Capítulo 4 - Édipo Rei
Animada com o início do trabalho, Maya se levantou e se deixou ser conduzida por alguns funcionários do navio para a área onde ficam os motores do cruzeiro, o local onde passaria boa parte da viagem. Victor, por outro lado, parecia bastante desanimado.
O porão era quente, barulhento e não abrigava muitos cômodos. Havia uma espécie de hall onde alguns funcionários se sentavam em poltronas acolchoadas e comiam sanduíches, a sala de controle do cruzeiro e um cubículo escondido atrás de uma porta estreita. Era lá que trabalhariam, na sala de observação.
– Dormir não foi o suficiente para melhorar sua cara – Maya comentou, fazendo-lhe uma careta de desaprovação.
– Ah, deixa disso. Vai dizer que não gostaria de estar lá em cima trabalhando na beira da piscina?
– Sim, eu gostaria – Não tinha como negar – Mas estou feliz por poder fazer meu trabalho, também.
– E amanhã será nossa vez – Completaram juntos. Maya, levemente assustada com a coincidência, o encarou antes de rir.
– Bom, mãos à obra – Victor disse ao entrarem na sala.
O ambiente não poderia ser pior. Da paisagem belíssima do cruzeiro e do mar sobraram apenas tubos, fios e os motores. Tudo era prata ou cobre e parecia o interior de uma fábrica.
– Nossa – Maya soltou, assim que o funcionário que os conduziu até ali se retirou e ela e Victor começaram a conectar os notebooks num dos painéis – Eu não esperava por esse calor.
– Mas estou feliz por fazer meu trabalho – Victor imitou a voz dela, revirando os olhos.
Levemente frustrados e suados, começaram a trabalhar. O sistema operacional que estavam usando era novo, e era a primeira vez que trabalhavam com essa base de dados. Apesar de terem treinado, tiveram algumas dúvidas no começo e se sentiram mais animados ao passo que solucionavam os problemas juntos. Algumas horas depois já estavam dominando o processo e os dados estavam chegando em tempo real aos notebooks de Igor e Jorge que traduziam as informações para o sistema da Ivory, onde podiam manter o controle e observar a quantidade exata de combustível economizado.
– É isso, está funcionando – Anunciou Victor ao verificar que a economia em tempo real naquele exato momento era de 9%.
– Ainda precisamos verificar como ele funciona em velocidade reduzida, na partida, na parada e em quantas horas ele alcança o resultado. Depois temos que calcular as interferências e margem de erro para nos assegurarmos de que estamos cumprindo com o esperado.
– Calma, senhorita Monteiro, uma coisa de cada vez.
Victor estava certo. Maya estava muito nervosa e ansiava por nada menos que perfeição, mas por hora não havia mais nada que pudessem fazer além de continuar analisando a transmissão de dados e a performance do TechMarine.
– Então agora é só derreter aqui enquanto olhamos para a tela do computador. Nem consigo pensar no que Jorge e Igor estão fazendo sem sentir inveja – Lamentou Victor, jogando a cabeça para trás.
– Talvez te anime pensar onde gostaria de trabalhar amanhã.
– Que parte do Cruzeiro conheceu hoje? – Perguntou, virando-se para ela.
– A piscina do solário.
– Estava cheia?
– Lotada!
– Imaginei. Gostaria de ter ido, também. Mas juro para você que não havia nada que eu quisesse fazer mais que dormir.
Maya riu da confissão óbvia de Victor enquanto se lembrava dele usando sua máscara de pepino para tratamento de olheiras. Maya não era uma pessoa carrancuda, mas também não costumava ter um riso fácil, a menos que algum engraçadinho lhe arrancasse risadas pelos motivos mais estúpidos. Ela sabia que esse era o dom de Victor, na verdade a Ivory inteira sabia. Ele não precisava se esforçar muito, sua personalidade jovial e divertida fazia com que a mera presença dele num ambiente o tornasse menos maçante.
– Fico feliz que tenha conseguido descansar.
Depois de alguns minutos onde o silêncio era quebrado apenas pelo som do teclado e das estaladas ocasionais que algum equipamento da sala disparava, Victor soltou:
– Posso fazer uma pergunta inconveniente?
Maya o encarou, curiosa.
– Pode.
– Por que se escondeu do seu namorado aquele dia?
– Eu não ando sendo a melhor namorada do mundo – Confessou, depois de meio segundo decidindo se falaria sobre aquilo ou não – Um amigo nosso, ou melhor dizendo, um amigo dele estava comemorando o aniversário na boate aquela noite. Ele havia me convidado e eu disse que não iria.
