Capítulo 9 - Dilúvio
Raí tinha voltado para sua cama, mas ainda não dormia. Agora todas as luzes estavam apagadas e a única iluminação vinha pela janela, formando um quadrado no teto que exibia sombras das cortinas que tremulavam ao vento forte que assobiava nas paredes do prédio. O cearense adolescente pensava em tudo que acontecera nos últimos quatro dias. Pensava em Claudia Almeida, a menina baiana que desistira. Será que agora que sua memória fora apagada ela ainda possuía sua habilidade? Lembrou-se da cena da agente Fernandes voando na enfermaria. Lembrou que ela antes fazia missões ambientais e que essa seria sua primeira missão de outro tipo. Seus pensamentos passaram para o agente Monticelli morrendo. Foi a primeira vez que presenciou uma morte. O homem havia morrido de parada cardíaca. O que todos queriam saber era como ela havia entrado em coma. Raí imaginava várias possibilidades. Pensou nas fraquezas do Super-Homem, magia e Kryptonita. Nenhuma das duas existia. O menino chacoalhou a cabeça, já estava começando a pensar bobagens.
Olhou para o lado onde Tatiana roncava baixinho ao lado de Felipe. Por um momento invejou seu sono. Voltou a imergir em seus pensamentos até os pássaros começarem a cantar e o céu passar de preto para um azul marinho, depois para um azul Royal até chegar ao azul celeste último. Mesmo acostumado com a insônia a frustração era inevitável. Percebeu que estava faminto, o que não era surpresa visto que passar tanto tempo raciocinando gasta bastante energia. Decidiu ir tomar café sem esperar os outros. Ao sentar na cama surpreendeu-se com a ausência da agente Fernandes. Mas era impossível ela ter saído sem que ele visse. Havia cochilado por um momento sem perceber?
Ao lavar o rosto na pia viu pelo espelho vestígios de vômito ao lado do vaso sanitário. "provavelmente Magno vomitou de novo", pensou.
Ao chegar ao restaurante do hotel, já com o uniforme, pediu um chocolate quente para ajudar a se esquentar naquele frio paranaense.
— Nós estamos sem energia pra aquecer. — disse a funcionária do hotel. — Não tá sabendo do que aconteceu?
Raí negou com a cabeça e a mulher continuou.
— Itaipu rompeu ontem a noite, alagou a Cidade del Este no Paraguai. E agora a gente vai ficar uns dias sem luz, daí.
— Mas se tivesse rompido teria alagado aqui também. — observou Raí — Teria destruído a cidade.
— É, mas dizem que rompeu uma turbina só ou algo assim. E a água seguiu o rio e passou direto, daí.
Aquilo não fazia sentido, Itaipu era impossível de romper. A menos que alguém a explodisse, mas se alguém fosse fazer isso, por que explodiria uma turbina só? Quando Raí percebeu a mulher estava parada ao lado dele esperando. Ele então pediu um sanduiche e um suco e assim que ela saiu puxou o Agencyphone do bolso e iniciou uma chamada de vídeo com o agente Fernandes.
— Me desculpe, eu estava cheio de coisas pra fazer. Estamos mandando todos os agentes na região para ajudar no Paraguai. — disse o agente olhando para a câmera.
— E você se esqueceu de nós que estávamos aqui do lado? — perguntou Raí, tudo estava parecendo improvável naquele dia.
— Eu já recrutei a agente Fernandes, achei que ela tinha avisado vocês.
— Não avisou. Como ocorreu o rompimento? Ela não pode ter rompido sozinha.
— Segundo as gravações foi o que aconteceu. Sem explosões, fumaça nem nada que indique explosão. Nem mesmo subaquática.
— Isso é ilógico. — falou o cearense.
— Eu sei disso. — disse Fernandes parecendo irritado. — Vocês vão ter que fazer a missão sozinhos.
— Eu achei que ela seria cancelada.
— O diretor disse que a falta de energia tornaria a missão mais fácil. A agente Fernandes não disse nada disso pra vocês? — estranhou o menino autista.
