7. Você falhou, Montreal.
Eu podia resumir todas as aulas que eu já tive nessa faculdade em duas palavras: completo tédio. Eu escutava, eu anotava, eu estudava, eu fazia trabalhos, mas sem satisfação, sem prazer em fazer aquilo. E parece que todos me julgavam por isso. Parecia que todos amavam o curso e estavam com o futuro certo, menos eu. Talvez por isso eu me sentia um pouco excluída e tinha poucas amizades. Corrigindo: nenhuma amizade, no máximo colegas para perguntar sobre a data de uma prova. E, como já era de se esperar, essa solidão apenas fazia tudo mais entediante. Era segunda-feira e eu já tinha saído da faculdade e ido para o trabalho. O movimento não estava muito bom e eu e Karina estávamos encostadas no balcão, como de costume, esperando alguma coisa para se fazer naquele meio tempo.
- Você vai vir com os patins amanhã? - Karina disse
- Vou. Infelizmente.
- Eu pensava que você não viria. Que faria um protesto, que se recusaria.
- E eu quero lá ser demitida? Além do mais, eu seria demitida sozinha, já que vocês ficaram quietas quando tiveram o poder de contestar comigo.
- Desculpa por isso - ela disse - É que esse emprego é a minha única forma de viver, eu não posso perdê-lo.
- Você não se imagina fazendo outra coisa?
- Eu não tenho nenhum talento, Montreal. Parece que minha única vocação na vida é anotar pedidos, entregar pedidos, pegar a gorjeta, limpar a mesa e sorrir.
- Pelo menos você tem dentes bonitos para sorrir - eu falei, brincando - Mas eu te entendo...
- Não, você não me entende. Você tem talento.
Eu fiquei parada por um segundo. Ela sabia da minha paixão por fotografia? Eu sempre mantive esse segredo somente para mim.
- Eu? Talento?
- Sim. Você está sempre contestando. Sempre falando o que pensa, sempre defendendo o que acha certo. Poucas pessoas têm esse dom.
Eu fiquei um pouco aliviada e depois refleti sobre aquilo. Eu nunca havia parado para pensar nessa minha característica de modo positivo.
- Eu aposto que você tem um talento escondido - falei, mudando de assunto
- Não, não tenho. Eu vou morrer sozinha nesse uniforme brega.
- Karina! - a repreendi - Não fale assim. Não desista assim tão fácil. Mas, falando nisso, você não tem noção do que foi meu fim de semana.
- Por favor, desembucha! - ela riu
Eu contei sobre as aulas de patins, sobre a piscina, sobre Enzo contando sua história para mim e sobre Daniel estar apaixonado. Ela ouvia com atenção e soltava uns comentários no meio de meu monólogo. Por sorte, o movimento estava fraco, já que eu devo ter passado pelo menos uma hora tagarelando sobre tudo e intercalando a conversa com algumas limpezas de mesas e sorrisos aos clientes.
- Sua sortuda! - ela exclamou quando eu finalmente tinha contado tudo o que aconteceu e me encostei no balcão novamente
- Sortuda? Eu estou é cheia de problemas.
- Eu morreria por problemas assim. Você teve dois instrutores de patins, um deles é gato para caramba, nem tente me contradizer porque eu já o vi pessoalmente, e anda sempre com trajes de banho na piscina. Agora tem um outro apaixonado por você!? Qual é? Nem pra dividir com o resto aqui?
- Eu não quero ter um outro apaixonado por mim! Ele é uma criança.
- 19 anos não é bem uma criança.
- Para mim é!
- Sabe o que eu acho? Você está apaixonada pelo cara da piscina e por isso não quer o mais novo no seu pé.
- De onde surgiu isso agora? Eu mal conheço ele.
- Você não viu o jeito com o qual você me contou sobre ele se abrindo com você.
- Ah, por favor.
- Se estão de conversinha, aposto que todas as mesas estão servidas, limpas e já aprenderam a andar de patins, não é? - o gerente nos interrompeu
Eu fiz o máximo para não falar bobagens a ele. Eu tinha vontade é de fazê-lo ficar mudo permanentemente com minhas próprias mãos. Amanhã seria o dia no qual ele ia engolir todo seu orgulho. Eu sabia que ele estava ansioso para me ver estabanada no chão tentando anotar e entregar pedidos, mas ele mal sabia o que lhe esperava. Quem venceria esse jogo seria eu.
◆
Ao chegar em casa do trabalho, estranhei Charlie estar esperando por mim na porta.
