24. O espião real
- Helena, estás bem?
- Sim.
A capela tinha um cheiro enjoativo a incenso. No Brasil tive tempo de ler, ouvir e rezar as missas todas. Não há sermão que não me tenha passado pelos ouvidos, não há necessidade, nem vontade de abrir o missal agora.
Aquele idiota incompetente reduziu-me a uma mera... plebeia.
- Não pareceis.- Continuou a segredar.
- Alteza!- Díonisia ralhou baixinho.- Estamos na casa de Deus.
- Na verdade, estamos na minha.- Barafustou a pequena zangada.- Dizei-me Helena.- Insistiu baixinho.
A infanta era só uma criança. Acariciei o seu rosto pela preocupação, apesar da idade.
- Uma dor de cabeça, só isso.- Sorri e beijei a sua testa, levantando um pouco o véu negro.
Estava a arder!
- Alteza, sentis-vos bem?
- Sim.- Sorriu.
Os seus olhos pareciam cansados. Estaria com febre?
- Porque não ides acabar de rezar para vosso quarto?
- O mano não me deixa sair da capela.- Lamentou.
- Francisca, estais com febre. Vosso irmão não deseja que adoeças.
- Tenha modos, Lencastre!
- Eu autorizei que Helena usá-se o meu nome próprio. A vós, não autorizei nem que falasses!
E o seu mau-humor está mais forte que o habitual. Era muito provável que estivesse mesmo com febre.
- Shh...- Maria pediu.- Estamos na igreja, que aconteceu afinal?
- A infanta está doente.- Disse-lhe e verificou, anuindo para mim.
- A febre de vossa alteza será curada com missas e evangelhos.- Decidiu.
- Funcionou a vossa lepra?!- Explodi, sempre baixinho.
- Díonisia, por favor. A princesa está doente.- Maria também insistiu.
- Eu cumpro ordens. Ordens do rei. Se diz que a infanta só sai para as refeições, então é o que a infanta fará.
- Pois temos pena.- Peguei na mão da menina e guiei-a até à porta capela, ao meio do corredor.
À luz do sol, sem toda aquela luz de velas, via-se o seu tom branco-esverdeado.
- Estais bem? Dói-vos algo?- Preocupei-me.
- A minha cabeça vai explodir.- Advertiu.
- Vinde.- Acompanhei-a até aos seus aposentos. Atrás de mim, ouvi Carolina juntar-se à discussão.
Onde estaria Luísa?
Arght! Isso não importa agora.
- Achas que o mano vai ficar zangado?
- Não, claro que não.- Sorri-lhe enquanto a empregada lhe desapertava o vestido.- D. João quer apenas o vosso bem.
- O médico já aí vem.- Maria informou.
Depois, aconcheguei a infanta entre os cobertores.
- Vais ficar bem.- Prometi.
- Obrigada, Helena.- Encolheu-se mais nos cobertores.
⭐👑⭐
- Já?- Luísa suspirou.
- Eu tenho uma agenda preenchida.- Atei a camisa e vesti os culotes.
- Hum...- Amuou.- Não estou com humor para ir para a capela.- Suspirou.- É aborrecido.
- Eu trocaria convosco de bom grado, mas as audiências não esperam.- Sorri certo de mim mesmo.
Luísa revirou os olhos e sentou-se, começando a vestir as meias.
- Vemo-nos mais logo?
- Não me parece. Tenho assuntos a pôr em dia.- Despachei-a.
- Tende um bom dia.- Saiu sorridente pela passagem.
- Peste!- Cantarolei farto dela mal ouvi a porta bater.
Só estou a aguentá-la até Helena ceder. No inicio Luísa era uma boa companhia, agora tornou-se maçadora e curiosa demais.
- Majestade, a infanta está a recuperar nos seus aposentos, o conde de Vimioso pede para...
- Recuperar?- Preocupei-me.
- Sim, majestade. Sua alteza está com febre, D. António está com ela.
Terei de a ir ver mais logo. Agora não há tempo.
- A Universidade de Coimbra pede a sua intervenção: as atividades de integração já mataram três rapazes este ano.
- Atividades de integração?- Estranhei.
- Chamam-lhes praxes, senhor.- O mordomo explicou relendo o relatório.
- Hum... ficarão suspensas até se saberem comportar.- Decidi.- Algum fidalgo?
- Não, filhos de burgueses.
- Nem sei porque é que insisto em perguntar.- Sorri satisfeito.
Quanto mais ignorantes os nobres se mantiverem, melhor para mim.
- Agendai uma visita até lá.
- Sim, majestade.- Apontou.
Quando a porta foi aberta para a sala do trono e revelou os meus súbditos, tanto fidalgos como pobres plebeus, a prestarem-me o seu respeito, eu tive a certeza que nasci na família certa, na altura certa, e não tinha maneira de agradecer a Deus por tamanha dádiva.
Sentei-me então no trono e comecei a ouvir as queixas e pedidos dos que me falavam, tendo sempre o cuidado de pedir a nobres diferentes que executassem a minha resolução do problema.
Manter cada um deles ocupado, mantinha-os de trela apertada.
Cachorros de trela apertada satisfeitos, não mostram os dentes nem ladram.
...
- Que dor de cabeça...- Suspirei apontando os últimos números.
- Majestade, não se vai deitar hoje?- O mordomo apareceu na biblioteca com um candelabro na mão.
- Ainda é cedo para isso.- Desvalorizei continuando os cálculos e consultando o livro.
- Majestade são... dez para a uma da manhã.- Consultou o meu relógio. Apanhado de surpresa, consultei o meu e confirmei.
- Podes ir deitar-te, Sebastião. Uma boa noite.- Fechei o livro e os meus apontamentos, levando-os comigo.
- Igualmente majestade.- Saiu após uma reverência.
Suspirei pegando no candelabro que iluminava o que escrevia e fui ver como estava Francisca. O palácio estava estranhamente pacifico a esta hora.
- Helena, eu não gosto de mel!- A porta estava encostada.
- Alteza, só faltam duas colheradas. Ouvistes: ordens do médico.
- Aqui o único que dá ordens é o meu...
- Já só falta uma!- Vi Helena enfiar uma colher cheia de mel pela boca grande da minha irmã.
- Iue! Isso não se faz!- Ri ao ouvir a minha irmã resmungar.
- Estou a ver que estás a recuperar depressa.- Pousei o candelabro e os livros na mesinha de cabeceira, ao lado de umas bonecas.
- Estão a envenenar-me João! Querem que coma mel!- Desesperou-se.
- Tem de ser, Francisca.- Insisti.
- Humpft!- Amuou.
- Só mais esta...- Helena insistiu.
A minha irmã negou de boca bem fechada.
- Quereis que faça como os bebés? Frente ao rei?
- Ele já me viu em...- Uma vez mais Helena aproveitou a oportunidade.
- Prontinho, não foi dificil, foi?
- Eu odeio-vos.- Deixou claro.
- Uma boa noite de sono e isso passa.- Helena sorriu certa de si. Claramente não sabia com quem lidava.
- Eu não tenho sono!
- Tendes de descansar, alteza.- Helena insistiu.
- Mas...
- Francisca, já está tarde.- Falei e aconcheguei-a.- Eu tenho de falar com Helena, enquanto tu rezas ao anjo da guarda, pode ser?
- Que remédio!- Voltou-se na cama, amuada e olhei Helena, que saiu comigo.
Fechei a porta e Helena ajeitou a manta que tinha pelas costas.
- Quando é que começou?
- Não sei. Toquei na sua testa e estava quente.
- Onde estão as outras aias?
- Maria está em casa a descansar, não creio que regresse antes do grande dia.
- Não quero comprometê-la.- Concordei.
- Luísa... nem desconfio onde esteja; Díonisia deve de estar nos seus aposentos, no sétimo sono e Carolina disse que estaria a rezar pela infanta na capela.
- Porque não fostes descansar?
- E quem olharia por vossa irmã?- Respondeu.
- Agradeço a vossa dedicação a minha irmã.- Admiti.- Há algo que possa fazer para vos recompensar?
- Para vós tudo tem um preço?- Indignou-se.- Talvez eu aqui esteja porque simplesmente me preocupe com a infanta.
- Sendo assim, obrigado Helena.
A minha mão estremeceu, com vontade de tocar a dela. Fechei-a com força, não fosse tomar vontade própria.
- Quereis saber algo mais?- Não sei dizer se o seu tom é de provocação ou de verdadeira curiosidade
- Que tendes lido ultimamente?
Que tipo de pergunta foi esta? Já agora o ultimo chá que bebeu também?
Ainda bem que sou rico, ou nem Luísa ficaria comigo.
- Um livro sobre espiões franceses.- Encolheu os ombros estranhando a pergunta.
- Espiões? Devia preocupar-me?- Sorri de animo leve.
- Pareço-vos francesa, majestade?
- Não, nem um pouco na verdade.- Helena era uma verdadeira tentação. Francesas são esguias e demasiado levianas. Helena é mais baixa e mais... substancial.
Voltei a fechar as duas mãos com força, para o caso de serem atrevidas o suficiente fora do meu controle.
- O que há de tão interessante nesse livro?- Indaguei instigado.
- A astucia vence a força. Nada que já não saibais.- Pareceu tentar lembrar-se de algo mais.- Mulheres levam sempre os seus objetivos avante sem nem precisar de sujar as mãos.
- Nada que já não saiba, algo mais?
- Lutar por amor, não pela pátria.
- Discordo completamente.- Sorri sem humor algum.- Caso por Portugal, não por mim.
- Sois rei, não espião.- Divertiu-se.
- E vós? Precisarias de ser rainha ou espia para trair vosso país?
O seu olhar ficou afiado, abriu a boca e voltou a fechar. As palavras que estava prestes a dizer, eram bem pensadas:
- Se me estais a perguntar se ficaria com Henry, pondo Portugal em cheque... não, não ficaria.
Isso significa que eu ainda tenho hipóteses.
- Mas por amor sim. Homens perdem grandes coisas por orgulho e arrogância.
Voltámo-nos preocupados quando ouvimos tossir dentro do quarto.
- Boa noite majestade.
Fiquei tão entorpecido que nem tive maneira de responder, ouvi apenas a porta bater.
Pareceu-me um recado bastante claro.
🌟👑🌟
Acordei sobressaltada com o barulho de espadas e resmungos distantes.
O Sol mal tinha nascido ainda, e a infanta descansava por fim. Foi uma noite dura, porém creio que a febre baixou.
Com dificuldade pelas dores nas costas, reparei que o rei praticava com o irmão António.
Acordar cedo para brincar aos piratas... Há gente que não tem mesmo o que fazer.
Voltei para o meu livro, ignorando os que D. João se tinha esquecido a noite passada. Contas não são muito interessantes para mim.
A dor nas costas era desconfortável, espero poder voltar a dormir na minha cama esta noite.
A barulheira que aqueles dois faziam também não colaborava. João há de ordenar à esposa que aguente o parto "com dignidade".
Esperei então em silêncio até a infanta acordar. Dispensei a empregada que costumava acordá-la para a oração da manhã, o rei com certeza compreenderá. Francisca precisa de descansar.
- Hum...
- Bom dia.- Sorri a seu lado quando vi que despertou.- Dormistes bem?
- Acho que sim.
- E sentis-vos melhor?
- Se for para voltar à capela, digo já que estou com uma dor de barriga insuportável.
Ri do seu aborrecimento.
- Creio que vosso irmão está ocupado e preocupado demais para querer saber disso.
- Eu gostava tanto de poder voltar a passear no jardim...
- Ainda não estás curada. Quando estiverdes bem podeis passear o quanto vos aprouver.
🌟👑🌟
- Ah irmão... donde vos vem tanta energía tão cedo?- António formou a mão em concha e bebeu da fonte do jardim, enchugando o rosto molhado na camisa.
- Café?- Diverti-me. Nem o pequeno-almoço tinha tomado ainda.
Estava ofegante, cansado, mas não podia amolecer. Os meus inimigos não amolecem.
- Eu acho que tem a ver com a Lencastre.
- Pois eu acho que estás livre de bruxaria. O teu palpite não podia ser mais falhado.