— Quando eu acordei ela tinha sumido, os outros não acordaram ainda. — disse Raí. Quando a mulher voltou com o lanche ele e Fernandes ficaram em silêncio encarando-a sem disfarçar que estavam esperando ela ir embora. A pobre mulher acelerou o trabalho e saiu depressa.
— Mas nós íamos entrar na penitenciária de noite, ela não vai ficar ajudando até de noite vai?
— Provavelmente. Com a habilidade que ela tem... ela é indispensável.
Raí deu uma grane mordida no sanduíche.
— Muitas baixas no Paraguai? — perguntou de boca cheia.
— Sim. A cidade foi devastada pela água. Ainda estamos fazendo buscas, mas até agora só encontramos doze pessoas vivas e mais de cem corpos. — disse Fernandes voltando a ficar sem expressão no rosto. Pareciam dois robôs conversando.
— Hum. — fez Raí — E os bombeiros e policiais não estranham os agentes lá?
Qualquer pessoa normal estranharia o descaso do cearense pelas mortes, mas o agente Fernandes apenas respondeu também desinteressado:
— Nós temos uniformes de bombeiros. O difícil é esconder as habilidades.
— Sobre isso... — começou Raí, mas o agente Fernandes desligou.
— Hum — fez o agente Alves guardando o aparelho no bolso e se dedicando aos próprios pensamentos. O aparelho vibrou e ele pegou para olhar. Havia uma mensagem do agente Fernandes: LEMBRE-SE DE ECONOMIZAR BATERIA.
-x-
Magno e Felipe já estavam acordados quando Raí retornou ao quarto.
— A energia acab... — começou Felipe.
— Itaipu rompeu. — interrompeu Raí e explicou todo o resto.
Tatiana acordou, sentou-se na cama, encarou o rosto de Felipe e depois fez o mesmo com Raí, então ergueu os braços irritada:
— Pra que essa falação toda uma hora dessas?
Felipe explicou tudo a amiga enquanto Raí questionava a Magno se ele havia vomitado.
— Não, eu tô mais tran...
— Hum. — fez Raí saindo para o banheiro. O cearense agachou-se ao lado da privada e cheirou o vômito com uma inspirada profunda e depois voltou pro quarto:
— A agente Fernandes é vegana? — perguntou ele indo em direção à janela.
— Sei lá tchê, o que importa isso? — perguntou a agente Müller ainda tampando a luz da janela com a mão.
— Nada. — disse Raí olhando para longe. Ele se virou para a loira com uma contração na bochecha que poderia ser uma tentativa de sorriso ou de deboche. — Você vai elaborar o plano da missão... já que você é a líder.
— Tá, dá um tempo — disse ela se levantando e indo ao banheiro cambaleando —, deixa eu acordar primeiro.
Felipe viu Magno acompanhar Tatiana com o olhar, era de se imaginar que uma menina como aquela atraísse olhares e interesse, mas como Magno estava sempre sério e de óculos escuro ele achou a cena um pouco perturbadora.
— A gente tá ferrado. — comentou o carioca — Como nós vamos fazer isso sem ajuda? É a nossa primeira vez. Eles tinham que pensar nisso.
Magno tinha tremido quando ouviu que fariam a missão sozinhos, porém depois que imaginou a penitenciária toda escura pela falta de energia sentiu-se mais tranquilo e até ansioso para começar logo.
— Nós temos que confiar nela. — disse o mineiro em voz baixa indicando o banheiro.
— Por mais que eu perceba todas as coisas que eu aprendi naquela sala, por mais que agora eu saiba investigação ou desarmar uma bomba, eu ainda sinto que eu não tô pronto, sinto que ainda falta algo. — disse Felipe e Magno viu medo nos olhos verdes do carioca.
— Acho que todos nós nos sentimos assim. — consolou.
Tatiana saiu do banheiro já com a camisa verde musgo sem o colete por cima e a calça jeans preta, seus cabelos loiros completamente soltos. Parecia ter perdido o ar de quem não está nem aí pra nada, na verdade parecia estar bem determinada.
— Essa coisa tem holograma? — indagou apontando para o Agencyphone no pulôver do cearense.
— Não. — respondeu ele enquanto os outros pareciam meio surpresos com a atitude da colega. — Mas tem um projetor.