- Olá, Charlie - eu o cumprimentei
- Olá, desculpa o incômodo, mas será que podemos conversar?
- Claro - uma certa curiosidade me invadiu
Abri a porta, jogando minha bolsa em cima da mesa e o convidando a sentar no sofá.
- Não, obrigado. Não preciso me sentar - foi o que ele disse e eu não insisti
- Aconteceu algo?
- Eu queria pedir desculpas pelo comportamento do Daniel.
- Charlie, não há necessidade...
- Sim, eu sei que há. A vizinhança inteira ouviu a discussão. Daniel pode ser bem teimoso.
- Por que ele não veio me pedir desculpas? Não faz sentido você vir aqui no lugar dele.
- Ele está trancado no quarto e não quer falar com ninguém - senti que Charlie se envergonhou ao falar isso
Eu suspirei.
- Desculpa, Charlie, eu sei que é seu filho, mas, se você ouviu a discussão ontem, viu que eu tinha razão. Daniel é muito imaturo, estar trancado assim no quarto é mais uma prova disso. Eu não me arriscaria a começar a conhecê-lo melhor com a finalidade de algo a mais que uma amizade.
- Eu entendo perfeitamente. Eu só queria me desculpar.
- Não há nada para ser desculpado, mas eu agradeço.
- Acho que já te incomodei demais, eu vou embora.
- Diga a Daniel que, quando ele resolver parar de pirraça e começar a falar com alguém, para conversar comigo. Eu não posso deixar isso como está.
- Eu digo - ele disse já à porta, saindo
Eu suspirei, ouvindo a porta ser fechada. Para quem não queria arranjar problemas, eu tinha arranjado um dos grandes. Não deu tempo nem para eu tomar um banho, a campainha tocou de novo. Acho que essa campainha nunca foi tão usada. Desta vez, não me incomodei em atender. Apenas gritei "pode entrar", já que a porta estava aberta.
- Aconteceu alguma coisa? - Enzo perguntou ao abrir a porta e me encontrar sentada no sofá com a cabeça baixa
Eu o olhei e ele segurava a bandeja do nosso treinamento.
- Não foi nada - falei, me levantando
- Tem certeza? Vi Charlie saindo daqui e pensei que tivesse acontecido.
- Está tudo bem. Eu vou prender meu cabelo para a minha última aula de patins - eu disse, subindo as escadas
Eu estava exausta, mas eu tinha que me sair bem com os patins amanhã, então me forcei a treinar. Quando desci as escadas, Enzo estava encarando o bolinho que Daniel me dera ainda intacto em cima da mesa.
- Você precisa jogar isso fora - ele falou - Está tão duro e ressecado que pode até quebrar um dente.
Eu não queria falar sobre nada que me lembrasse que o imaturo que morava no fim da rua estava pensando estar apaixonado por mim, então apenas soltei um "vamos?". Ele concordou e fomos à rua treinar.
- Você está muito desconcentrada - ele falou enquanto pegava a bandeja do chão
- Desculpa.
- Não tem por que pedir desculpa, é você quem tem que se dar bem nisso, não eu.
- Eu estou cansada - falei, patinando até o meio-fio e me sentando ali
- Você me parece preocupada - ele falou, sentando-se ao meu lado - Tem certeza que não quer falar sobre o que está acontecendo?
- Problemas, preocupação, ansiedade - eu disse, suspirando
- Você ouviu meus problemas, eu não me importaria em ouvir os seus caso você queira falar sobre eles.
- Não finja que você não ouviu a discussão ontem. Você sabe o que aconteceu.
- Então é porque o garoto se apaixonou por você? - ele riu
- Eu odeio isso.
- Gente se apaixonando por você?
- Não. Gente, que eu não quero se apaixonando por mim, pensando que está apaixonada por mim.
- Fica calma, isso já passa. É coisa de garoto.
- Coisa de garoto?
- Sim. Pensa bem: de repente você chega na vizinhança, solteira, é simpática com ele, precisa de ajuda. É claro que ele vai criar esperanças. Ainda mais quando você é mais velha, garotos dessa idade tem fantasias com mulheres mais velhas.
- Por favor, diga que você não falou "fantasias". Acho que eu vou vomitar.
Ele riu de novo, mas eu estava sinceramente enjoada.
- Vá descansar. Amanhã é seu grande dia - ele me disse, tocando meus ombros e se levantando
- Obrigada.
- De nada e - ele parou e me olhou - seu cabelo está cheirando a gordura, tenta lavar isso.
Eu quis me enterrar viva. "Idiota", eu falei baixo e ele riu, já se afastando.
Fiquei mais um tempo ali, sentada, pensando. Era estranho como a imagem que eu tinha de Enzo havia mudado. Tudo bem, ele continuava com suas gracinhas, mas não me irritava mais tanto. Eu sabia que ele não fazia por mal. E a minha imagem de Daniel também havia mudado. Tudo o que eu enxergava agora era uma criança mimada e imatura.
Respirei fundo e cheirei meu cabelo. Ó céus, eu precisava mesmo de um banho.
◆
Amarrei os patins nos pés e respirei fundo. Eu não podia errar.
Levantei, testando meu equilíbrio. Tudo bem, você consegue, Montreal. Você consegue. Peguei a bandeja com uma das minhas mãos, equilibrando o pedido nela e patinei até a mesa certa com cuidado. No caminho, passei por Karina, que estava indo bem, apesar de tudo. Sorte dela já saber patinar desde criança. A outra garçonete, Debra, estava atendendo outra área do restaurante e também parecia ir bem, assim como Jasmine. Apesar de estarmos indo bem, sentíamos o nervosismo e toda a pressão em cima de nós.
- Aqui está, senhor. Um hambúrguer duplo com queijo, bacon e cebolas fritas - falei, colocando o prato sobre a mesa
Ele me agradeceu e eu patinei para outra mesa, perguntando se estava tudo em ordem. Quem dera houvesse alguém para me perguntar se estava tudo em ordem comigo, já que eu estava desmoronando de nervosismo.
- O cara da piscina está aí - Karina disse, passando por mim e depois indo para outra mesa
Eu olhei para a porta e Enzo estava ali. Seu olhar se encontrou com o meu e ele fez um sinal de jóia enquanto se sentava. O estranho é que sua presença me trouxe calma. Fui até ele, patinando e parando na beirada da mesa.
- Bom dia, senhor. O que deseja? - falei sorrindo
- Vejo que você está indo bem. Nenhum lanche derrubado ainda, nenhum uniforme manchado...
- Estamos nos virando, na medida do possível.
- Eu trouxe isso para você - ele falou, me entregando uma caixa que tirou de dentro da sacola que carregava
Era um cubo colorido e eu o abri e encontrei um bolinho decorado ali dentro.
- Pensei que você iria querer outro, não iria te deixar comer aquele todo duro e ressecado.
- Oh, obrigada! Mas não precisava se incomodar, Enzo.
- Ah, não foi nada. Sério. Eu faço isso todo dia.
- Faz isso todo dia?
- Nunca te contei? Sou confeiteiro.
É, ele nunca havia me contado.
- Então foi você quem fez?
- Sim, é de chocolate com cobertura de baunilha e recheio cremoso. Minha especialidade.
- Tem certeza que não tem nenhum veneno dentro? Vai saber, talvez você queira a piscina só para você - falei rindo
Ele chacoalhou a cabeça, também rindo.
- Prometo que não sujaria minha reputação com um assunto tão banal. Afinal, nós dois sabemos que a piscina é minha.
Eu abri a boca em protesto e foi aí que ouvi um cliente em outra mesa chamar por uma garçonete.
- O dever me chama - falei - Vai pedir algo?
- Um hambúrguer com queijo, bacon e bastante molho barbecue com fritas e um refrigerante - ele disse e eu anotei
- Já volto.
Fui até o balcão, deixando o pedido na cozinha. Karina passou por mim de novo e parou para pegar um pedido.
- O que é esse sorriso bobo na sua cara? - ela falou - Foi só ele chegar pro seu humor melhorar.
- Karina - a repreendi - Não tem nada entre a gente.
- Sim, e eu sou a rainha da Escócia! - ela virou os olhos - Deixa eu levar isso aqui para mesa oito - falou, colocando o pedido sobre a bandeja e patinando até lá
Eu a observei, sorrindo. Eu tinha que parar de sorrir que nem uma tonta.
E realmente parei de sorrir assim que vi Karina se confundir com os patins na hora de parar na mesa. Ela acabou derrubando o pedido no chão para não derrubá-lo nos clientes e se desequilibrou, caindo. Enzo, que estava na mesa ao lado, se levantou às pressas para ajudá-la e parece que todo o restaurante parou para ver a cena.
Eu patinei ao seu encontro, também a ajudando. E é claro que, com o barulho, a mala do gerente apareceu, querendo explicações.
- Mas o que é isso? - ele disse - Você vai pagar por essa bagunça!
Eu quis agarrá-lo pelo pescoço. Como ele conseguia ser tão mala e tão não-profissional ao mesmo tempo?
- Não foi culpa dela - Enzo se pronunciou e eu o olhei - Fui eu quem acabei esbarrando nela por acidente. A culpa é toda minha.
Karina também o olhou, tentando entender, mas não disse mais nada.
- Limpem essa bagunça - ele falou a nós - E me desculpe, senhor, isso não vai acontecer de novo.
- Já disse que a culpa foi minha, vou prestar mais atenção. Não desconte nelas - Enzo respondeu
O gerente saiu e Karina se levantou, ajeitando o uniforme.
- Não precisava ter feito aquilo - ela disse a Enzo - Mas obrigada. Você salvou meu emprego.
- Não há de quê - ele falou - Nenhum gerente é maluco de contrariar um cliente.
Ela sorriu a ele, envergonhada e se recompondo. Pegou a bandeja e se virou ao cliente da mesa oito, se desculpando e já providenciando outro pedido.
Eu olhei a bagunça e suspirei. Estava tudo indo tão bem...
- Não fica assim... - Enzo falou ao ver minha expressão
- Obrigada por isso, significou muito.
- Eu não ia deixar tudo acabar assim, eu vi o quanto você treinou e o quanto vocês estão tentando fazer isso funcionar. E também vi o carrasco que é o gerente.
- Muito obrigada, eu mal sei o que dizer. Mas volta para sua mesa, eu vou pegar o seu pedido e depois limpar essa bagunça.
Ele assim o fez e eu voltei ao balcão, desviando da sujeira no chão. Peguei o pedido e agradeci a Mateo, nosso cozinheiro. Até ele percebeu que eu estava frustrada.
Então eu voltei, tomando cuidado para não derrapar na sujeira do chão.
- Aqui está, senhor. Um hambúrguer com queijo, bacon e muito barbecue, fritas e um refrigerante. Algo mais?
- Sim, só mais uma coisa: pare de me chamar de senhor, você sabe meu nome - ele falou sorrindo - E eu não sou tão velho assim, sou?
- Quer que eu te chame de quê? Rapaz? Moço? - falei, rindo - Acho que você já passou dessa idade.
- Ah, nem vem. Eu não sou tão velho.
- Tudo bem, senhor. O cliente é quem manda - eu disse, sorrindo
Karina chegou ao meu lado, carregando um esfregão. Ela estava desconsertada, desconcentrada, cabisbaixa.
- Pode deixar que eu limpo isso, Karina - eu disse
- Não, não precisa, fui eu quem derrubei.
- Fale mais baixo, a culpa é minha, lembra? - Enzo pronunciou ao ouvir nossa conversa
Ela sorriu a ele, embaraçada e sorriu mais uma vez. Eu tive uma sensação engraçada: eu não gostei de ver essa troca de sorrisos, apesar de também estar sorrindo e agradecida com a situação.
- Bom, eu vou atender outros clientes. Bom apetite - eu interrompi aquilo, saindo rápido dali
Eu não sei o que estava acontecendo comigo, mas tive que me recompor e vestir um sorriso para atender outras mesas. Um tempo depois, Enzo pediu a conta e eu o atendi.
- Então, eu te vejo mais tarde? - ele me disse
Eu estranhei, afinal não tínhamos mais aulas de patinação para fazer.
- Claro - apesar de tudo, não consegui negar
- Você pode passar em casa, com certeza vão ter bolinhos esperando por você - ele sorriu, deixando a gorjeta, e eu o acompanhei
Saiu pela porta da frente e eu mal percebi que fiquei parada esperando ele sair do meu campo de visão.
- Que homem, ein? - Karina falou, ficando ao meu lado - Acho que vou chamá-lo para sair.
- O quê? - eu exclamei - Você já passou seu número para ele e nada aconteceu.
- Mas, depois de hoje, acho que acontece. Você viu o que ele fez por mim, não viu?
- Vi - falei entre os dentes
- E, afinal de contas, você mesma disse que não tem nada entre vocês dois.
- Só não acho que daria certo. Só isso. É perda de tempo de sua parte - eu disse, sem a olhar
- Isso foi um teste para saber se você realmente não sente nada por ele e você falhou, Montreal - ela falou, rindo e batendo em meu ombro
- Eu te odeio, Karina - eu falei enquanto ela patinava para longe, ainda rindo
Droga.
Ninguém derrubou nada ou caiu durante o resto do dia, apesar de muitos "quases". Eu não sabia até quando eu aguentaria aquilo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro