6. Eu deveria ter lido o contrato.
- Não, não dá. Eu vou perder meu emprego - eu falei, sentada no chão depois de um tombo
- Não fala isso, você não está indo tão mal assim - Daniel disse, me ajudando a levantar
- Para de mentir, eu sou um desastre. Eu tenho hematomas no meu quadril inteiro, meus joelhos estão ralados...
- É só mais um pouco de prática...
- Eu só tenho mais três dias, não vai dar. É melhor eu começar a procurar outro emprego. Muito obrigada por ter tentado me ensinar...
Daniel respirou fundo, mas não disse mais nada e se levantou, descendo a rua até sua casa. Eu tirei os patins do pé e caminhei descalça e derrotada até a porta da frente. Para minha surpresa, Enzo estava ali, sentado na entrada.
Confesso que a imagem que eu tinha dele havia mudado completamente depois da nossa conversa. Eu não conseguia mais vê-lo sem pensar em tudo pelo o que ele passou. Eu tinha uma certa compaixão por sua história agora, mas isso não o salvava de ser bem irritante às vezes. Eu também me sentia mal por tê-lo julgado.
- Não precisa brigar comigo, eu sei que a porta da frente é inteira sua. Eu só não estou conseguindo dormir, te contar aquilo tudo me fez reviver as memórias.
- Eu não vou brigar com você nem se eu quisesse. Eu estou quebrada - falei, sentando ao seu lado e jogando os patins no chão
- Está aprendendo a patinar?
- Não por opção própria. Ou eu aprendo, ou eu perco o emprego.
- Deixa eu adivinhar: estão querendo transformar aquele lugar em um restaurante da década de 50 decente? Por que eles não começam mudando a comida? Está bem longe de ser anos 50.
Eu ri daquilo, mas por pouco tempo. Eu estava preocupada em perder meu emprego. Eu não sabia se ia ser a única a cair, nem se eles continuariam insistindo nisso se for um completo desastre.
- Se você não se importa, posso te perguntar algo?
- Claro.
- Por que você insiste em ser garçonete e tranca seu talento dentro de um lavabo escuro?
- Seu sobrenome por acaso é Henke?
- O quê?
- Eu tenho um professor chamado Sr. Henke e você acabou de me perguntar o que ele me pergunta sempre que pode.
- Você deveria ouvi-lo. E, afinal, o que você estuda?
- Turismo.
- Espera, você tem um dom fotográfico enorme, mas é garçonete e faz turismo? - ele disse rindo - Não dá para entender.
- Eu realmente não estou a fim de falar ou ouvir sobre isso. Se quiser eu apresento você ao Sr. Henke e vocês podem bater altos papos e bolar mil e uma teorias sobre o quão errada ou maluca ou contraditória eu sou.
- Ai, essa doeu. Não está mais aqui quem falou.
- Desculpa, é que - suspirei - Eu tenho três dias para aprender a andar sobre essas coisas segurando uma bandeja sorrindo e eu não consigo.
- E você está tentando fazer isso sozinha?
- Não, Daniel está me ajudando.
- Daniel? O moleque que mora ali no final da rua? - ele soltou uma gargalhada - O máximo que ele deve ter patinado foi no videogame e olhe lá...
- Eu sou um desastre - eu lamentei, abaixando a cabeça - Um desastre prestes a ficar desempregado.
- Calma. Olha, eu acho que posso te ajudar.
- Eu não sei se você vai conseguir.
- Se você não sabe, vamos descobrir. Anda, coloca esses patins - ele disse, se levantando
Eu resmunguei.
- Não. Hoje não dá mais. Eu estou morta, tudo do meu quadril para baixo está doendo.
- O tempo está passando e você disse que só tem três dias, então levanta esse traseiro e vamos logo. Além disso, passou da meia-noite, já é domingo. Agora você tem apenas dois dias.
- Desde quando você se encarregou de ser meu treinador carrasco? - eu disse levantando e colocando os patins
- Desde agora - ele disse num sorriso enquanto eu me queixava que estava exausta
Dizer que estava exausta não me livrou de mais um treino, mas o que custava tentar?
◆
- Está vendo que seus pés estão paralelos uns aos outros? Assim você não anda. Você tem que abrir suas pernas para um lado e depois para o outro.
- Como assim?
- Arraste o seu pé direito para a direita, abrindo o passo. Assim que abrir o máximo que puder, arraste o pé esquerdo para o lado esquerdo da mesma maneira.
Eu fiz e acabei ficando com as pernas abertas.
