20. A promessa quebrada
- Ficareis para o jogo, Helena?
- Alteza?- Estranhei a pergunta do infante Manuel mal saí do quarto de Francisca. Até me assustei um pouco, não o esperava ali.
- Depois das 3 da manhã o rei inicia o jogo, soltando um leitão com o prémio pelo palácio. Quem primeiro o achar, vence.
- Parece divertido.- Comentei. Chegava mesmo a ser ridículo.- Tenho de perguntar ao papá, de qualquer maneira não creio que me deixe ficar.
- Ah... subestimeis vossa capacidade de persuasão.- Sorriu matreiro seguindo para o lado do irmão mais velho sentado no trono.- Até depois, Helena.
Com imensa vontade de ficar, vislumbrei o papá do outro lado do salão de baile. Gostaria tanto que me deixasse jogar.
- Por favor, papá. Eu porto-me bem.- Repliquei pela milésima vez. Alguns casais ao redor até já olhavam de lado.
- Comporta-te Helena.- Rosnou baixinho.
- Mas papá...
- Arght! Tudo bem. Eu não me importo de ficar um pouco mais.- Pegou no relógio de bolso e fez uma careta ao reparei bem nas horas que eram.- Umas 4 horas a mais.
Reparei que o embaixador me encarava e desviei o olhar muito depressa, olhando para a frente e endireitando as costas como se tivesse engolido uma vassoura. Estava tensa, envergonhada... que pensará da minha atitude censurável?
Era pouco mais de meia-noite, por isso sentei-me a rir e conversar com Carolina e Maria, na companhia de boas taças de champanhe fresco. Aproveitei para descalçar os sapatos desconfortáveis e pôr-me um pouco mais à vontade, sempre muito subtilmente.
Carolina abanava o leque, entretida com um rapaz do outro lado do salão, e Maria fingia que não via.
De repente, a música parou e as danças também.
- Atenção, o jogo do leitão começará em breve!- O mordomo anunciou e todos bateram palmas excitados.
Os mais velhos já tinham ido embora há horas. Diria mesmo que o papá era o único que se mantinha hirto e firme aqui, de resto eram só rapazes e raparigas da minha idade.
Fomos comandados para o jardim, onde o porco seria solto.
O rei apareceu pouco depois e pôs-se em cima de um banco para se fazer notar:
- O leitão!- Apontou para o bicho cor de rosa na alçada de um guarda.- E o prémio desta noite!- Exibiu alto um pequeno e delicado colar de diamantes e pouco depois pendurou-o de maneira segura ao porco.
Antes, eu só estava aqui para me divertir, agora estou aqui para ganhar. Ninguém se mete entre mim e um colar de diamantes!
O rei caminhou até mais longe e soltou o animalzinho:
- Estão à espera de quê?- Riu e todos desataram a correr alvoraçados atrás do leitão sem nem saber em que direção foi.
Fui praticamente abalroada no meio daquela confusão.
- Conseguirei aquele colar para vós.- Henry prometeu antes de correr também.
Descalcei os sapatos e senti a relva molhada e fofa debaixo dos pés. Chegava a ser ridículo: fidalgos a correr atrás dum porco.
Eu mesma conseguiria aquele colar e mostraria a Henry que não preciso que homem algum se interponha no meu caminho.
- Não ireis?- O rei riu, enquanto um empregado lhe enchia o copo com mais champanhe.
- Estou a aquecer. Na verdade não me apetece correr atrás de um leitão, nem mesmo por diamantes.
- Ora ora ora...- Bebeu.- Vinde. Sentemo-nos então. Hoje a noite é de festa.
- Posso saber qual a ocasião?
- Porque não? Afinal de contas todos saberão. É uma questão de tempo.- Sentou-se num outro banco de pedra e tomei o lugar a seu lado. Estava húmido e frio.- Os Bandeirantes descobriram mais minas de ouro, muitas mais e estas têm diamantes!
Ouro?
- Em que capitania?
- S. Paulo e outras mais para o interior.
- Lucas...- Sorri.- Terei todos os colares de diamantes que desejar!- Festejei.
- Mandarei erguer palácios, bibliotecas, conventos, comprarei o próprio papado...- Olhou para as mãos.
É como se todo o mundo estivesse ali agora.
- Portugal será o ícone da Europa.- Sorriu triunfante para o luar.
Todo o poder e riqueza num rapaz de 18 anos. É um plano ambicioso.
- Longa vida ao rei.- Bebi do seu copo e ele mesmo pegou na garrafa e brindou comigo, bebemos juntos depois.
...
- E se fossemos ver como corre a caçada?- Indaguei.
- Estou bem aqui.- Aninhou-se mais no meu colo.
- Henry prometeu que me traria o prémio.- Suspirei.
- Porquê esse suspiro?- Estranhou sentando-se e olhando para mim.- É um colar barato, reles. Eu posso dar-vos mais. Eu posso dar-vos o mundo inteiro, basta pedires Helena.- Tocou o meu rosto.
- Majestade, por favor.- Afastei-o. João estava bêbado.
- Espera. Dá-me só mais uns minutos.- Murmurou encostando as nossas testas, o seu polegar tocou os meus lábios e senti-me corar.
Talvez eu não quisesse afastá-lo assim tanto.
- Dizei.- Murmurou.- Que quereis?
- Majestade?
- Que é que preciso de fazer para que fiqueis a meu lado? Para que sejais minha?
- Vossas palavras são tão cruas e diretas que ofendem.- Afastei a sua mão de mim.- Eu não tenho preço, João.
- Todos têm.- Sorriu divertido.- Vou fazer-vos reconsiderar. Sereis minha como eu sou vosso.
O que é que isso significa?
- O meu pai deve estar a estranhar a minha demora.- Levantei-me, esgueirando-me daquele clima...
João não se mexeu, simplesmente abriu um sorriso matreiro.
- Eu não sou um jogo a ser jogado, não sou uma partida apostada, não sou um prémio a ser tomado. Jamais conseguireis alguém assim.- Recompus-me.- Tenha uma boa-noite majestade.
Para ele era sempre tudo muito fácil. É rei! Basta pedir e tem o quer. Eu não me dou ao luxo de ser assim, sou delicada, sensível e acima de tudo, uma dama.
⭐👑⭐
- Outra vez...- Senti aquela horrível e corriqueira dor no ventre.- Bianca!- Chamei dorida.
- Bons dias, Helena!
- Não para mim. As minhas regras chegaram mais cedo.
- Hum... É normal.- Sorriu.- Irei preparar-vos o banho e avisar que não ireis hoje para o palácio.
- Obrigada.
Mal saiu destapei-me com calor, vendo a cama manchada de vermelho. Parecia que tinha havido um homicídio por aqui.
Meu Deus, foi por muito pouco que não me esvaiei em sangue na frente de todos; que vergonha!
- Helena?- O papá bateu à porta do lado de fora.
- Sim?- Sentei-me depressa para tapar aquela chacina.- Entre!
- Bianca contou-me o que aconteceu.- Caminhou e sentou-se na cama a meu lado, dando-me um beijo na testa.- Irei para o palácio, mas voltarei para o almoço. Quereis que vos traga algo?
- Não, estou bem papá.- Abracei-o.- Tem um bom-dia.
- Igualmente, luz dos meus olhos.
Sorri com as suas palavras.
- Ora, o banho está pronto.- Bianca bateu antes de entrar com uma atitude compreensiva.
- Eu também já estava de saída. Até mais logo, Helena.
- Adeus, papá.- Despedi-me e mal ouvi a porta do quarto bater, levantei-me às pressas, abrindo a porta do quarto de banho.
- Ah...- Relaxei ao entrar na banheira com água bem quente, como gostava.
- Está aqui o desjejum.- Bianca deixou uma bandeja com chá e biscoitos ao alcance da banheira, na mesa de apoio.
- Estou enjoada de mais.- Senti um nó na garganta de sentir o aroma do chá.
- Tendes de comer algo, Helena. Entretanto irei fazer vossa cama de lavado para então vos banhar.
- Obrigada Bianca.- Agradeci e então fechou a porta.
Um tempinho só para mim... Peguei no livro na mesa de apoio e revi o que tinha escrito. Que haveria mais a saber acerca de Maria Ana? Uma mão cheia de peculiaridades com certeza.
Seria tão mais desafiante ser o rei a descobrir os gostos da esposa, com o tempo e paciência que um marido tem de ter. É essa a magia da paixão, do namoro, não é?! Conhecer o outro, amá-lo mesmo sabendo dos seus defeitos e aprender a amá-los também. Amor é o maior e mais arriscado jogo que se pode fazer e é isso que lhe dá a adrenalina.
E aquilo que disse ontem?
João estava bêbado, bêbados não sabem o que dizem ou fazem. Além disso agora, eu sou rica! Lucas é governador na capitania que mais rende ao reino. Esqueçam o açúcar e o café, o que está a dar é o ouro!
- Prontinho.- Bianca entrou no quarto de banho e suspirou aliviada.- Vamos então ao banho...
Passei o restante do dia junto da lareira enrolada no robe quentinho. Lia e por vezes dormitava, sempre na boa companhia de um chá de limão bem quente e doce, por vezes imaginava como seria a jóia perfeita...
⭐👑⭐
- Helena, estás muito calada. Está tudo bem?
- Aham.- Sorri continuando a comer o salmão.
- Queres contar-me algo? É alguém que te incomoda?
- Não papá.
Juntei os talhares num dos lados do prato, levantei-me e puxei o papá pela mão.
- Helena, eu ainda não acabei.
- Papá, vem por favor.- Sentamo-nos junto da lareira, já na sala de estar.
- Que foi meu amor?- Perguntou.
- Papá, sê sincero comigo.- Pedi.
- Mas eu sou sempre Helena.- Sorriu.
- Tu tens alguém papá?
- Como assim alguém?- Estranhou.
- Sabeis... uma companhia, uma senhora.
- Helena, nós já...
- Eu sei papá, mas eu quero saber. Saber a verdade e não levar uma bronca outra vez. Não tem mal.- Tentei acalmar o seu temor em relação a mim.
- Helena, não é ter alguém. É gostar de alguém, nutrir um bom sentimento de amizade pela pessoa, não é estar apaixonado em relação à outra pessoa.
- Então sempre há alguém.- Tentei não gritar indignadíssima.
- Sim, lembrais-vos da condessa Beatriz, a viúva? Bem... temos estado próximos.
- E mesmo assim mentistes quando vos confrontei.- Cruzei os braços zangada.
- O que é que vistes nela?- Essa mulher tinha de ser muito diferente.
- Não sei ao certo. Era uma mulher só, eu também. Damo-nos bem.
- E...- Engoli em seco.- Já pensastes em casar com ela ou... trazê-la para viver cá em casa?
- Não.- Contudo silenciou-se depressa.- Sim, mas não me parece sensato. É um sentimento conformista, apreciados a companhia um do outro, temos gostos semelhantes... Nunca voltará a haver alguém tão especial para nós como aqueles com quem casamos.
- Oh papá...- Abracei-o ao pressentir a mágoa que sentia.- Adoraria conhecê-la.
- Dar-se-ão muito bem, vocês duas.
Sorri sem muita vontade.
- Quem sabe...
- Agora vou voltar e jantar.- Beijou-me a testa e sorri envergonhada.- Eu estou bem sem sobremesa. Ficarei aqui à tua espera.
Saiu e peguei no livro na mesa de apoio.
- Sentis-vos melhor? Soube que ontem estivestes indisposta.
- Oh sim.- Corri quando D. João perguntou. Tinha acabado de lhe falar em mais preferências da futura esposa. Dei-lhe também a ideia da personalidade que possuía, embora fosse um pouco duvidoso: Carlos nunca diria se a irmã era uma fraca venenosa, mas com certeza Maria não será assim.- Acontece.
Não me sentia à vontade a seu lado. Não esqueci o sucedido naquela noite. Coisas muito sérias foram ditas, dentre elas, várias ofensas à minha honra.
- Entendo.- Sorriu caminhando comigo, lado a lado pelo corredor vazio e iluminado pelas janelas que faziam brilhar os cristais e ouros dos castiçais apagados.
- E convosco? Está tudo bem?
- Creio que sim.- Suspirou.- Ainda não recebi o embaixador inglês. O desgraçado também não parece preocupado com isso, já que fica mais tempo pelos jardins a fazer sei lá o quê.
- E qual é o mal?- Não entendi a indignação. Havia tanto a ser falado e ele só voltada a conversa para esse lado?!
- Oras! Se ele quer falar comigo tem de vir aqui ter, não é Helena?!
Oh... João achava-se o Sol, entendo.
- Talvez.- Sorri divertida.- Ferveis em pouca água, já vos tinham dito João?- Usei as suas próprias palavras contra si.
Um pequeno sorriso divertido surgiu no seu rosto.
- Vosso pai tem andado de bom humor... alguma novidade que eu deva saber?- Mudou de assunto.
- Não. Está tudo como de costume.- O rei também achava isto estranho, não são coisas da minha cabeça!- Quero dizer... com que frequência é que vocês, homens, procuram uma companhia feminina?
- Perdão?- Cruzou as mãos atrás das costas.
- Sabeis... para concretizarem as vossas vontades e desejos.
- Oh bem... esta conversa é um pouco íntima demais, parece-me justo que eu lhe saiba o contexto.
- Desculpe.- Fiz-me vermelha. Claro que não! Somos amigos mas isso é realmente íntimo, não são conversas que se tenham.- Eu agi sem pensar, não era para...
- Helena, há algo que vos preocupa e eu adoraria ajudar.
- Não me parece certo partilhar segredos íntimos convosco, principalmente acerca de alguém que conheceis tão bem.- Respondi após refletir.
- Helena, acima de tudo somos amigos.- Pôs a mão sobre o meu ombro, num ato de intimidade não tão íntima que se torna-se ofensiva, ainda assim estremeci, espero que não tenha notado.
- O papá... Ah não. Eu não consigo ter esta conversa!- Tapei o rosto envergonhada.
- Estais a falar com o homem com mais amantes desta corte, mulher!- Divertiu-se.- Que vos apoquenta?- O seu tom leviano ao proferir tal coisa provava o que eu já sabia: mesmo que acontecesse algo entre nós (uma remota possibilidade) eu seria apenas mais uma, não seria a tal.
- Bem... A verdade é que também tenho reparado nesse bom humor do papá. Lembrais-vos quando me fostes visitar e ele não estava? Chegou bastante tarde e tinha em si o cheiro a perfume de mulher. Num outro baile parecia muito divertido com uma dama viúva que já nem me lembro quem é. Eu... eu não sei se consigo mastigar a ideia de o papá ter alguém depois da mamã. Sei que já se passou imenso tempo, porém é tão estranho...
- Estou a ver.- Refletiu.- Sinceramente o marquês não me parece o tipo de homem que pagaria por companhia.
- Mas claro que não!- Indignei-me.
- Por outro lado se houver algo entre ele e essa viúva não tem mal pois não? É completamente legítimo. São dois seres sós que se complementam. Estão a ser felizes, não querem prejudicar ninguém.
- Eu estou aqui. O papá não está sozinho!- Senti as lágrimas à flor da pele.
- Eu sei, Helena.- Adoçou a voz e falou mais baixo.- Mas não vais ficar com ele para sempre. Passaram-se imensos anos desde a morte de vossa mãe, não vos parece justo que vosso pai ame novamente, que tenha quem cuide dele? Nunca nenhuma mulher ocupará o lugar de vossa mãe no coração de Eduardo.
- Hum!- Amuei. Odiava admitir que tinha razão.- E se fosse vosso pai? Aceitarias assim de tão bom humor um outro relacionamento de vosso pai?!
- Helena, eu tenho umas dezenas de irmãos bastardos por aí.- Semicerrou os olhos em descrença.- A mim tanto me faz.
Mentiroso!
- Porque não tentais falar com ele? Mostrar-vos aberta a qualquer situação que vosso pai esteja a passar. Talvez não vos conte por receio de vossa reação.
- Helena, que bom ver-vos por aqui.- O juiz Souto Maior atravessou o corredor.- Majestade.
- Souto Maior.- Cumprimentaram-se muito amigáveis.
- Vossa facilidade em fazer amigos é notável.- O rei falou após Souto Maior desaparecer.
- Sou apenas gentil, majestade.- Sorri.
- Vi-vos dançar com o embaixador.
Parece que a conversa vai tomar o rumo que deve, desta vez.
- Divertiste-vos?- Indagou.
- Foi uma noite bastante agradável, sim.- Tentei não corar.- E vós? Divertiste-vos?- Virei a conversa.
- Sabeis que não falava acerca da noite, mas de um momento em concreto.
Senti-me corar.
- Também dancei com o juíz. Porque vos incomoda com quem danço?
- Não me incomoda, fiz uma pergunta inocente.- O seu sorriso era jocoso.
- Pois sim. E porque olhavas para mim enquanto dançava?- Atirei.
- Calhou.- Encolheu os ombros.- Não houve nenhuma dama que me despertasse o interesse, as melhores senhoras estavam um pouco ocupadas.
- Porque ninguém trocaria a sua companhia pelo Rei.- Gargalhei.
- Zoais de mim?- Levantou a sobrancelha, desta vez era uma pergunta feita de ânimo leve. Era a brincar.
- Sim, desta vez sim.- Arrisquei.- Henry não me trouxe o colar como prometido.- Contei.- O que se passou à duas noites foi grave João.
Reparei que as suas mãos se tencionaram um pouco, e por isso cruzou-as atrás das costas. Ele também estava desconfortável com o ocorrido.
- Lembrais-vos ou bebestes demais até para isso?
- Não sou bêbado algum, Helena.- Resmungou.- Lembro-me sim do que aconteceu, e ao contrário de vós, não me arrependo de nada que tenha dito, nem agiria de outra forma se pudesse voltar atrás.
Tentei balbuciar alguma coisa, porém não me lembrava de nada a ser dito. Que é suposto dizer? Não é como se fosse algum tipo de declaração, é algo pior que isso.
- Majestade. Lady Helena.
Lady Helena... Aquele arrepio na espinha voltou, forte e impiedoso.
- Sim?- Perguntamos ao mesmo tempo ao embaixador.
- Parece-me que agora seria uma boa altura para falar com vossa majestade, isto é, se milady não se importar.
- Oh não. Já tínhamos acabado.- Encarei o rei que me fulminou.- Quem sou eu para me impor sobre os assuntos de Estado, não é verdade?
Olhei de soslaio para o inglês e rapidamente desviei a atenção para o jardim lá fora. Eu sentia muita vergonha. Eu estava muito tramada! Onde é que me vim meter?!
- Até mais logo, majestade.
- Adeus, Helena.
Um conde inglês e um rei?! O que raios é que te deu para voltar para aqui, Helena Brotas Lencastre?!
⭐👑⭐
- O embaixador não larga os jardins. São tão desagradáveis por lá que tem de vir para cá mergulhar nos nossos?
Dionísia bebeu o chá com o veneno das suas palavras que todas acharam divertidas.
- Velhaca.- Resmungou Francisca bordando o seu lenço.
Sorri subtilmente à sua franqueza.
- Eu acho o embaixador simpático.- Admitiu pousando o pano no colo.- Deu-me um malmequer hoje de manhã, vês?- Apontou para a flor branca no cabelo.- Para todos eu sou só uma criança ingénua que não sabe nada. Para ele posso ser uma criança ingénua, mas não invisível.
- Dai-lhe mais uns dias e vereis que não volta.- Aticei.
- Helena!- Resmungou e pouco depois voltou a sorrir.- Vamos, estou a ficar com frio.- Entregou o bordado a Maria e ajeitou o xaile.
- Mandarei fazer uma chávena de chocolate quente.- Confidenciei.- Agrada-vos?- Perguntei sabendo já a resposta.
- Muito!
- Boas tardes, posso falar-vos?
Senti as mãos suarem ao ouvir aquela voz com sotaque carregado.
Francisca olhou-me com uma feição animada:
- Não demoro nada, prometo.- Avisei-a.
Era muito embaraçoso ter uma conversa frente às outras aias de línguas bifurcadas.
- Que quereis?- Rosnei baixinho.
- Queria saber se podíamos sair um dia destes ou...
- Quê?- Indignei-me. Ele nem tinha conseguido o colar que prometeu!
Só ouvia aqueles risinhos idiotas atrás de mim. Isto é assim em Inglaterra?! Dançam uma vez e pronto?!
- Hoje à noite?
- Não.- Sorri em descrença. Só podia estar a brincar se achava que iria acontecer! O papá teria uma apoplexia mal soubesse!
- Talvez amanhã?
- Tenho compromissos.
- No sábado, quem sabe?- Tentou uma vez mais.
- Tenho muitos compromissos, e antes que tente o domingo à hora da missa...- Interrompi-o.- Não vai acontecer.
Voltei para o lado de D. Francisca de mãos a tremer.
- Devias ter aceite.- Sussurrou baixinho.
- Porque aceitaria sair com alguém que não gosto?- Pasmei-me.
- Então porque tremes e porque coras?
Pasmada estou eu, agora.
- Está frio!
- Pois claro.- Sorriu.- Helena, quando ireis outra vez à livraria?
- Não sei, quando precisais?- Sorri-lhe, feliz com a mudança de assunto.
- Precisar não preciso, a biblioteca está apinhada de livros, mas... quero mais livros como os que me trouxeste da última vez.
- Muito bem. Amanhã de manhã, parece-vos bem?
- Sim, quando voltares o mano pagar-te-á.
- Dizei-me apenas quantos livros quereis e de que tipo.
Embora Francisca saísse frequentemente com o rei, nunca iam àquela parte da cidade. O rei dizia que era mal-frequentada. Sua majestade esquece-se que são os burgueses que lhe pagam os impostos!
⭐👑⭐
- Que feitio aguçado... - Diverti-me ao ver a bela dama ir embora irritada.
Ouvi rumores que anda pela cama do rei. Não creio. É impossível! A pureza da sua alma é visível a um cego. As suas bochechas coram tanto quanto as rosas... Seria um ótimo partido para casar. Para além do mais, sendo filha de um marquês terá um dote que me deixará rico!
Parece que não é desta, Emily!
16 de Fevereiro de 1708
Vossa Majestade;
A seu serviço e como pedido vim servir a Inglaterra para Portugal. A minha tarefa não tem tido sucesso, lamento informá-la.
O rei faz de tudo para não me receber, insiste em fazer-me esperar e Inglaterra não pode esperar agora. Farei de tudo o que estiver ao meu alcance para persuadir D. João a ajudar-nos, mas não descarregue toda a sua fé aqui.
Algo que sei de fonte segura é o facto do rei estar noivo. Irá casar com Maria Ana da Áustria (Deus o salve! Que os dois sabemos como é insuportável!), ainda não têm a certeza do dia, mas creio estar para breve já que também me disseram que os coches que mandou fazer na Holanda estão a postos para entrar no Império Austro-Húngaro.
De momento nada mais me ocorre, tirando toda a riqueza e ostentação em que esta corte vive. Quase tão desafogados quanto a França, diria eu.
Abraços de vosso sobrinho e um cumprimento para meu tio;
Henry Hyde, Conde de Clarendon
Parece-me muito bem. Não há realmente nada a dizer. A conversa que tive com o rei hoje foi apenas para marcar uma nova audiência para amanhã após a hora de almoço.
Que seja desta é o que desejo!
Faz uns dias que não escrevo a Henrietta... deve estar nas sete quintas por não me ter por perto. Agora qualquer mal-intencionado pode corrompê-la.
16 de Fevereiro de 1708
Adorada irmã,
Espero que esteja tudo bem convosco e com a família, a minha estadia por aqui irá demorar um pouco, portanto podem ir festejando a minha ausência.
Aqui, em Portugal chove um pouco menos que aí, aliás escrevo-vos à luz dá vela, com o Sol da tarde encoberto pelas nuvens negras que me vão salpicando o vidro da janela com a chuva abençoada.
As flores têm cores mais vivas aqui e as rosas, as mesmas que temos no jardim, aqui têm um cheiro mais intenso e maravilhoso que por aí. Até as damas são diferentes...
Não é costume dos portugueses fazer desporto. Aliás, só equitação e para a caça, nem ténis, nem futebol fazem parte dos seus costumes.
Chá.
Isso sim bebem muito eles. Em delicadas chávenas de porcelana chinesa como aquela do palácio. Há de todos os sabores praticamente, e bebem-no a qualquer hora do dia e não apenas ao desjejum e às 5 horas da tarde.
Há bailes, e doces e barrigas fartas. Muito ao contrário de Inglaterra, que qualquer dia tenho de começar a pedir esmola de porta em porta.
Não há muito mais que tenha para te dizer, desejo apenas que me escrevas de volta e podes passar tudo o que inclua Emily.
Fica bem;
Henry Hyde, Conde de Clarendon
Selei as cartas, a da minha irmã com uma flor dentro, e chamei o mordomo.
- Envie-as para Inglaterra o quanto antes.- Pedi.
- Com certeza.- Anuiu.- Vossa mercê, acabou de chegar um bilhete do palácio.- Pegou da bandeja e entregou-ma.
- Obrigada, podeis ir agora.- Mal fechou a porta e abri a carta às pressas.
Caro embaixador,
Helena amanhã de manhã estará numa das livrarias próximas ao Terreiro do Paço, aquela que é frente a uma florista. Entenderei se vos cruzarem por acaso e para efeitos futuros... Este bilhete nunca existiu.
A infanta.
Que menina obstinada! Não sei o que fiz para lhe ter caído nas boas graças, mas aproveitarei a coincidência com todo o gosto.
Quenina tramada...
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