– Por isso ele não foi para o jantar – Constatou.
Maya respirou profundamente para não dizer "Não, ele não foi porque eu não o convidei" e disse apenas:
– Não pensei direito, só sabia que não teria como explicar para ele porque eu disse que não iria com ele, mas estava lá com outra pessoa.
– Entendo – Foi a única resposta de Victor. Apesar da circunstância, Maya não se sentia constrangida por explicar-se para ele. Parecia, de certa maneira, até adequado.
– Por que não foi dormir no quarto dos meninos? – Vendo a oportunidade, Maya devolveu a pergunta– Quero dizer, não me importo que tenha ido. Mas por que não foi para a cabine de Jorge e Igor?
– Você por acaso já precisou pedir algum favor a Igor em sua vida?
Maya fez um esforço real para se lembrar.
– Acho que não.
– Acha? Então nunca pediu. Porque ele faria você lembrar disso para sempre, mesmo que tivesse apenas pedido uma caneta.
– Eu poderia dizer que você está exagerando, mas estamos falando do Igor.
– Exatamente. Eu poderia ir, mas sei exatamente o que teria acontecido: ele diria não, inicialmente, então Jorge ia dizer alguma bobagem altruísta que o faria mudar de ideia, mas ele ia acabar falando sobre isso na frente de Monteiro e depois ia fingir que foi um acidente.
Maya conseguia imaginar a cena acontecendo. Talvez fosse no jantar daquela noite, enquanto todos comiam juntos, ou então em meio a uma reunião com mais pessoas da gerência presente. Igor escolheria sadicamente o momento menos oportuno para falar que Victor precisou dormir em outra cabine por não conseguir fazê-lo ao lado de Monteiro. Deixaria que o motivo disso se tornasse uma incógnita na cabeça de todos, tão difícil de esquecer quanto sua feição ingênua ao dedurar o colega "acidentalmente".
– Desculpe-me se incomodei – Ele completou, quando se fez algum tempo sem que Maya dissesse algo.
– Ah, não, não! Não foi um incômodo. Pode ir quando precisar.
– Eu gostaria de dizer que não acontecerá de novo, mas vai sim – Seu sorriso torto lembrava a Maya o sorriso de uma criança quando é pega fazendo travessuras. O lado direito do seu lábio se levantava um pouco mais que o esquerdo, mostrando os dentes brancos e as covinhas que se formavam em suas bochechas.
Em meio ao trabalho e às conversas pessoais, não perceberam que havia passado e muito das 18:00h.
– O que estão fazendo aqui ainda? – Foram surpreendidos pela voz de Monteiro.
– Ah, droga! – Victor assustou-se – Por um momento pensei que além de quente e barulhento esse lugar ainda fosse assombrado!
– Se acham que a Ivory pretende pagar horas-extras, estão enganados. Já basta o custo que foi trazer todos vocês para cá. Vamos, saiam desse lugar.
Maya e Victor deixaram para trás a plataforma de transmissão de dados funcionando e saíram do pequeno inferno particular dos dois.
– Por Deus, vá se trocar – Monteiro disse chocado ao deparar-se com todas as poças de suor visíveis na roupa de Victor – Você está derretendo! – E então virou-se para Maya, como se conseguisse sentir o constrangimento dela – Apenas ele, querida, você continua graciosa como sempre.
Maya sabia que era mentira, mas sentiu-se menos envergonhada.
– Espero os dois para o jantar em quarenta minutos – Monteiro anunciou antes de retirar-se da presença dos dois jovens cujo estado lastimável de aparência retirava-lhes qualquer dignidade – E Victor, seja rápido pois preciso da sua ajuda com algo.
– Papai está chamando – Maya disse assim que Monteiro alcançou uma distância segura – Não ouse demorar.
Victor a fuzilou com os olhos, o que a encheu de satisfação.
– Até o jantar – Maya despediu-se, antes de entrar no elevador. Apesar de poder acompanhá-la até certo ponto, Victor não entrou. Não daria o braço a torcer para a mulher que estava invertendo os papéis e fazendo dele o motivo da piada.
Maya demorou mais que o habitual no banho, pois a água gelada era a única coisa que podia dar um pouco de prazer à sua pele depois de horas dentro de um forno. Ao sair do banho, não soube muito bem o que vestir. Apesar de não estar mais em horário de trabalho, ia jantar com os colegas. E Igor estaria lá. E não que ela se importasse, mas, talvez, se importasse. Não com a opinião dele, mas com o constrangimento que se espalhava em seu estômago com gosto azedo toda vez que lembrava das palavras dele a respeito do seu biquíni. Ela não queria lhe dar nenhum motivo para ofendê-la. Não queria lhe dar nenhum motivo para que dirigisse a palavra a ela, na verdade.