- E agora?
- Agora você recolhe sua perna direita para o ponto de partida inicial e faz a mesma coisa, só que quando estiver acabando de abrir o lado direito, faz a mesma coisa com o esquerdo.
Eu tentei fazer o que ele havia me falado, pelo menos o que eu tinha entendido, e comecei a me mover. Foram movimentos um pouco travados, sem jeito.
- Está funcionando?
- Sim, você só precisa se acostumar com o tempo entre os passos e pegar mais velocidade.
Eu me concentrei e acabei patinando. Um pouco desengonçada, mas patinei. Eu fiquei tão feliz que gritei (para desgosto da minha nova vizinhança).
- Eu consegui! - eu falei, sentindo que peguei o ritmo
Ele correu atrás de mim enquanto eu pegava velocidade.
- E o que eu faço para parar? - perguntei assim que percebi que já estava quase saindo da rua - Enzo! Eu não consigo parar!
Eu comecei a ficar desesperada. Tinha medo de cair naquela velocidade e tinha medo de sair da rua e encontrar um carro. Eu havia parado de patinar, mas a velocidade continuava devido à descida e meu equilíbrio estava indo embora.
- Enzo! - eu gritei
Ele, que corria atrás de mim, me alcançou, correndo à minha frente e passando suas mãos pela minha cintura, me puxando para ele e a assim cessando minha velocidade bruscamente.
- Acho que eu devia ter te ensinado a frear primeiro - ele riu
- Sim, porque eu não preciso de treino para dar esbarrões na mesa e derrubar o pedido no cliente, nisso eu já sou profissional.
Meu comentário não era para ser engraçado, mas eu ri vendo seu riso se abrir também, só que muito perto de mim. Nossa proximidade era tamanha e me deixou um pouco desconsertada.
- Você vai me largar ou metade de mim é sua também? - falei rindo
- Eu deveria ter lido o contrato - ele falou rindo, me largando, e eu patinei para longe dele
- Não pega muita velocidade, não vou correr atrás de você de novo - ele gritou
- Então compre patins pra você - eu gritei e ri
Ele me ensinou a desacelerar e parar depois disso e eu finalmente senti que havia progredido. Eu finalmente não me sentia mais tão derrotada por um conjunto de sapatos com rodinhas.
- Eu mal acredito que eu não caí! - eu falei, já voltando para casa segurando os patins no chão
- Com alguém para te segurar é fácil - ele falou e recebeu um soco indolor meu no braço
- Se quiser treinar amanhã de novo, estou livre.
- Parece que você está sempre livre, o que você faz afinal?
- Eu trabalho em casa. Estou quase sempre aqui.
- Ok. Olha, eu preciso dormir, eu estou exausta. Já deve ter passado da uma da manhã, daqui a pouco a vizinhança chama a polícia. Muito obrigada, mesmo.
- Não precisa agradecer, foi divertido.
- Deve ter sido muito divertido rir de mim mesmo.
- Ei, não foi isso que eu disse - ele falou rindo
- Boa noite, Enzo.
- Boa noite, vizinha.
E, depois disso, eu fechei a porta e corri para tomar outro banho e dormir. Eu estava quebrada e só uma boa noite de sono ia me curar.
◆
O domingo começou tranquilo e eu pude acordar tarde e não me preocupar com trabalho. Estudei um pouco, já que a minha consciência pesava em relação a perder minha bolsa, mas foi o máximo que eu fiz. Não estava nem um pouco interessada.
Eu passei parte da minha tarde no meu laboratório improvisado, analisando as fotos que eu havia tirado. Eu via tantos defeitos nelas, mas algo me fez gostar e eu sabia exatamente o que era esse algo. Apesar de tudo, prometi que iria voltar àquela lanchonete e tirar mais algumas fotos, mas, desta vez, sem ter muita vergonha.
Ouvi o barulho de mergulho na piscina e sorri inconscientemente. Fui até o quintal e o vi mergulhando. Quando voltou à superfície, puxou o cabelo molhado dos olhos e sorriu.
- Você gosta dessa piscina, não é? - perguntei
- Tenho boas memórias de coisas que aconteceram aqui.
- Com ela, certo? - ele sabia que eu me referia à sua esposa
- Sim, com ela. Nós dávamos um mergulho aqui sempre que podíamos, construímos essa piscina com muito esforço, então nos obrigávamos a usá-la.
- Você sente muita falta dela? - arrependi de ter feito uma pergunta tão óbvia e imbecil dessas assim que a fiz
Ele olhou para a água da piscina e hesitou em responder.
- Ela está na minha mente o tempo todo, todos os dias, eu querendo ou não.
Eu me calei. O que eu diria? "Eu entendo"? Seria uma mentira porque eu não entendia, já que nunca havia passado por aquilo.
- Eu sinto muito - eu disse
- Eu odeio essa cara de enterro que as pessoas fazem quando eu falo sobre isso, então não precisa fazê-la - ele riu - Já te ligaram da imobiliária?
- Nem sinal. Eu vou ter que ameaçar entrar na justiça de novo.
- Eu já disse, é só me dizer a quantia.
- Eu também já disse que não vou aceitar seu dinheiro. É mais que uma questão financeira para mim. Eu fui enganada.
- Ou não leu o contrato.
- O que você queria? Que eu lesse o contrato com uma fita métrica medindo cada milímetro desse quintal?
- Ok, não quis te estressar. Desculpa.
- Só está desculpado se me der mais uma aula de patinação.
- Que tal duas aulas?
- Por que duas aulas?
- Por isso! - no mesmo momento, ele puxou minhas pernas, me fazendo cair n'água
Eu mal havia percebido que ele havia se aproximado de mim enquanto conversávamos e estava planejando fazer aquilo.
- Seu maluco - eu falei jogando água em seu rosto - Eu podia ter morrido.
- Não seja dramática, você sabe nadar.
- Você é um idiota.
- Arranje outro adjetivo, já me cansei desse.
- Que tal esse adjetivo? - eu impulsionei meu corpo para cima e coloquei minhas mãos em sua cabeça para logo depois empurrá-lo para baixo, afogando-o
Soltei seu corpo depois dele ter lutado um pouco contra aquilo, nada que realmente causasse perigo.
- Agora eu é quem podia ter morrido! - ele gritou
Eu me encostei à margem, o observando e rindo.
- Você não tem que aprender a andar de patins para não perder o emprego ou algo assim? Já está escurecendo.
- Vou fazer o quê se meu treinador está na piscina?
Ele jogou água em mim e nós dois rimos.
- Agora para de moleza e vai pegar o patins, essa aula começa agora mesmo - falou, saindo da piscina e eu reclamei - Pare de resmungar, seu treinador já saiu da piscina, mas tudo bem, quem vai perder o emprego é você...
Eu me apoiei na beira da piscina, tentando sair, mas minhas roupas pesadas estavam dificultando.
Então, fui até o outro lado e saí pela escada. Ele não falou nada sobre eu ter atravessado seu lado da piscina e eu também não disse nada sobre ele ter estado do meu lado quando me derrubou. Pareceu certo não discutir por tal bobagem.
◆
Eu entrei em casa, tirando a roupa molhada e agradecendo por ser primavera e não estar muito frio. Eu sou profissional em pegar resfriados por qualquer coisinha. Prendi meu cabelo, molhado mesmo, e passei pela tortura chamada "tentar colocar calça de ginástica com o corpo úmido". Depois disso, desci as escadas e, na hora em que peguei os patins, a campainha tocou.
- Fomos sincronizados - eu disse, abrindo a porta
- Vamos, você tem que aprender a freiar em espaços curtos e olha o que eu trouxe - ele disse, me mostrando uma bandeja
- Estou vendo que hoje não vai ser fácil.
- Ah, por favor! Se eu quisesse mesmo te desafiar, teria posto algo em cima da bandeja.
- Eu posso grudar o pedido à bandeja com cola permanente?
- Não - ele riu - Vai, coloque os patins.
Eu pus os patins em meus pés e patinei até a rua. Ele primeiro me ensinou a controlar minha velocidade e a parar rapidamente. E depois veio a bandeja. Confesso que me equilibrar somente com uma mão era mais difícil do que eu pensava.
O barulho da bandeja caindo no chão me fez resmungar, quase chorar.
- Ainda bem que está vazia - ele falou, recolhendo a bandeja do chão
- Eu sou um desastre, não sou?
- Não, não é. Não é a coisa mais fácil do mundo e você teve muito pouco tempo para aprender. Além do mais, eles não estão te oferecendo nenhum treinamento profissional.
- Bem vindo ao mundo capitalista! - eu falei
- Vamos tentar mais uma vez? Dessa vez tenta ficar com a mão no centro da bandeja e se concentra.
Eu resmunguei mais uma vez, mas aceitei. Eu estava indo bem, me concentrando e mantendo meus pés quase no modo automático. Só que isso não durou muito tempo: a bandeja caiu de novo no chão, fazendo um barulho estridente, assim que eu ouvi meu nome ser chamado. Era Daniel. Acho que eu acabei contratando um instrutor novo sem demitir o antigo...
- Você podia ao menos ter me dito que minhas aulas não estavam funcionando, não é? - ele disse, irritado
- Daniel, me desculpa! Eu não planejei isso - disse, patinando até ele
- Vejo que você aprendeu a patinar e a parar muito bem - Daniel falou olhando para meus pés
- Eu... Desculpa. Eu sinto muito não ter te contado, mas quanto mais ajuda, melhor...
- Pega leve, ela estava desesperada - Enzo se pronunciou
- Eu não estou falando com você - Daniel foi grosso
- Tudo bem. Eu vou embora, se precisar de ajuda amanhã, é só me dizer - Enzo se referiu a mim - Boa noite.
- Boa noite, e obrigada.
- Não há de quê - ele disse, já se dirigindo à sua casa
- Você não precisava ser tão grosso com ele - falei a Daniel, um pouco mais baixo
- Eu gasto meu tempo tentando te ensinar a patinar e você estava tendo aula com ele sem me falar?
- Aconteceu! Não foi planejado, não foi para desperdiçar seu tempo! Acontece que o método que ele me ensinou foi melhor. Eu devia ter te contado, me desculpa. Mas não estou desprezando suas aulas...
- Não preciso saber o quão melhor ele é... Eu vou embora.
- Daniel - o repreendi - Você está com... Ciúmes?
Eu senti um pouco de inveja ou ciúmes em sua frase e queria saber a razão. Eu estava confusa. Era só porque Enzo conseguiu me ensinar e ele não?
- Sim! Eu estou, caramba! - ele respondeu forte e isso me assustou
- Não precisa estar, não há razão. Eu realmente agradeço suas aulas e todo o seu tempo, mas...
- Não é sobre as aulas! - ele me interrompeu - Desde que você apareceu nessa vizinhança, eu tenho tentado passar tempo com você! Por que você acha que eu não te disse nada sobre o quintal ser dividido e secretamente torcia para você não descobrir a tempo de desistir? É porque eu te queria como vizinha! Eu até carreguei seus móveis!
- Uou. Ok - foi tudo o que eu pronunciei, eu estava surpresa
- Eu mal sei patinar, mas eu estava tentando te ajudar para me aproximar de você! E agora vem esse cara, te ensina e você já está toda morrendo de amores por ele.
- Ei - eu o repreendi - Você não sabe nada da minha vida para estar me acusando assim.
- Esse é o ponto! Eu não sei nada da sua vida, mas eu quero saber! E parece que meus esforços são em vão!
- Daniel - eu disse, colocando a mão em um de seus ombros - Não é como se tudo estivesse perdido, nós podemos ser amigos, você pode saber mais de mim sim, com ou sem o Enzo na história.
- Amigos?
- Espera lá... Você por algum acaso não está querendo algo a mais comigo, certo?
- É claro que estou!
- Daniel! - eu gritei - Eu posso não parecer, mas tenho vinte e seis anos e você tem, sei lá, 18?
- 19 - ele disse entre os dentes
- Que seja! Quando você estava nascendo, eu tinha 7 anos! Isso é simplesmente inviável. Nossas realidades são diferentes, nossos objetivos são diferentes, isso nunca iria dar certo.
- Idade não significa nada!
- Pra mim significa! Essa ceninha toda que você está fazendo agora já mostra que nossas maturidades são completamente diferentes...
- Ótimo! Nunca mais conte comigo - ele falou, andando firme para longe, como uma criança fazendo pirraça
Ele não percebia que era exatamente por causa daquilo que nunca daria certo? Nem se eu quisesse? E eu tinha certeza que não queria.
Olhei em torno da rua, envergonhada e torcendo para que nenhum vizinho tivesse ouvido a discussão, o que eu achava improvável. E assim, sem saber onde enfiar a cara, eu patinei até a porta da frente, tirei os patins e me enfiei dentro de casa, desejando um banho quente e um remédio de dor de cabeça.
Ao tentar tirar o cloro do meu cabelo, a água me tirou por alguns segundos toda a preocupação. Onde já se viu? Um garoto de 19 anos apaixonado, ou pensando estar apaixonado, por mim? E ainda fazendo escândalos por ciúmes completamente sem razão já que não havia nada entre eu e Enzo? Eu já tinha muitos problemas, eu não queria mais um.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro