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31. Você tem que me impedir, Montreal.




Não conseguimos encarar o dia da mesma forma, como já era de se imaginar. Levei Isa ao hospital só por segurança. Foi chato ficar esperando atendimento sem muito o que fazer a não ser ler revistas velhas, mas fiquei aliviada quando o médico apenas passou um expectorante de gripe, já que não era nada grave. Isa permaneceu quieta, como se ainda estivesse com medo de que fôssemos bater nela. Meu coração estava apertado, mas o de Enzo havia se enchido de revolta. Ele instalou a babá eletrônica enquanto estávamos no hospital e vasculhou o quarto de Isa para ver se havia algum vestígio desse tal de Troy, mas não achou nada. Eu sentia sua frustração de longe.

- Não sei se vou conseguir dormir essa noite, vai te incomodar? Posso dormir no sofá lá de baixo se for melhor.

O quarto já estava escuro e meus olhos já estavam fechados quando ele me disse isso. Eu alcancei o abajur do meu lado e o liguei, me sentando na cama.

- Não sei se eu vou conseguir dormir também, estou com medo de ter um sonho bom, mas acordar dentro de um pesadelo.

Enzo respirou fundo, se arrastando pelos lençóis e se sentando também.

- Você ainda está brava comigo? Por ter me descuidado e Isa quase ter se afogado?

- Isso agora é o de menos, Enzo. Eu não vou te culpar mais do que você está se culpando, mas agora é diferente. Ela pulou não por seu descuido e sim porque alguém a fez acreditar que ela podia. Alguém ainda a fez jurar silêncio para nós sobre isso. É grave demais.

- Bom, pelo menos agora você concorda comigo que essa história de amigo imaginário é mentira. Quem está querendo mal para Isa é tudo menos imaginário.

Eu exalei o ar preso em meus pulmões, concordando.

- Queria que ela estivesse dormindo aqui com a gente hoje.

- Ela ainda está com medo de alguma forma pelo que fez. Ela mal nos olhou nos olhos o dia inteiro. Não vamos forçá-la a dormir aqui, senão ela não vai se sentir confortável.

- Você tem razão, na verdade, você sempre teve razão desde o começo. Eu deveria ter acreditado mais em você, não deveria ter achado exagero, super-proteção. Talvez hoje não teria sido assim se eu tivesse confiado um pouco mais.

Minha voz se quebrou e eu percebi que eu estava chorando. Ele me puxou para os seus braços e beijou meu ombro.

- A gente vai resolver isso. Não vou deixar nada tirá-la de nós. Eu prometo.

Joguei minha cabeça na curva do seu ombro, sabendo que a noite seria longa.


Meu sono foi leve. Eu me revirava, sem achar uma posição agradável. Enzo passou pelo mesmo. As horas não passavam. Perto das sete da manhã, ele pegou seu celular no criado mudo e ficou assistindo à câmera da babá-eletrônica. Não era lá a melhor resolução do mundo, ainda mais por também ser uma câmera noturna, mas podíamos ver que Isa estava dormindo. Eu preguei meus olhos por mais uns minutos, até que Enzo se mexeu mais bruscamente.

- O que foi? - eu perguntei ainda sem abrir os olhos

- Ela acordou. Está se levantando - ele falou, já com um nervosismo aparente

Meus olhos se abriram no mesmo instante e nos sentamos na cama, olhando a tela do celular fixamente.

Isadora se levantou, foi até a janela e a abriu. Ficou na ponta do pé observando, esperando algo.
Eu quis ir até seu quarto e ver o que ela tanto observava, mas Enzo disse que era melhor não interferir, não acabar com nossas chances de saber o que realmente estava acontecendo.

Nada aconteceu por alguns minutos, Isa simplesmente observava o dia pela janela. Quando eu já estava quase convencida de que ela estava apenas olhando o sol, a pequena acenou.

- Para quem ela está acenando? Para quem? - fiz essa pergunta retoricamente, já que não tínhamos como ver

Logo que acenou, Isa saiu de frente à janela e parecia apressada para sair do seu quarto, indo à porta. Perdemos a menina do campo de visão da câmera. Enzo logo se levantou da cama, pedindo silêncio, já que agora a câmera era inútil.

Ouvimos atentos aos rangidos do chão de madeira do corredor, rangidos estes que me incomodaram quando visitei a casa com a corretora, mas que agora pareciam vitais.

- Talvez ela tenha ido ao banheiro - eu sussurrei, tentando me convencer

Enzo apenas continuou ouvindo. O chão de madeira tinha parado de ranger.

- Ela está descendo as escadas - ele sussurrou também

Enzo abriu nossa porta com todo o cuidado do mundo para a maçaneta não fazer nenhum barulho. Ele espiou o corredor, vendo que ela não estava mais ali. Nós fomos saindo do quarto sorrateiramente e tentando não fazer a madeira do corredor ranger.

Quando conseguimos ter uma visão boa da escada, vimos que ela estava descendo o último degrau agarrada ao corredor. Eu estava surpresa, talvez meu coração não esperava que ela estivesse realmente se encontrando com alguém. Isadora foi até a porta da frente enquanto nós a observávamos já no meio da escada. Enquanto ela ficava nas pontas dos pés para alcançar a chave e virá-la, eu me segurei para não gritar, para não correr atrás dela. Respirei fundo e me concentrei, eu não poderia colocar tudo a perder.
Com muito esforço, ela virou a chave e girou a maçaneta. A porta se abriu e ela saiu quase correndo. Mal pude acreditar quando meus olhos se ajustaram à luz do sol que entrou pela porta. Foi tudo rápido demais. Ela disse oi, mas a conversa com o tal "Troy" não se estendeu porque Enzo voou pela porta da frente e a pegou no colo por trás, dando um susto nela e também em seu "amigo". Eu o acompanhei quase caindo pelo degrau da porta da frente.


Do outro lado da porta estávamos nós quatro. Eu, ainda atrapalhada, sem querer acreditar. Enzo com raiva nos olhos segurando Isadora assustada. A quarta pessoa havia se afastado, dado uns três passos para trás, como se estivesse preparada para sair correndo dali.

- Você nunca vai mais aparecer por aqui, ok? Se eu te ver mais uma vez na minha porta eu não sei nem o que eu vou fazer com você, moleque, mas não vai ser coisa boa - Enzo disse entre os dentes

Isadora começou a chorar. Sem dizer nada, eu a tirei dos braços de Enzo, tentando acalmá-la. Eu não podia acreditar em meus olhos, não podia acreditar que esse tempo todo esse tal de Troy era o vizinho da casa no final da rua, o maluco que se disse apaixonado por mim, Daniel. Ele estava vestido com seus trajes de corrida, com fones envoltos em seu pescoço. Ele não pareceu se convencer com a ameaça de Enzo.

- Vai fazer o quê comigo, ein? Vai fazer o mesmo que fez com sua ex-mulher? Você ainda se lembra dela, afinal? - o garoto disse num tom sarcástico

Afaguei o rosto cheio de lágrimas de Isadora em meu peito, vendo os punhos de Enzo se fecharem.

- Vai fazer o quê? O mesmo que você fez com seu primeiro filho, ou filha, eu sei lá? Ou vai fazer o mesmo que você fez com a minha mãe, acabar comigo me deixando incapaz pro resto da vida? E então? Estou esperando.

- É melhor você sair daqui. É melhor você nunca mais aparecer. Se eu souber que você está inventando nomes para jogar esse jogo doentio com a nossa filha de novo, eu te denuncio - Enzo falou respirando fundo

- Me denuncia? - ele riu - Mais fácil eu denunciar vocês por abandono de menores, afinal vocês deixaram uma criança indefesa ficar sozinha de manhã aqui na porta. Ou quem sabe eu deveria mencionar para polícia que por falta de atenção ela quase se afogou na piscina?

Daniel deu um passo para trás assim que Enzo deu um passo para frente. Eu pude jurar que Enzo queria voar em seu pescoço.

- Vamos, Enzo. Vamos entrar. Não vai adiantar conversar com um psicopata - eu tentei puxá-lo para dentro

Isa ainda estava no meu colo, chorando ininterruptamente.

- E você, ein? - dessa vez vi que a conversa era comigo - Patética.

- O que você disse? - por burrice, dei corda às acusações

- Caiu na lábia desse aí, dos bolinhos sem graça dele. Já parou para pensar que você é essa criança podem ser apenas mais uma esposa e uma filha para ele matar?