- Ah... Todos têm a sua fraqueza, João: Aquiles tinha o calcanhar, tu tens Helena.- Encolheu os ombros brincando com a espada.- Mentira, vossa fraqueza são todas as mulheres. Todas essas Afrodites que vos tentam a cada dia.
- E vais dizer-me que também não cederias? Não há fraqueza melhor que esta!- Sorri sacana.- Há coisa melhor no mundo que adormecer num par de peitos generosos depois de uma noite louca?
- Deus!- Fez o sinal da cruz.- E eu cheguei a pensar que abdicarias para ser padre!
Ficamos a encarar-nos, contudo não muito tempo depois já riamos a bandeiras despregadas.
- Por falar em padre...- Começou olhando as unhas.- Vosso confessor tem andado ocupado, pelo que sei.
- E que sabeis vós?
- Carolina de Saldanha. Depois do que fizeram na capela duvido que as suas almas descansem em paz.
- Deixa-me adivinhar: ontem à noite?
- Precisamente.- Embainhou a espada.- Lara, Luísa, agora Carolina. Tendes de deixar de arranjar prostitutas para damas de companhia. A tua irmã não tem de ser fantoche dos vícios desta corte.
- Que queres que eu faça? São influentes demais para deixar ir. É culpa da família se são devassas imorais.
- Que culpa tem a minha irmã, se é uma menina inocente que nada sabe do mundo. Imagina se te apanha no ato com Luísa, se descobre o que acontece verdadeiramente nos corredores deste palácio...
- Francisca nem sonhando será corrompida!- Declarei.
- A continuar assim será.
Era verdade. Bastava uma indiscrição delas, uma piada mal formulada... Carolina é casada!
- Eu tenho de ir. Tenho assuntos a resolver.
- Até mais logo irmão.- Despediu-se.
🌟👑🌟
-... e então a princesa desembainhou a espada e lutou com o dragão até lhe conseguir a língua. Fim.
- Helena, as tuas histórias são chatas. Nunca acabam com príncipes.- Reclamou deitada no meu peito.
Sorri aconchegando-a mais no cobertor e contra mim.
- Alguém tem de vos contar as histórias como elas são.
- Não há dragões, Helena.
- Não há principes por aí a salvarem princesas, Francisca.
- O meu irmão salva princesas!- Disse toda cheia de si.- O Manuel é um verdadeiro príncipe encantado.
Metade desse encanto podia ter ido para o irmão mais velho.
Estávamos na biblioteca vazia, sentadas no chão. Francisca estava aninhada a mim, bem aconchegada pelo seu cobertor mais quentinho e na companhia de uma caneca de leite quente.
- Lê mais uma história Helena.- Pediu.
- Não sei. As minhas histórias são chatas.
- Helena...
- Tudo bem.- Sorri e peguei outro livro da pilha que escolhemos.
- Os Lusíadas.
- Arght! Escolhe outro. Já sei isso de detrás para a frente.
- Eu gosto tanto do episódio de Inês de Castro.- Insisti.
- Pronto, mas ide logo ao ponto.- Aconchegou-se mais a mim.
🌟👑🌟
Ciências, não. Teologia, filosofia.... Ah! Cá está! Economia.
Eu sabia que havia de estar para esta prateleira. É onde estão todos os livros que preciso, porém me maçam ler.
- É mórbido. Fofo mas mórbido.
Intrigado, pus o livro debaixo do braço e procurei por Francisca. Não estava na prateleira detrás, estava depois dessa, encostada à parede entre duas janelas, ao colo de Helena. Frente a elas estava a longa mesa de madeira com alguns volumes e a seu lado vários outros livros.
Não pareciam ter-me notado.
- Homens são... homens.- Helena pareceu estranhar algo.
Afastei uns livros para que as conseguisse ver, porém elas não poderiam ver-me a mim.
Helena continuou a leitura, exibindo e analisando os desenhos com a minha irmã.
Reconheci depressa os versos de Camões na voz lenta e musical de Helena, naquela voz que entorpece e enfeitiça.
Meu belo rouxinol...