Lembrou-se do panfleto com as programações do dia e decidiu que depois do jantar gostaria de ir ao teatro, então vestiu-se modestamente e desceu.
Quando sentou-se à mesa, todos já estavam à sua espera.
– Senhorita – Monteiro a cumprimentou quando levantou-se para puxar sua cadeira.
Um cavalheiro. Um verdadeiro cavalheiro. Como esse homem pode roncar ao ponto de não deixar alguém dormir? – Pensou.
Maya sentou-se bem a tempo de ver Igor revirando os olhos.
– Posso comer agora? – Igor perguntou, impaciente. E só então Maya percebeu que havia um único prato na mesa, intocado.
– Não seja indelicado – Advertiu Monteiro.
– Não estou sendo. Você me pediu para esperar ela chegar. Ela chegou.
– Maya, querida, não se constranja com a falta de educação de alguns membros da equipe. Claramente ninguém passou fome ao esperá-la – Disse a última frase quase entredentes, tentando manter uma tonalidade gentil.
– Claro, claro. Eu espero enquanto ela passa maquiagem e escolhe os sapatos – Maya ouviu Igor murmurar. Não teve certeza se os outros ouviram, mas foi mais conveniente fingir que ninguém tinha entendido.
Pediram o jantar. E como podiam se servir de quantas entradas, pratos principais e sobremesas quisessem, acabaram passando um longo tempo no restaurante. Para todos, além de Monteiro, aquela era uma rara chance de experimentar alta gastronomia sem precisar pagar por nada.
Aos poucos, a conversa na mesa se dividiu e enquanto Jorge e Igor conversavam algo à parte, Victor e Monteiro mantinham outro assunto. Maya, que estava exatamente no meio dos dois grupos e não tinha interesse algum em participar da conversa de Igor, permitiu-se participar da conversa de Victor e Monteiro enquanto comiam.
– O TechMarine está funcionando como o previsto? – Perguntou Monteiro.
– Exatamente como previmos – Respondeu Maya.
– E os dados, estão conseguindo acompanhar?
– Acompanhamos em tempo real e Jorge e Igor traduziram para o nosso sistema, onde foram salvos. Não há com o que se preocupar – Victor completou.
– Claro que não – A voz de Monteiro era de puro orgulho, como um pai elogiando um filho – Confio no trabalho de ambos. Amanhã quero que invertam os lugares com Jorge e Igor para que se certifiquem de que a segunda etapa está, de fato, funcionando bem – Disse em voz baixa, aproveitando-se da distração de Jorge e Igor para que apenas Maya e Victor ouvissem.
– Sim, senhor – Victor respondeu.
Maya não escondeu um sorriso divertido. Toda vez que a relação de Monteiro e Victor se assemelhava com a de pai e filho ela se divertia muito. Soube que Victor notou sua diversão pois a afrontou com o olhar.
Enquanto terminava sua sobremesa, Maya lembrou-se do jantar de despedida e de quando Victor disse que não havia bebido álcool. Instintivamente, observou sua bebida e surpreendeu-se ao perceber que ele não bebia vinho como os outros. Não podia dizer exatamente o que era, mas podia de fato ser uma bebida não alcoólica.
O jantar logo acabou e todos se retiraram. Monteiro subiu para a cabine, dizendo que precisava falar com sua esposa e filhas. Jorge e Igor sumiram assim que Monteiro virou as costas.
– O que vai fazer esta noite? – Victor a perguntou.
– Vou ao teatro. Esta noite exibirão a peça Édipo Rei. E você?
– Os meninos vão para o cassino, estou tentado a ir também, já que nunca fui em um.
– Boa sorte – Maya bufou – Espero que seja uma programação divertida, pois não poderá contar com a companhia.
– Eu não sabia que você era tão má – Victor a encarou. Maya nunca entendeu porque ninguém falava abertamente sobre Igor ser um babaca. Ela mesma só costumava falar sobre isso com Sabrina.
– Você sabe muito pouco sobre mim – Ela ergueu uma das sobrancelhas.
– Eu usaria a palavra ainda no meio dessa frase – A voz de Victor soou um tanto misteriosa, aveludada. Falou mais pausadamente do que era de seu costume. Surpreendida com um pequeno arrepio em sua nuca causada pela resposta dele acompanhada da permanência de seu olhar fixo sobre ela, Maya se despediu:
– Até amanhã – E caminhou sem olhar para trás, mesmo sem fazer ideia se estava indo para a direção correta, pois aquele lugar era grande demais e ela mal havia aprendido o caminho de sua cabine até o restaurante.
Maya sentou-se em uma das cadeiras e esperou a peça começar. Ela nunca havia assistido uma peça de teatro de verdade. Tudo o que se aproximara disso foram as peças improvisadas de quando estava no colégio e assistira seus colegas interpretar livros de Jorge Amado, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Logo, estava tão animada que mal podia manter os pés quietos.
Enquanto os atos se sucediam, Maya mantinha-se focada em cada ator, em cada fala. Ela sabia a história há muito tempo, mas vê-la sendo interpretada tão bem lhe concedia o singular prazer característico de quem admira uma arte de qualidade.
Em determinado momento, pouco antes do fim da peça, se flagrou pensando no miserável relacionamento de Édipo e Jocasta, com quem o protagonista casara-se sem saber que era sua mãe. Lembrou-se de um antigo amigo que lhe dissera que Édipo e Jocasta eram atraídos um pelo outro de uma maneira quase insuportável, irresistível. Apesar de toda a complexidade que a história traz ao redor do trágico relacionamento, se perguntou como deveria ser se sentir assim em relação a alguém. Sentir tanto desejo ao ponto de ser incapaz de resistir. Ceder não porque é o certo, ou porque foi algo que ela pensou muito antes de decidir fazer, mas sim porque não conseguiria renunciar.
Devia haver uma certa magia entre os amantes, que se escolhem entre tantas outras pessoas no mundo. Algo que fizesse com que o desejo de ambos só fosse saciado com o outro. Algo íntimo, indefinido, inominável. Algo que justificasse qualquer falha, qualquer pecado, que pudesse ser explicado para qualquer outro humano e ser perfeitamente compreendido. Algo que ela, certamente, nunca havia experimentado.
Sentiu um aperto no peito ao deparar-se com a certeza de que o que sentia por Henrique não era, nem de perto, parecido com isso. Ela não queria separar-se dele, mas sabia que se quisesse nada mais a impediria. Não há nada nele que a impeça de ir embora. Seus desejos e sentimentos eram entregues a ele porque ela escolheu fazê-lo, não porque ele tomou dela e a tornou sua refém. Pensar assim tornava as coisas mais fáceis e a paixão algo muito perigoso, mas não conseguia parar de pensar em como deveria ser. Como deveria ser não ter que entregar-se para alguém, pois esse alguém já a tem. Qual deve ser a sensação de ter seu corpo e coração desejando alguém sem que seu cérebro possa fazer algo a respeito?
Antes que a última cena fosse interpretada, sentiu alguém sentar-se ao seu lado.
– O que está fazendo aqui? – Maya sussurrou, ao perceber que era Victor.
– Não posso ficar lá – Dignou-se a responder.
– O que houve? – Sussurrou novamente.
Victor não respondeu. Meio a contragosto, pois não queria perder nem uma parte da peça, Maya virou-se para ele, encontrando uma expressão confusa e quase deprimida.
– Victor? – Dessa vez não falou tão baixo, ao passo que foi advertida por alguém na plateia.
– Desculpa, não quero atrapalhar – E saiu, abaixando-se na tentativa de diminuir as vozes que cochichavam xingamentos para o intruso que atrapalhava suas experiências.
Faltava muito pouco para a peça acabar quando Maya decidiu ir atrás dele, praguejando a si mesma.
Quando ela saiu do teatro, não fazia ideia de para onde ir. Ele poderia estar em qualquer lugar! E se por acaso tivesse ido para a cabine de Monteiro, não teria como ir até ele.
Maya decidiu ir para o cassino, verificar se Victor voltara para a presença dos colegas. Ela estava preocupada, talvez por isso tenha demorado alguns segundos para entender a cena que estava diante de seus olhos: Igor estava aos beijos com uma mulher loira enquanto várias pessoas no ambiente gritavam em comemoração.
Sem pensar muito, deu alguns passos para trás. Por sorte, acreditava não ter sido vista por Igor ou por Jorge.
Igor é casado. Igor tem um filho. Ela conhece a esposa dele, já a viu diversas vezes em eventos da Ivory e em saideiras com os colegas. Que porra estava acontecendo?
Não havia humor para voltar ao teatro. De qualquer maneira, a peça já devia ter acabado. E ela não tinha sequer vontade de continuar procurando por Victor. Com o estômago embrulhado, subiu para sua cabine, na esperança de adormecer e esquecer o que havia visto.
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