha mão formigou para lhe poder tocar, para poder sentir o meu filho.
- Majestade!- Atrapalhou-se.- Podeis entrar.
- Não.- Permaneci ali, certificando-me que ninguém lá dentro me via. No corredor pareciam todos entretidos no átrio, longe daqui.- Não é sensato.
- Claro.- Baixou a cabeça.
- Vosso filho será um Bragança, Luísa.- Lembrei-lhe.
- Sim.
Estava mais quieta e silenciosa do que costume. Eu gostava do seu sorriso, onde estava o sorriso?
- Está tudo bem? Vosso esposo cuida-vos bem?
- Ele não quer saber, prefere homens.- Cuspiu.
Era um desperdício.
- Há algo que possa fazer por vós?
- Já fizestes o suficiente, eu creio.
Este era o meu primeiro filho...
- Vinde tomar um chá comigo amanhã ao palácio.
- Eu tenho chá em casa, além disso... não quero confrontar a rainha.
- O Palácio é enorme, nem dá para te cruzares com ela.- Revirei os olhos.
- Ela está a olhar para aqui como se me quisesse matar.
Recuei um pouco mais, pelos visto não era tão discreto quanto pensava.
- Ireis ao Paço ou não?
- Não sei. Não me apetece ser humilhada perante os estrangeiros, já me bastam os de cá.
- Estou livre às três. Até amanhã.- Apertei carinhosamente a sua mão antes de voltar ao meu camarote.
A criança ia morrer. É essa a maldição dos Bragança: o seu primogênito não sobrevive ou nasce morto.
Não quero preocupar Luíza, e mesmo sabendo o que acontecerá, não me deixa mais tranquilo.
Reparei que Maria Ana parecia soltar fumo pelo nariz. Esta mulher tem de entender o quanto antes que não sou de uma mulher apenas.
⭐👑⭐
- O espetáculo foi muito bom.- Helena sorria enquanto caminhavamos de volta à carruagem.
O seu entusiasmo era contagiante.
- Foi sim.- Concordei.
- Como se tivesses realmente prestado atenção.- Lucas sorriu travesso e corei pondo as mãos nos bolsos.
Passamos a noite de mão dada, enquanto Helena apreciava o show, eu aproveitava para decorar todos os seus traços, o seu sorriso, aquele brilho nos olhos... uma noite inteira a apreciá-la. Não podia pedir coisa melhor.
- Embaixador...
- Majestade.- Curvei-me, bem como a minha esposa e cunhado.
- Helena... Lucas, como está a Vitória?- Perguntou muito direito de modo cordeal.
A rainha analisava Helena de alto abaixo como se pudesse anotar os seus defeitos para começar a atacar.
- Enorme.- Sorriu orgulhoso.
- Uma boa noite.- Desejou reparando na impaciência da mulher a seu lado.
Helena acabou por entrar na carruagem com o pai e Beatriz, Lucas preferiu vir na minha e saiu a meio do caminho.
Não faço ideia do que passava pela cabeça deles, mas na minha eu sabia. Lucas estava a cometer um erro enorme e ia fazer mossa, ele é pai, tem um bebé em casa!
⭐👑⭐
- O Lucas?- Catarina esperava-nos entusiasmada.- A Vitória começou a gatinhar, ele tem de ver isto!- Pegou a filha no colo e beijou a testa da bebé sorridente.
Senti-me desfalecer sem saber que dizer-lhe. Eu não quero acreditar no meu instinto...
- Ele precisou de ir fazer um recado.- O papá contou com naturalidade e diria que até com uma pitada de satisfação.
É brincadeira?!
Beatriz parecia constrangida e desconfortável com a situação, tal como eu.
- Oh... um recado a esta hora, é?- Entristeceu-se.- Digam-lhe que escusa de entrar no quarto, se voltar.
Se. Pela maneira fria com que reagiu, não deve ser a primeira vez.
- Vamos princesa.
Partia-me o coração.
- Se não meteres juízo na cabeça do meu irmão, eu mesma ponho!- Confrontei o papá quando me certifiquei que Catarina já não nos ouvia.
- Helena, o teu irmão é jovem e...
- Catarina também e está aqui a cuidar da filha! Se ele não tomar responsabilidades, eu mesma tomo!! Lucas é pai, já não é um bebé! Se continuares a desvalorizar a situação então escusas de me voltar a dirigir a palavra.
Subi furiosa para os meus aposentos. Um bebé tem dois pais, não tem só uma mãe!!
Não consegui descansar muito, e de manhã percebi que não fui a única.
Catarina estava estranha e com razão. Permanecia quieta e calada, sem o seu habitual e afável sorriso.
Eu lamentava imenso a situação.
- Porque é que não vais passear? Eu posso ficar com a minha sobrinha.- Afaguei o seu ombro.
- Não é necessario. Obrigada Helena.- Acabou de comer e subiu novamente para o quarto.