- Helena, quando crescer também vou ter maminhas grandes como tu?
Despertei dos meus devaneios chocado com a pergunta da minha irmã.
Por outro lado foi um descargo de consciência saber que não era algo que apenas eu reparava. Os peitos de Helena... saltavam à vista, por muito que os tentasse disfarçar.
O seu silêncio era envergonhado, com certeza.
- Sois uma descarada, sabíeis?- Levou a mão ao rosto. Um sorriso envergonhado brotava no seu rosto vermelho.
- Desculpa, eu só queria saber.
- Porquê?
- Porque são fofinhos e confortáveis.- Suspirou contente, como se tivessem a falar de qualquer outro assunto.
Entendi que não deveria ouvir esta conversa. Uma conversa de mulheres, onde Francisca encontrará respostas que não lhe saberei dar acerca do seu corpo, mas ainda assim não me senti mal o suficiente para ir embora.
- Daqui a poucos anos o vosso corpo mudará também.- Garantiu.- Ficareis com mais formas.
- Mal posso esperar.
- Podeis pois.- Garantiu aborrecida.- Quando o vosso peito crescer, o interior do vosso corpo amadurece também e passareis a sangrar todos os meses.
- O quê?! Porquê?- Ficou horrorizada.
- Porque é assim a nossa biologia, sei lá.- Tentou explicar.- Significa que o nosso corpo está preparado para ter um bebé, se não houver bebé o ciclo recomeça.
- Oh...- Entristeceu-se.- Tenho mesmo de sangrar todos os meses para ter maminhas?
- Para que quereis maminhas?!- Helena tombou a rir.
Eu ria por dentro... enquanto me obrigava a aguentar condignamente na minha posição. António engana-se, o meu ponto fraco não são as mulheres, mas o da minha masculinidade é.
- Já vos disse: são fofas e confortáveis, e ficam muito bem em vestidos.
- Jesus Cristo.- Divertiu-se e prosseguiu a leitura. Pouco tempo depois a minha irmã já ressonava baixinho.
- Deveríeis informar os guardas, andam esbaforido em busca da minha irmã.- Menti.
- Então primeiro sou traidora e agora raptora?
Meu Deus, como esta criatura consegue estragar uma conversa com uma só frase.
- Em que vos posso ser útil?- Perguntou baixo para não acordar a minha irmã.
- Está melhor?- Referi-me à menina nos seus braços enquanto me sentava no soalho de madeira frente às duas.
- Um pouco.- Suspirou.
- Nunca mais voltastes, sobre Maria...
- Pensei ter sido clara.- O seu rosto tornou-se frio e zangado.- Vossa atitude foi também bastante clara. Não vejo a necessidade de passarmos mais tempo juntos que o indispensável.
- Ow...- Franzi o sobrolho.- Perdão, não sabia que não me querias ver.
- Claro que queria! Quero tanto! Quem não gosta de ver o rosto que o humilha desnecessariamente é de maneira regular?!
Inclinei a cabeça para trás mordendo o lábio. Ela guardava rancor, sem dúvida alguma.
- Vós lá sabeis.- Levantei-me.- Cuidai bem dela.- Pedi saindo da grande biblioteca.
Este corredor era um dos mais vazios, os nobres só vinham aqui algumas vezes. Dessas poucas ocasiões, todas eram usadas para fornicar e satisfazer algum desejo imundo.
Helena tinha a obrigação de esquecer o assunto e aprender a lição, não repugnar a minha presença. Qualquer outra dama daria um dedo para estar numa sala fechada comigo.
- Os livros!- Resmunguei comigo mesmo, levando a mão à testa.
Que despassarado!
Voltei atrás e reparei numa meia dúzia de guardas a marchar na minha direção. Ignorei, até estranhar.
Faltavam duas horas para a mudança de turno.
Exercícios muito...
- Guardas não usam sapatos de tacão...- Murmurei recuando.
Estes não eram os meus guardas.
Mal dei um passo atrás e correram na minha direção, agarrando-me com força. Depressa me calaram com uma tira grossa de tecido.
Protestava enraivecido, querendo as suas cabeças de traidores numa bandeja.
