17. Primos?! O Papa não quer saber!
- Vamos, Helena, o rei não espera!- Bianca tentava fazer uma trança apertada, enquanto eu ajeitava os culotes e a camisa.
- Se eu soubesse que teria de me levantar tão cedo, teria recusado!- Resmunguei quando senti a trança ser apertada com força.
- Ireis passear com o rei. Há milhares de mulheres que matariam para estar no vosso lugar.- Ralhou pondo a capa sobre os meus ombros.
- O pior é que eu sei que é verdade.- Puxei uma ou duas madeixas de cabelo. Estava melhor assim.
Bianca passou um pouco de pó branco pelo meu rosto, nada muito exagerado, era muito cedo para parecer um cadáver.
- Estais maravilhosa.- Suspirou contente.
- Como de costume.- Gabei-me para o espelho.
- Vaidade é pecado!- Bianca tratou de repreender a minha brincadeira com um sorriso amoroso.
Saí dos meus aposentos em direção ao pátio, tendo o cuidado para não fazer muito barulho ao caminhar pelos corredores que rangiam onde pisava. O papá não tinha... conhecimento deste passeio. Iria enervar-se sem necessidade, portanto é bom que se mantenha feliz no seu desconhecimento.
Quando cheguei ao local combinado, o rei verificava a sua cela junto do estribeiro.
- Bons dias.- Falei. O ar condensava instantaneamente na minha frente e o céu já se mostrava mais claro, porém ainda longe de amanhecer.
- Bons dias, Helena.- O rei usava também uma capa, mas não estava tão... aperaltado como de costume.- Pronta?
- Desde que nasci.- Brinquei e montei o meu cavalo.
- Vinde.- D. João fez sinal com a cabeça de forma paciente e então segui-o pelo portão dos fundos.
- Que é que vos incomoda tanto?- Tomei a palavra depois de estarmos distantes o suficiente do palacete.
- É assim tão óbvio?- Revirou os olhos.
- Para quem andava sempre de cabeça levantada, sim.
Suspirou derrotado.
- Já alguma vez fizestes algo que não gostavas, mas ainda assim era fundamental para que os outros fossem felizes, mesmo que fosses infeliz para o resto da vida, Helena?
- Para o resto da vida acho que não.- Sorri-lhe.
- É... não temos todos a mesma sorte.
- Quereis ser mais concreto ou...?- Tentei saber. Não conseguia ajudar assim.
- Leopoldo respondeu e aceitou.
- Leopoldo... da Áustria?- Lembrei-me.
- Esse mesmo.
- Quereis casar com Maria Ana de Áustria?!- Surpreendi-me e parei o cavalo.
- Querer não é o termo certo, mas sim.- Encolheu os ombros.
- Ouvi dizer que é bastante culta. Grande apreciadora de livros e óperas...
- Somos primos direitos.- Sorriu-me com ironia.
- Iue! Lamento, eu não estou habituada a montar o puzzle de todas as monarquias europeias. Isso é permitido? Sei que se costumam casar com familiares distantes, mas primos direitos?!
- Estamos no comando da Europa, Helena. O Papa não quer saber se somos primos ou desconhecidos.
- Verdade.- Constatei.- Quer dizer, é vossa prima, sabeis do que gosta, conhece-la. Não pode ser assim tão complicado, certo?!- Prossegui.
- Nós... nunca nos vimos.
- Oh...
Esta coisa dos casamentos arranjados parecia ainda mais complicada à distância.
- Com toda a certeza será bonita.- Sorri incerta. Devia ser ser feia como tudo.
- Nem vós acreditais em vossas palavras.
- Beleza interior conta.- Encolhi os ombros.- Com certeza terá imensas qualidades.- Tentei animá-lo.
- E é por isso que preciso de vós.
Ai ai ai...
- Dizei-me.
- Ireis ajudar-me a estudá-la. Rotinas, operas e livros favoritos, gostos, manias. Quero saber tudo!
- Entendo. É uma grande tarefa e empenhar-me-ei para a cumprir da melhor forma.- Aceitei a tarefa com convicção. Iria fazer a melhor pesquisa de todas!
- Sei que sim.- Parecia mais tranquilo, já que a sua feição voltou a ser dura e fria, como em Lisboa.
- Ireis dar-lhe uma oportunidade?
- Oportunidade?- Estranhou.
- Sim. A oportunidade de tentar um casamento de verdade, sem sentimento mas com respeito e admiração mutua.
- Helena, a única coisa de que preciso é um herdeiro legítimo.- Sorriu como se fosse tola.
- Nem ireis tentar?!- Enfureci-me.
- Creio que isso seja já de minha conta. Sabeis que nas cortes europeias se treinam as jovens mais bonitas da famílias nobres para serem concubinas de duques, ou até mesmo de reis?
- Pois sim, mas sois rei de Portugal, para bordel de luxo basta a França!- Enfureci-me com as suas palavras. Este rei estava mais para prostituto de luxo gratuito.- Ireis assinar um casamento a contar com uma rameira?! Porque é que não me surpreende?- Resmunguei.
- Ferveis em pouca água com assuntos de pouca importância, Helena.- Desvalorizou divertido. Ah! Agora ele ri!
- Brincar com uma mulher é um assunto de pouca importância para vós?!- Parei o meu cavalo na frente do dele, impedindo-o de continuar.- E se ela brincar convosco também? Não é uma mercadoria!
- Que dizeis?
- Claro que para o espécime macho latino é facílimo ter quantas amantes quiser, porém a rainha? Poderá ter amantes?- Desafiei com um sorriso.
- Creio que um rei seja tarefa suficiente para se ocupar.- Respondeu zangado e desviou-se do meu cavalo.
- Outra resposta que não me surpreende.- Sorri frustrada.- Pedis-me ajuda, mas não quereis ser ajudado, essa é a verdade.
- Donde sabeis tanto acerca de homens, Helena?- Desafiou divertido.
- Não ando a treinar para rameira, se é o que quereis saber.- Respondi com firmeza e gargalhou.- Eu leio, majestade.
- Ficções.
- Factos!- Mantive a firmeza da minha voz.- Porque homens são iguais, só mudam o exterior.- Sorri.- Vossa tia...
- Que tem minha tia? Deixai-a com Deus, mulher.- Revirou os olhos.
- Desde nova, apaixonada por Charles e surpresa das surpresas: o inglês tinha mais filhos e amantes que Satanás.
- D. Catarina de Bragança tinha um problema.- Desculpou-se.
- Sim, a tola amava-o.- Respondi em tom de desafio.
- Helena, tendes apenas de pesquisar sobre Maria Ana. Descontraí um pouco.- Sorri.- Tendes de arranjar um homem.
- Lá por estares prestes a afogar-vos não significa que todo o barco tenha de ir ao fundo convosco.- Sorri.
- Metáfora de mau gosto.- Semicerrou os olhos, no entanto um pequeno sorriso tomou os seus lábios.
Uns metros mais à frente parou o cavalo e amarrou-o a uma árvore:
- Onde ides?- Estranhei.
- Tomar o pequeno-almoço.
- Aham...- Tentei olhar em redor, procurando alguma árvore de fruto ou animal, porém não achei nada.- Que é exatamente...?
- Vinde. Não irei raptar-vos.- Abriu espaço por entre as árvores e arbustos.
- Não é do rapto que tenho receio.- Murmurei amarrando também o cavalo à árvore.
- Eu sou um homem honrado, Helena, jamais tentaria algo contra vós.- Disse com uma seriedade fora do comum.- Por quem me tomais?
- Por rei.- Passei à frente dele. Uma cabana?
Os arbustos e árvores não deixavam ver muito bem, mas parecia que sim.
- Esperais alguma vénia?!- Brincou.
- Engraçadinho.- Resmunguei e tentei abrir a porta. Não havia fechadura, portanto tinha de estar mesmo perra.- Abre!- Dei dois empurrões na porta e nem se mexeu.
- Que tamanha falta de jeito, Helena.- Falou num tom jocoso e deu um pontapé na porta que se abriu de imediato.
- Que lugar é este?- Entrei à frente do rei. Havia uma cama e um sofá, duas janelas, uma mesa pequena e duas cadeiras, bem como um pequeno armário. Estranhamente a mesa estava posta com uma toalha luxuosa e comida. Era apenas aquela divisão pequena e simples com uma lareira.
- Eu e o meu pai vínhamos aqui fazer a espera dos javalis nas noites de verão.
Os meus olhos passavam pela prateleira em cima da janela com uma vela e três livros sob a mesma. Parecia uma casinha de bonecas.
- O Sol está a nascer.- Constatou inspirando fundo o aroma da humidade envolvente.
- Sim.- Reparei nos tons de azul claro que iam pintando o céu.
- Vinde.- Abriu o pequeno armário.- Quereis café ou chá?
- Ham... chá por favor.- Estava demasiado absorta naquele espaço. Estariam aqui apenas eles dois? Trariam algum criado? Também fugiam ou avisavam antes?
- Vinham aqui muitas vezes?
- Todos os anos. Adorava vir aqui com o meu pai. Quando estávamos aqui, ele não era rei e eu não era príncipe herdeiro, éramos só... nós.
Sorri ao ouvi-lo.
- Eram só os dois? Sem irmãos? Sem estribeiros, escudeiros, empregados...
- Só nós dois.- Sorriu.- Acerca do chá. A água ferve e junta-se. É logo desde o início...?
- Depende. É de quê?- Dei dois passos e já estava junto ao fogo.
- Verde, eu acho.
Espero que não!
- É chá preto.- Cheirei a caixinha de chá.- A água ferve primeiro.
- Vai demorar um pouco. Vamos começando.- Sentou-se à mesinha.
Havia pão, queijo, compota... Coisas simples ao alcance de um mero camponês.
Talvez, como rei, se quisesse esquecer um pouco dessa responsabilidade de vez em quando.
- Não esperava ver um rei numa cabana tão pequena, com maneiras tão simples e comida tão humilde.- Confessei mordendo o pão com queijo fresco.
- Também nunca esperei ver uma mulher de calças no entanto parece que estávamos os dois enganados.
- Verdade.- Sorri.
Entretanto fizemos o chá.
- Chá preto, sem duvida.- Reconheceu.
Ainda duvidava?!
- Já alguma vez fizeste arco e flecha?
- Não, nem por isso.- Admiti confusa. Isso vinha a que propósito?
- Parece-me uma boa altura para uma primeira vez.- Levantou-se decidido e sorridente.
- O quê? Agora? Onde?
- Ali fora.- Pegou no arco e nas flechas atrás da porta.
Parece que o pequeno-almoço terá de esperar.
⭐👑⭐
- O rei não está.- Francisco sorriu ao chegar perto da lareira acesa, com o seu habitual sorriso jocoso.
- Helena também não!- Francisca disse preocupada.- Mandei procurar no jardim, na capela... fui até ver à pequena biblioteca.
O marquês fazia-se de todas as cores possíveis e imaginárias.
- Manuel deve de estar quase aí.- Tentou António, ao ver o estado nervoso de Eduardo.
- Aceita um chá?- Tentou a governanta
- A única coisa que eu aceito é o rei aqui em menos de 10 minutos!- Rosnou furioso.
Não podia ser coincidência terem desaparecido os dois e na cabeça do pobre marquês, passavam-se vários cenários de possibilidades que o enfureciam.
⭐👑⭐
- Está a ficar melhor.- Riu a bandeiras despregadas quando finalmente acertei na árvore; bastante longe do alvo, porém já na árvore.
- Escusais zoar de mim.- Resmunguei desiludida por ser a pior nesta atividade.
- Cada um tem as suas qualidades Helena.- Pegou o arco nas minhas mãos, mirou o alvo e disparou. Falhou por meros centímetros.- Se todos gostassem de azul, onde estaria a graça em usar tal cor?
Peguei novamente no arco, coloquei-lhe a flecha, claro e quando estava prestes a soltá-la ouço o som de um cavalo desenfreado.
- Ótimo! Ainda bem que aqui estão porque não saberia onde mais vos procurar!- D. Manuel desmontou esbaforido.
Que aconteceu de tão grave?
- Que foi?- Procurou saber o rei, sério, adotando aquela postura superior de majestade novamente.
- Estão todos loucos à vossa procura. O marquês está prestes a torcer-vos o pescoço, enquanto pensa em tudo o que possa ter acontecido a Helena na tua companhia.- Falou mais baixo, para só o rei ouvir, no entanto alto demais para eu escutar.- Isso inclui as virtudes que pensa que já lhe tiraste.
- Santo Deus, só viemos dar um passeio.- Resmungou e entreguei-lhe a capa que tinha deixado sobre um arbusto.
Fez apoio para que subisse para o meu próprio cavalo e então montou o seu, lado a lado com o irmão.
- Peço-vos desculpa pela situação que causei, não queria encontrar problemas.- Admitiu.
- Tudo bem. Não é culpa vossa, é culpa da sociedade.- Sorri entristecida. Agora não podia passar uma manhã com o rei que já era considerada sua amante?!
- Sois louco, João? És rei! Sabes que não podes sair por aí assim, alguém pode...
- Eu não fugi, estava farto de ficar entre quatro paredes!- Silenciou o irmão com um tom firme.
- Quereis um conselho? Ficai calado perante o marquês e talvez ele esqueça o episódio depressa.
- Ficar calado, Manuel? Eu sou o rei.- Protestou.
Onde é que me tinha vindo meter? Não queria desapontar o papá, mas também queria vir dar este passeio. Diverti-me imenso e o rei é uma companhia bastante agradável e divertida. A mim parece-me que podemos ser bons amigos.
O palacete já estava ao nosso alcance, quando senti de súbito um desejo enorme de fugir. Não queria enfrentar o papá, não queria discutir uma vez mais. Desde que cheguei do Brasil, não fazemos mais nada se não isso.
- Helena?- D. João voltou atrás.- Estás bem?
Acenei com a cabeça.
- Não parece.- Sorriu de um modo adorável.- Falarei com vosso pai, isso tranquiliza-vos?
- Não sei.- Admiti com humor, para esconder o medo.
- Vinde.- Sorriu e seguiu a meu lado.
Atravessamos o portão e entregamos os cavalos aos empregados dos estábulos. Fechei-me mais em redor da capa de agasalho, não queria que o papá implicasse com esse pormenor uma vez mais.
- Vossa majestade ...
- Eu sei o caminho.- Proclamou de peito cheio e cabeça levantada. Eu sei que ele é rei, mas toda esta situação não o assusta nem um bocadinho?
- Helena!- O meu nome não foi dito como alívio de preocupação, porém de modo extremamente zangado.
- Bom dia, papá.- Tentei sorrir-lhe.
- Temos muito que conversar, minha menina!- Aproximou-se.
- Se me permite, Eduardo...
- Não, eu não permito coisa nenhuma, não que vossa majestade esteja realmente interessado em saber, claramente!
A discussão vai ser explosiva.
- Vamos!
- Saiam todos!- Ordenou o rei, antes de o pai conseguir levar-me dali.
Restávamos nós três. Decidi aproximar-me da lareira para aquecer as mãos.
- Nada aconteceu entre mim e Helena, tendes a minha palavra.- Começou o rei.- Não era de todo minha intenção zangar-vos ou coisa do tipo. Precisava de desabafar e Helena é uma boa amiga.
- Ireis casar, não tendes de encontrar consolo no ombro de minha filha, creio eu.- Alfinetou o papá.
- Eduardo, não gostei do que insinuastes.- O clima era bastante hostil.
- Papá, fomos apenas cavalgar por aí, tomamos o pequeno-almoço e voltamos. Nada mais.
- Helena, ainda não falei convosco!- Firmou.- O meu Domingo acabou. Até amanhã majestade.
Encarei o rei com pesar.
- Perdão.- Pediu baixinho quando passei por ele.
Era tão embaraçoso fazer uma cena frente a estranhos. Frente ao rei!
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