Dessa vez Enzo deu mais que um passo avançando a Daniel. O covarde se esquivou, eu tentava com palavras tirar o ódio do olhar de Enzo, mas até eu queria encher Daniel de pancada a esse ponto. A cena acabou comigo puxando Enzo, seus olhos fixos e seus punhos cerrados para dentro de casa enquanto tentava acalmar Isadora. "Troy" desapareceu pela rua tal como seu disfarce e suas mentiras.


- Você tem que me impedir, Montreal. Você precisa me impedir, me amarrar, esconder as chaves da casa, qualquer coisa, só não me deixa fazer o que eu quero fazer agora. Eu não sei se eu conseguiria parar de bater na cara daquele infeliz.

Estávamos na cozinha. Olhos para baixo, mentes preocupadas. Isadora tinha se livrado dos meus braços assim que entramos em casa e corrido escada acima. Ela se fechou em seu quarto e não saiu mais de lá. Nós ouvíamos seu choro salpicado de soluços do andar de baixo.

- Eu não sei se eu sou a pessoa mais lúcida para te impedir no momento. Eu provavelmente iria te ajudar dando alguns pontapés também.

- Como isso pôde acontecer logo debaixo dos nossos narizes? Como?

Nós não nos olhávamos. Compartilhávamos sentimentos de culpa e revolta com vozes baixas, sem coragem para enfrentar a situação sem partir para a loucura, para a violência. Sabíamos que precisávamos colocar nossos pensamentos no lugar antes de agirmos.

- Aquilo que ele falou da mãe dele... O que aconteceu? O que você fez?

Seus olhos finalmente se encontraram com os meus. Estavam vermelhos, molhados, desesperados.

- Nada. Eu não fiz nada. Mas pelo visto deveria ter feito.

Eu me sentei bem de frente a ele.

- Explica isso melhor. Eu preciso entender esse ódio entre vocês. Esses boatos, essas acusações. Eu não entendo.

- Eu que não entendo, sabe? Eu e Cath nos mudamos pra cá pra construir um lar, não foi pra destruir nada - minhas sobrancelhas se arquearam

Enzo respirou fundo.

- Nós estávamos felizes por termos conseguido comprar essa casa, mesmo velha. E nós queríamos ser simpáticos com a vizinhança, por isso eu fiz um monte de bolinhos e fomos de porta em porta distribuindo-os, nos apresentando. Eu demorei um bom tempo para fazer todos os bolinhos, eu ainda não tinha a "cozinha industrial", como você fala. Alguns vizinhos acharam estranho, pensaram que íamos pedir favores, mas nada disso. Só queríamos nos dar bem com a vizinhança, afinal, íamos fazer uma obra grande e isso poderia irritar muita gente. Fomos de casa em casa, inclusive na do fim da rua, na casa de Charlie, Daniel e Kate.

- Kate? Quem é Kate? - me intriguei

- A mulher de Charlie, mãe de Daniel.

- O que aconteceu com ela? Não me diga que ela...

- Não, Montreal - ele me interrompeu - Não se apresse. Se é pra contar essa história, é melhor não pular nada.

Concordei com a cabeça.

- Eles pareciam simpáticos, sabe? Até nos ofereceram ajuda com a obra. Bom, eles foram bem legais com a gente até perguntarem onde eu tinha comprado os bolinhos. Eu disse que eu mesmo tinha os feito, que eu era confeiteiro, tinha acabado de concluir um curso, mas ainda tinha muito para aprender. O tempo fechou aí. Descobrimos que Kate também era confeiteira.

- Ok... E qual o problema nisso?

- Para mim não teria problema também, sabe? Assim que ela disse que também era confeiteira, eu me animei, achei que podíamos compartilhar truques, receitas, até mesmo ingredientes. Mas a animação não foi bem recíproca. Eles pensaram que eu era uma concorrência, que eu ia roubar os clientes dela. Eu tive sim algumas encomendas da vizinhança, mas logo percebi que elas nunca mais aconteceram. As pessoas já não me tratavam tão bem. Eu não dei muita importância a isso na época, eu tinha uma obra pra fazer e eu tinha outros clientes na cidade. Afinal, não é como se só existissem encomendas aqui da vizinhança. De repente parecia que nossa presença aqui incomodava a todos. Eu tentava até não fazer muito barulho na renovação, mas era impossível. Foram meses difíceis esses. Cath trabalhava em um banco e eu ficava em casa, trabalhando ora na cozinha improvisada, ora no andar de cima destruindo paredes.

Ele respirou fundo, fechou os olhos, foi como se estivesse lembrando de tudo aquilo.

- Um dia eu resolvi visitar Charlie e Kate, pensando que talvez fosse só impressão da minha mente. Tentei fazer o vizinho simpático, fui perguntar receitas e levei um pouco dos meus confeitos, pare ver se ela queria experimentá-los. Erro meu. Não passei da porta da frente. Charlie e Daniel, o pirralho devia ter uns 12 anos na época, me acusaram de ter acabado com o negócio da família e de querer naquele momento ainda roubar as receitas e técnicas de Kate. Eu mal acreditei. Kate não apareceu na porta. Para falar a verdade, desde aquele dia, devo ter visto Kate apenas umas duas vezes. Ela entrou em uma depressão profunda.

- Ela entrou em depressão profunda por causa dos seus bolinhos?!

- Não foi bem por isso, né. Ela já teve depressão bem antes disso. Disseram que foi a insegurança que a fez perder encomendas, já que ela fazia fornadas e fornadas de bolo, provava, não achava bom o suficiente e jogava tudo fora. E eu ter apresentado meus bolinhos só fez com que ela duvidasse ainda mais de si. Desse jeito, suas encomendas realmente diminuíram e as minhas cresceram. Eu me senti culpado por muito tempo, até perceber que eu não tinha culpa por fazer o que eu amo. Charlie e Daniel nunca me trataram bem por causa disso. Eles sempre quiseram que eu me mudasse. Quando consegui comprar o terreno do lado e fazer a piscina, eles chamaram até a prefeitura para avaliar se era permitido ou não, sendo que eu já tinha todos os documentos. Eles espalharam todo e qualquer boato sobre mim por aí, o mais baixo deles esse de que eu forcei Cath a abortar e por isso ela faleceu.

- Eu não estou conseguindo acreditar nisso, Enzo. Como você conseguiu não se revoltar contra eles também? E Kate? Ela continua viva ou...?

- Ela tentou suicídio. Saiu internada às pressas uma vez por overdose de medicação. Mas sim, felizmente sobreviveu. Ela nunca sai de casa, mas ainda mora lá.

- Uau. Não sei nem o que dizer.

- Eu muito menos.

- Mas isso não é motivo nenhum para tentar tirar toda a sua vida! Não é como se você tivesse alguma responsabilidade por fazer o seu trabalho e tentar viver. Não é como se você tivesse causado tanta miséria na vida deles para que eles quisessem vingança.

- Não causei miséria nenhuma, na verdade, até dei lucro. Não no ramo confeiteiro, ao que Charlie e Daniel tentaram dar continuidade, mas fracassaram. Foi nesses bicos de ajudante de mudanças e reformas. Eles lucraram bastante com o fluxo de gente que passou por essa casa, que quase se mudou para cá antes de saber que a piscina era dividida. Eles não queriam que eu a tivesse vendido definitivamente. Talvez por isso deixaram que você descobrisse da pior forma.

- Eu não acredito, Enzo. Sério, não acredito.

- Eu também não estou acreditando que por causa dessa desavença infantil a Isadora quase perdeu a vida.

Cheguei a me arrepiar com isso. Ficamos quietos por um momento, olhando pra baixo. Estávamos perdidos.

- Desculpa não ter protegido nossa família direito - ele falou, com a mão cobrindo o rosto

Eu tirei uma de suas mãos do rosto e envolvi nossos dedos.

- E a responsabilidade não é minha também? Não tinha como a gente se preparar para isso. Como iríamos saber?

- Eu queria acabar com ele na hora, mas me segurei. E eu pensei em Isa no momento. Como eu poderia demonstrar tanta violência na frente dela justo quando ela sofreu tanta agressão? Talvez ela ficaria com medo de mim, perderia a confiança.