Eu não queria ter este mesmo desgosto.
- Bom dia!- O meu irmão desceu enquanto ajeitava o colarinho da camisa.
Furiosa, saí porta fora sem olhar para aquela cara tranquila, como se nada se tivesse passado.
⭐👑⭐
- Quereis contar-nos algo?
- Se eu abrir a boca vai ouvir-se ao fundo do corredor, e eu ainda não eatou sólida aqui para armar um escândalo!- Segurei o rosário de esmeraldas com força, descarregando a minha raiva, vergonha e humilhação.
- Tudo bem.- Vivien acarinhou a minha mão e desabei no choro.
Vexada, tentei esconder o meu rosto.
- Alteza...
Ousaram aproximar-se, no entanto estendi a mão para que se afastassem. Aceitei apenas o lencinho que me estenderam.
- Ele simplesmente não quer saber.- Confessei magoada.- Quando estou mal, ele não quer saber. Parece uma pedra de gelo, olha para todas menos para mim... ontem estava uma grávida num camarote e ele foi vê-la. Acho que... acho que...
- Entendemos.- Cora aproximou-se e afagou as minhas costas.
Chorei como uma criança no seu peito. Eu nunca fui humilhada e ignorada desta maneira. Eu só precisava de uma palavra, só uma palavra gentil, D. João parecia falar-me sempre com desconfiança, como um teste.
- Alteza, é altura de abrir o jogo. Se o rei não souber como vos sentis, não irá mudar o seu comportamento. Tendes de lhe contar o que vos vai na alma.- Eliza aconselhou muito séria.
- Não. Eu... ele tem de decidir vir falar comigo.- Recusei assustada.
- Tendes de ir ter com ele. Têm de ganhar confiança mútua. Tendes de lhe mostrar a verdadeira mulher com que se casou.
Aff...
- Deve estar reunido com o conselho a esta hora.
- Eu posso ir falar com o mordomo.- Eliza sorriu-me.
Não me parecia uma boa ideia.
- Até já!- Fechou a porta.
- Eliza! Eliza von Lichstern!
- Desta vez tem de ser.- Cora beijou a minha testa.
- Ele deu-me a mão ontem.- Lembrei e apertei mais a Mila.- Foi tão bom e gentil...
⭐👑⭐
- Sim?- Deixei entrar quem quer que fosse, já sabendo que seria um dos meus irmãos.
- Com licença, majestade.- Era uma das aias de Maria Ana. Era bonita esta...- Tentei falar com vosso mordomo, porém disse-me que vossa graça estava livre agora.
- E o que vos trouxe até mim?- Pousei a pena e relaxei um pouco.
- Sua alteza real.
- O que tem?- Suspirei já cansado do assunto e a rapariga pareceu reprovar o meu comportamento.
- Deseja falar convosco.
Ai agora tinha desejos?!
- Pois então, trá-la até mim.- Arrumei a papelada e endireitei as costas.
- Com gentileza... e compreensão, sem qualquer tipo de reprovação.- Pediu hesitante.
- Eu sou a compreensão em pessoa.- Sorri certo de mim.- Ah e dizei a vossa senhora que tem de escolher aias de companhia portuguesas também.
- Com certeza, majestade.- Fez uma vénia antes de sair.
Ontem afastou-me. Agora quer falar.
Que mulher louca!
Abri a janela e acendi um charuto. Andava a beber e a fumar muito ultimamente... acabei por apagar o dito cujo. Agradaria à austríaca, pelo menos desta vez.
Entrou depois de bater, sem nenhuma cerimónia. Desceu uns 3cm e voltou a erguer-se, sempre de cabeça levantada.
Pelo véu ao pescoço, imaginei que estivesse a rezar.
- Disseram que querieis falar-me.- Apontei para o sofá ao fundo da sala e acabei por me sentar a seu lado.
- Eu queria desculpar-me pela minha atitude ontem antes de almoço.
- Não há o que desculpar.- Admiti, dando razão ao que Helena me disse.- Eu não devia ter sido tão precipitado.
Gentil, João. Sê gentil.
- Quero desculpar-me por não possuir o tato necessario à situação. Às vezes não sei a coisa certa a dizer e prefiro ficar calado para não vos magoar. Além disso não estou habituado a... tratamentos de silêncio.- Hesitei em dizer birras de criança mimada, mas não queria levantar mais confusão.- Prometo ser mais gentil a partir daqui.
- Prometo tentar ser um pouco mais aberta.- Declarou com um sorriso caloroso.
Sentia-me mais leve e tranquilo de uma maneira que não esperava.
A conversa acabou por surgir naturalmente e vez ou outra acabamos por rir juntos. Afinal ela não era assim tão desagradável.
Decidi almoçar com os meus irmãos com a minha futura/atual esposa.
- Como vai o cravo?- Perguntei a Francisca.
- Ham, não vai.- Pousou os talheres.- Decidi tentar o violoncelo.
- Muito bem.- Sorri mais aliviado. Os meus ouvidos não suportariam muito mais.
- Lady Henrietta mostrou-me como tocar e gostei tanto que pedi um professor.
- Acho que está a ir muito bem.- O Manuel contou-nos.- Está só a começar, mas já está melhor do que todos aqueles meses no cravo.
- Ei!- Ofendeu-se.
- Perdoai, no entanto... disseram-me que eram quatro irmãos e uma irmã.- Maria Ana reparou na falta daquele estafermo e ficamos os três apreensivos sem saber que dizer-lhe.
- É o Francisco. Ele foi embora, sem... dizer nada a ninguém.- A minha irmã entristeceu-se.- Tinha as melhores intenções, com certeza.
- Não vem ao casamento?- Maria Ana estranhou e perguntou-me diretamente.
- Toda a família tem a ovelha negra.- O Manuel riu e tentou encher o copo de vinho.
Claro que o impedi e tentei ser o mais pragmático possível.
- Ele não é bem vindo aqui.
⭐👑⭐
- A conversa parece ter corrido muito bem.- Eliza era a única nos meus aposentos. Escovava a Mila com cuidado.
- Correu e exclareceu as minhas dúvidas. Daqui a pouco vem uma prostituta ao palácio. Quero que instruas os empregados a usar o chá que o meu irmão pediu uma vez.
Parou e ficou a encarar-me chocada.
- Não o farei, é um ato horrendo.- Pousou a escova.
- Eliza, é uma mulher adúltera que vem tentar seduzir um homem casado. No tempo de Cristo seria apedrejada.
- Sim, todavia quem nunca pecou que atire a primeira pedra.- Citou irredutível.
- Eu sou uma santa! Virgem de corpo, pura de alma e farei de tudo para proteger a minha família!
- Alteza...
- Umas folhinhas de chá nunca fizeram mal a ninguém. Agora vai, que não temos muito tempo.
- Sim, alteza.- Curvou-se contra a sua vontade, triste pelo que estava prestes a fazer.
Devia de saltar de alegria!
Só teria de possuir o cuidado para não associarem o meu nome ao sucedido. Quem o faria, de qualquer maneira?!
⭐👑⭐
- Sentai-vos.- Ajudei Luíza a acomodar-se.
- Uff.- Fez uma careta até se sentir confortável.- Já sentia saudades do Palácio... e de vosso leito. É mais quente e confortável do que o que tenho agora.- Suspirou.- Arrependo-me todos os dias de não ter ido para um convento.
- Não podeis pedir a vosso marido para ficar em Lisboa?
- Porque havia de o fazer?
- Oras... estás mais perto.
- Own... sentes saudades, é?- Revirou-me os olhos.
- Sim, na verdade.- Encolhi os ombros.
- Eu sabia.- Sorriu.- Helena não se deixaria levar. Aquela miúda é incorruptível.
- Eu pedi-vos para vir para saber como está o meu filho, não para me tirares do sério.
Ouve silêncio e então falou:
- Não quero discutir. E sempre me trastastes bem, portanto...- Levantou-se e veio ter comigo.- Só trata bem a tua esposa. Se isso tiver de passar pela ignorância de noites como as nossas, melhor.
- Eu sempre fui um cavalheiro.- Puxei Luíza pela cintura e o meu coração parou ao sentir a sua barriga.- Faltam quantos meses?
- Dois.- Sorriu ao acarinhar o ventre.- Aqui.- Segurou a minha mão mais abaixo e senti algo mexer-se.
Era muito estranho!!
Era o meu filho. Ia ser firme e forte e seria o rapaz mais inteligente que...
- Queria tanto que fosse uma menina.- Murmurou com o sorriso mais doce que alguma vez vi.- Quero beijá-la antes de adormecer para afastar os sonhos maus, ver o seu doce e puro sorriso, escovar os seus cabelos todas as noites...
Então parou e o sorriso desapareceu.
- Um rapaz seria o mais justo e tranquilo.- Engoliu em seco mudado de ideias do nada.
Concordei com ela com um certo pesar. Cedo uma menina seria casada com um homem bem mais velho, ou acabaria como a mãe: com um homem como eu.
- Só rezo a Deus para que seja feliz.
- Será.
Senti uma intensa mágoa ao pensar no pior. Se não visse o seu rosto, sentisse o seu cheiro, beijasse uma vez... eu queria muito este bebé.
- O chá está a arrefecer.- Lembrei e sentei-me depois dela.
Contou-me como tem sido a sua vida até aqui, como passa os dias, a saudade das cartadas, de conversar com alguém que se importe realmente com ela. Parece uma vida ainda mais solitária do que se fosse noviça.
- Pensei que pudesse ser divertido, sabeis... a vida de casada não presta.
Acho que a de casado também não.
⭐👑⭐
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