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Prólogo

Naquela noite, a mais velha das irmãs Junqueira não conseguia dormir. O clima estava abafado, o anúncio de uma tempestade de verão ao amanhecer. Cansada de se remexer na cama, levantou-se e acendeu a vela que estava na mesinha ao lado de sua cama. As irmãs mais novas dormiam placidamente em suas camas. Poderia acordá-las e pedir que lhes distraíssem. Era comum Lucila perder o sono, mas não teve coragem de tirá-las de descanso tão aconchegante. Ajoelhou-se e tateou o chão em busca de seus chinelos. Pegou a vela na mão e saiu do quarto na ponta dos pés para que o chão de madeira não rangesse. Iria até a biblioteca e ali ficaria na companhia de um bom livro. Não era um acervo muito grande, mas aquele era seu lugar preferido na casa.

Lucila, frequentemente, sentia-se perdida naquele fim de mundo que era a Estância Santa Rita e aos quinze anos desejava poder visitar outros lugares, conhecer pessoas e estudar com brilhantes professores. Talvez seu pai, o poderoso Coronel José Carlos Junqueira, um dia a mandasse para a Capital para isso. Sabia que sua mãe tentava convencê-lo de que as filhas deveriam receber a melhor educação, incluindo a caçula, a quem o pai parecia amar menos e isso incomodava as irmãs.

A vida poderia ser mais triste sem a presença da mãe, pensava Lucila. Anastácia Junqueira vivia para suas filhas, amando-as e protegendo-as de todos os males que tentavam lhes tirar o sorriso, incluindo do humor ensandecido do pai. E também amava suas flores, cujo jardim lhe trazia frescor à sua alma entristecida. Lucila tentava entender a melancolia da mãe, mas ela sabia disfarçar muito bem, fingindo uma alegria que não existia.

Desceu as escadas que davam acesso ao piso principal do casarão e a madeira velha acabou rangendo. Precisava ser mais cuidadosa ou acabaria acordando até as empregadas que dormiam no fundo da casa. Percebeu uma janela aberta e foi até ela para fechá-la. Ventava forte e quando chovesse acabaria molhando o tapete preferido da mãe.

Assim que terminou de baixar a janela, avistou um vulto atrás de si. Virou-se rapidamente e percebeu o pai subindo as escadas alheio à sua presença na sala. O coronel não a havia percebido e era melhor assim, pensou Lucila com o coração saltando pela boca. Era proibido às filhas perambularem depois das oito pela casa, muito menos sair de casa tão tarde da noite. Era comum o pai dar abrigo aos tropeiros que vinham de todos os cantos e donzelas não deveriam se dar ao desfrute, uma ordem que ela e as irmãs evitavam descumprir.

Lucila poderia muito bem seguir até a biblioteca em busca de seu livro e talvez do sono que lhe abandonara, mas as pisadas duras do pai a fizeram segui-lo até o quarto da mãe. Anastácia e Junqueira não dividiam os mesmos aposentos e isso a deixava intrigada, pois Dolores, a negra que cozinhava para a família desde sempre, costumava mencionar que casais apaixonados faziam questão de dormir na mesma cama.

Talvez os pais não fossem mais apaixonados, isso se um dia chegaram a ser.

Com a mão, Lucila tentou tapar a vela para que o pai não percebesse sua presença. Ele chegou a se virar em sua direção, mas sequer a notou. A ira que Lucila viu em seus olhos acabou assustando-a ainda mais. Junqueira não era um homem que expressava sentimentos e tanto ela quanto às irmãs acreditavam que o pai acabara endurecido pelas batalhas que havia travado na Guerra do Paraguai, onde servira como soldado.

Deveria voltar para cama, considerou a mais velha das Junqueira. Se o pai a surpreendesse acabaria sendo castigada e seus castigos costumavam fazer doer sua pele por dias a fio. Bibiana, a mais rebelde das irmãs, era a que mais sofria com o peso da mão do pai. Lucila preferia evitar os confrontos ou mesmo ter que assistir a mãe apanhar no lugar das filhas. Partia seu coração ver a mãe sendo espancada pelo pai. E era justo esse temor que a fazia ficar ali parada diante da porta do quarto da mãe, com o ouvido colado à madeira, tentando descobrir o que o homem pretendia fazer com ela.

— Não pode me obrigar. – Anastácia gritou e o coração de Lucila pulou no peito.

— Tem obrigações com teu marido. – Junqueira parecia irritado com a esposa. — Prefere ser uma vagabunda abrindo as pernas para qualquer um que cruza as porteiras de Santa Rita do que receber teu marido na cama. – Esbravejou e Lucila soube que a mãe havia recebido uma bofetada.

A garota não poderia deixar a mãe sofrer e forçou a maçaneta da porta para abri-la, mas estava trancada a chave. O desespero lhe tomava e as lágrimas manchavam seu rosto.

— Mamãe! – Gritou, batendo na porta com as mãos em punho. — Abra a porta. – Não sairia dali sem sua mãe. Estava determinada a salvá-la daquele homem bruto.

Alguns minutos se passaram sem resposta até que Anastácia enrolada em um xale abriu a porta e olhou para a filha com carinho.

— Volte para sua cama, querida! – Disse após beijar a bochecha da filha.

— Não posso deixá-la com ele. – Implorou que a mãe a seguisse. — Podemos nos trancar dentro do nosso quarto. Ele não a machucará lá.

— Ele é o meu marido e tem direitos sobre meu corpo. – Anastácia acariciou o rosto da filha, secando-lhe as lágrimas. — Um dia também se casará, mas que Deus lhe reserve um bom homem. Já é quase uma mulher, querida, e precisa compreender que maridos procuram as esposas para se saciarem. Expliquei a ti outro dia, lembra?

Lucila lembrava da conversa que tivera com a mãe, mas não conseguia entender o porquê um marido faria algo que a esposa não estava disposta.

— Mas a senhora não quer. Eu a ouvi, mamãe! – Soltou indignada.

— Por favor, Lucila, vá para junto de suas irmãs e fique lá até o amanhecer. Não provoque ainda mais a ira de seu pai. – Pediu com resignação. Anastácia preferia se submeter aos maus tratos do marido do que ver suas amadas filhas sendo punidas pelo pai. Afinal, havia sido ela a cometer o pior dos pecados ao se deitar com outro homem. Não importava que havia se entregado ao grande amor de sua vida e com ele tido uma filha, a sociedade sempre a veria como uma mulher sem princípios. Mas ela tinha três filhas para proteger e faria qualquer coisa por elas, mesmo ceder à luxúria do marido na cama. — Vá, meu bem. Tranque-se no quarto com suas irmãs e de lá só saiam quando eu ir buscá-las para o café da manhã.

Lucila recebeu o beijo da mãe e partiu com os ombros caídos, sentindo-se impotente. Mas jurando que nunca se entregaria a um homem. O amor não era uma boa coisa, pensou com o coração repleto de rancor. 

***

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