— Tu consegues montar um modelo em três dê da penitenciária?
— Consigo. — respondeu o cearense com uma certa cordialidade, o que era estranho, uma vez que sempre existia uma certa antipatia entre os dois.
— Ótimo, vamos tomar café, eu penso melhor enquanto tô comendo. — disse pegando a pasta de arquivos que o diretor os entregara e saindo seguida por Magno enquanto Felipe colocava o sobretudo.
-X-
Ao voltarem encontraram o quarto de janelas fechadas e um Raí muito concentrado que só despertou quando Tatiana soltou um arroto alto.
— Opa, me desculpe, não quis te atrapalhar. — disse sorrindo quando foi encarada com um olhar sério.
— Olhem isso. — disse o cearense e mirou o aparelho na parede onde a imagem projetada surgiu grande.
Ao contrário do que esperavam a projeção era um vídeo de um plantão da Globo.
"...Militares do Corpo de Bombeiros com o apoio da Polícia Militar, incluindo dois helicópteros, estão empenhados para atender a ocorrência. O governo do Paraná anunciou que uma força-tarefa está no local para acompanhar as primeiras medidas e designou a formação de um gabinete estratégico de crise para acompanhar de perto as ações. Na Cidade Del Este no Paraguai nós podemos ver além dos bombeiros e policiais vários civis que se ofereceram para ajudar. A cidade vizinha de Foz do Iguaçu foi tomada pela água por volta das cinco horas da manhã. O presidente do Paraguai Roberto Valdez diz que a tragédia não pode ter sido um acidente e que as autoridades paraguaias estão investigando..."
Quando a repórter mencionou os civis que se ofereceram para ajudar eles puderam reconhecer o agente Aquino no meio de algumas pessoas desconhecidas, todos cobertos de lama e sem seus uniformes.
— Meu Deus! — disse Tatiana levando as mãos à boca — Que tragédia!
— Eles devem estar fazendo um esforço enorme para não usar as habilidades. — comentou Raí.
De repente o aparelho começou a emitir um som e a mensagem CHAMADA AGENTE FERNANDES M.C.
Raí apertou para atender e tirou do projetor e eles se juntaram na frente do aparelho vendo uma agente Fernandes completamente imunda e sem nenhum sorriso no rosto, muito pelo contrário, parecia furiosa.
— Escutem, vocês vão ter que fazer a missão sozinhos. Eu saí tão rápido que nem pensei em nada. Ah aquela maldita represa... isso que dá barrar o curso da natureza... — parecia falar mais para si mesma do que para eles — olhem, vocês não podem ter medo, OK? Confiem em vocês mesmos e planejem tudo antes de ir. Eu sugiro que vocês passem um tempo meditando percebendo tudo que vocês aprenderam. Eu tenho que ir.
E desligou sem nem dar a chance de falar aos adolescentes.
— Meditar? — repetiu Raí. — Sério?
— Falando em planejar — começou Tatiana — eu estive trocando mensagens com a agente Siqueira e...
— Ué não era tu que não ia com a cara dela? — interrompeu Felipe e apenas recebeu um olhar bravo da amiga.
— ... e ela deu umas ideias de como a gente pode fazer para tirar ele de lá, o que era minha maior dúvida. Depois que nós conseguirmos achá-lo nós iremos desmaiá-lo e colocá-lo em um drone da agência feito para resgatar vitimas, eles vão começar a usar na Cidade Del Este a noite e nós vamos pegar um emprestado.
— Tá miga, mas acho que a questão principal é como a gente vai entrar lá. — disse Felipe com um tom aflito na voz.
— Então, tu fez o modelo que eu pedi? — perguntou a gaúcha ao cearense.
— Fiz, não demorei nem cinco minutos. — respondeu Raí fazendo o Agencyphone projetar na parede e o entregando para a colega.
— Então... essa é a penitenciária estadual de Foz do Iguaçu II. — disse mostrando uma foto. A prisão era obviamente cercada por um muro altíssimo, toda pintada de azul e amarelo. E ao redor do muro um terreno com uma pequena e densa mata. Dentro do muro haviam duas construções grandes cada uma com um pátio no meio onde os detentos tomavam banho de sol. Essas duas construções eram ligadas por uma espécie de passarela e eram cercadas por um muro igualmente alto e grosso suficiente para os guardas fazerem a ronda por cima.
Os três sentaram na cama de casal do meio do quatro para assistir a explicação da loira. Ela passou para o modelo que o colega fizera. Era uma réplica em três dimensões da penitenciária exceto pelas partes interiores que não sabia como era e pela cor, uma vez que o modelo era completamente azul.
— Então... nós vamos entrar por essa parte. — disse ela girando o modelo e mostrando a parte sul da prisão e apontando para baixo de onde havia uma torre de vigia. Ela marcou com um círculo vermelho. — Tu vai subir primeiro — ela olhou para Felipe — com o seu chicote e depois vai jogar a corda para nós subirmos.
— Que corda? — perguntou Felipe erguendo os ombros.
— Nós vamos levar uma. Depois nós vamos para cá, subimos no telhado — disse apontando para uma construção perto do muro grosso marcando outro círculo vermelho, onde se você subisse no telhado era possível subir no muro. —, mas daí os dois guardas das torres vão nos ver se nós subirmos no muro direto, então você e o Magno vão ter que ir até eles por dentro da torre sem serem vistos enquanto eu e o Raí esperamos. Depois que os dois já estiverem dormindo Nós quatro vamos até a cela... deixa eu ver... trinta e seis por aqui — disse marcando um círculo verde — e atiramos um tranquilizante nele, o problema é que o presídio foi feito para quatrocentos presos, mas tem quase mil então ele provavelmente vai estar dividindo cela, então nós vamos levar uns dardos a mais. Depois levamos ele para o pátio e tu — ela olhou para Raí — traz o drone com isso e leva ele para fora e nós saímos por onde entramos. Isso se ninguém nos vir. — concluiu em um tom completamente inseguro.
— E o plano bê? — perguntou Raí como sempre sem expressões no rosto. Tatiana encarou com uma cara de choro misturado com raiva.
— O plano bê é improvisar, uma vez que a gente não sabe como estarão os guardas devido a falta de luz. Se algo der errado nós temos as bombas de fumaça. — a loira deu os ombros e eles ficaram em silêncio se encarando assustados. Estavam por conta própria.
— Seja o que Deus quiser. — disse Tatiana fazendo Raí soltar ar pelo nariz com desprezo.
-X-
13h27m
Raí e Tatiana cochilavam enquanto Felipe convencera Magno a meditarem juntos.
23h20m
Tatiana acabara de solicitar um carro com a agência assim como a agente Siqueira ensinara por mensagem. A agente Fernandes não retornara desde cedo. Todos estavam com os uniformes. Magno com a blusa branca cheia de coisas, Tatiana com a camisa curta verde musgo e o colete Felipe com o sobretudo que havia decidido não usar na missão mas mudara de ideia na última hora e Raí com o pulôver e a blusa de manga comprida.
— Eu dirijo. — disse Tatiana antes que alguém pedisse. Ao mesmo tempo em que sabia que nunca havia dirigido antes, sentia que passara uma vida o fazendo. O aparelho de Raí mostrou o carro da agência mais próximo e eles desceram.
— Divirtam-se! — disse a mulher da portaria com um sorriso antes de juntar as sobrancelhas como um falcão ao ver o chicote que Felipe tentara esconder ao passar. O carro estava a apenas quatro quadras do prédio em uma garagem de uma casa aparentemente vazia. Tatiana digitou a senha de vinte dígitos no interfone e a porta da casa se abriu.
No carro estavam todos em silêncio apreensivos enquanto Tatiana dirigia, Raí no banco do carona mexia no aparelho lançando luzes azuis no teto do veículo espaçoso. Ao chegar perto da rua do Presídio Tatiana desacelerou, fazendo as sombras projetadas pelos postes passarem mais devagar por seu rosto.
— Acho melhor a gente parar aqui e ir pelo meio da mata agora. — disse a gaúcha e ouviu apenas a respiração dos colegas em resposta.
Eles desceram do carro, se certificaram de que estavam levando tudo o que precisavam e sumiram no meio das árvores.
Não esqueça de dar uma estrelinha!^^
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