- Humpft!- Dei um encontrão num deles.
Quem estava por detrás disto?!
🌟👑🌟
- Quer governar um país, só que não consegue lembrar-se de um par de livros.- Resmunguei aborrecida vendo os ditos em cima da mesa, bem na esquina.
Soltei-me da infanta com cuidado e ajeitei o xaile. D. João com certeza que precisava deles.
Olhei uma última vez para a menina e ajeitei o xaile que me caía pelos ombros. O rei ainda deve estar perto, provavelmente ao final do corredor. Acabou de sair afinal de contas.
- Hum! Humpft! Huuummmmm!
Corri ao ouvir tal coisa:
- Amarrem-no! Vamos! Ainda aparece alguém!- Um guarda comandava uns colegas. Havia uma passagem aberta na parede, atrás de uma estátua.
João! Estão a raptar o rei!
Preso, fixou o olhar em mim e fez sinal como podia para me afastar.
Não foi a tempo, porque senti um punhal junto à minha garganta.
- Soltem-me!- Pedi como pude.
- Ela vai também. Não temos tempo para isto!- Amarram-me como a ele e seguimos pela passagem.
Seis contra dois desarmados.
Era injusto e desonroso. Isto sim era traição!
Descemos vários lances de escadas e por vezes davam-nos empurrões. Os da frente iluminavam o caminho, consultando um mapa por vezes.
Os olhos de João magicavam algo por trás. Teria alguma ideia? Espero que não seja tolo para tentar uma saída agora. Iriam matar-nos sem hesitar, aqui e agora não temos hipótese.
Analisando bem a situação, é um tanto ou quanto suspeita: sabiam da passagem.
Nada de especial, todos os guardas têm de saber para segurança da família real, porém o caminho que percorremos deixou à muito de ser o Paço da Ribeira.
Parecem galerias. Não muito altas, talvez três metros, outras vezes mais baixas que nos obrigam a curvar. A humidade e o frio incomodam, devo ter deixado o xaile para trás, dos livros nem se fala.
Um carreiro de água corre sempre ao nosso lado.
Estamos debaixo de Lisboa, pelo que andamos devemos de atravessar a cidade, mas para onde?
Alguém lhes deve ter falado destas galerias. Não devem de ser mexidas desde o cerco de Lisboa e duvido muito que os Filipes tenham sabido delas.
João observava tudo com atenção, parecia amedrontado pelo caminho. Afinal quantas toneladas de terra e pedra estão acima de nós.
- Olha que é aqui.
- Não é nada, otário. É na próxima.- Os da frente discutiam o mapa.
Também não sabiam os caminhos. Se nos perdêssemos aqui... morreríamos antes de achar uma saída.
No que é que me vim meter?!
Um deles saiu para ver onde dava a dita saída e acabou por fazer sinal aos outros.
Olhei o rei, e o rei olhou para mim. Não sabíamos o que esperar do outro lado.
Ele ainda tentou protestar e soltar-se, o resultado foi uma pancada forte na cabeça com uma pistola.
Chegou mesmo a sair um fio de sangue.
Uma coisa era certa, eles não queriam matar-nos, ou já o teriam feito. Valemos um resgate milionário.
Não eram piratas contudo, eram demasiado organizados. Salteadores também não, ou não atravessariam os muros do palácio.
Víamos uma claridade no topo de vários lances de escadas. Estava sem fôlego já. Para além de estar toda marcada de vergastadas e dorida de empurrões por não manter o ritmo.
João tentava defender-me em vão. Estávamos sem saída.
Acabámos por aparecer numa cave de pedra, prosseguimos pelos corredores frios, antigos e húmidos até voltarmos a descer.
João remexeu-se muito, tentando andar para trás, ganhando apenas uns passos que depois perdeu. Eu simplesmente não tinha fôlego suficiente para isso.
Ele já tinha com certeza descoberto onde estávamos.
- Chegaram mais cedo.
- Tempo é dinheiro.- Respondeu um dos que nos tinham capturado para um gordo pestilento.
- Por aqui.- Abriu a porta e guardou as chaves num gancho, perto do bolso.
Masmorras. Dúzias de masmorras!
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