- E você fez a coisa certa. E eu te amo por tudo, mas principalmente por essa compaixão.

Tentei sorrir, mas não estávamos no clima pra sorrisos.



Ouvi, bem baixo, um toque de telefone.

- Não é seu celular tocando? - Enzo falou

- Está lá em cima. Deixa pra lá.

Contudo, assim que meu celular terminou de tocar, o de Enzo começou a tocar em seu bolso. Ele viu o número e me mostrou, eu achei familiar, mas não sabia de quem era. Sua expressão mudou assim que atendeu e ouviu quem era.

- Olga? O que foi? Algo errado? - ele disse ao telefone

Assim que ouvi o nome Olga, me levantei. Fiquei nervosa, sussurrando para Enzo me contar o que era.

- Não, não aconteceu nada. Isadora está ótima. Ah... Foi uma ligação de alguém que não quis se identificar? Não, eu agradeço por você se preocupar, claro, mas está tudo ótimo. Se quiser, pode até vir aqui pessoalmente essa semana. Isadora tem muitas histórias da viagem para contar.

Não esperei Enzo chegar à última frase. Assim que ele mencionou uma ligação que não quis se identificar, corri até nosso quarto, peguei meu roupão e saí em disparada pela rua. Mais especificamente, para a casa no fim da rua.



Bati sem parar na porta branca, bati até meus punhos doerem, bati até alguém abrir a porta de supetão. Charlie arregalou os olhos enquanto eu descarregava nele tudo o que eu pensava. Eu mal me lembro exatamente falei pra ele, só sei que não dei nenhuma brecha para que ele se defendesse. Daniel apareceu atrás do pai e eu, já descontrolada, mal pedi licença para entrar na casa.

- Você tentou matar a minha filha e depois ainda ligou para o orfanato para denunciar o que aconteceu sendo que a culpa é toda sua? Que tipo de mente doentia é a sua? Sou eu quem estou com vontade de te afogar na piscina agora! - eu apontei meus dedos enquanto ele chegava para trás

- O que está acontecendo?

Minha cena foi interrompida por uma voz que eu nunca havia ouvido. A mulher apareceu na porta de um dos cômodos. Seu rosto pálido e seu cabelo desarrumado mostraram que ela estava dormindo e não apenas aquela noite. Estava na cama há mais de meses, sem ver a luz do sol.

- A senhora me desculpe pela invasão, mas eu acho que deveria saber o que o seu filho tentou fazer com a minha filha de apenas quatro anos! - falei, ainda exaltada

- O que você fez, Daniel? - sua voz era fraca, como se quase não fosse usada

Ela entrou na sala com passos vagarosos, de quem não andava muito. Vestia roupas velhas e de inverno, como se lá fora não estivesse fazendo calor de alto verão.

- Nada, mãe! Essa louca vem na minha casa me acusar de coisas das quais que eu não faço a menor ideia!

Eu quis voar em seu pescoço.

- A senhora me desculpe mais uma vez, seu filho pode ser um adulto, mas se comporta como um moleque. É irresponsável, infantil, manipulador e quase se tornou um assassino ontem.

Seus olhos fracos se arregalaram.

- Assassino? Como assim assassino? - Charlie se pronunciou

- Ontem minha filha quase se afogou porque o seu filho disse para ela que ela aprenderia a nadar se entrasse n'água sem as boias! E muito provavelmente deve ter falado para ela tentar aprender quando não estivéssemos olhando, já que a a gente nunca iria deixar. E foi por um triz que ela não se afogou.

- E não é verdade? A gente aprende enfrentando o desconhecido. E ela entrou porque quis. Eu não a obriguei a nada.

Seu tom era quase irônico. Meus dentes se rangeram de raiva.

- Então se você dissesse para um cego que ele venceria seu medo de altura se desse um passo para frente enquanto estivesse à beira de um precipício não seria assassinato? Afinal, você não o empurrou, né?

- Você realmente fez isso, Daniel? - Charlie também já estava ficando cheio da atitude do filho

- Ah, isso sem falar que ele se comunicava com a minha filha de manhã e dizia para ela que era um segredo. Pensávamos que era um amigo imaginário, mas estava mais para inimigo, e real!

- Ela só precisava de companhia - o garoto chegou a rir

- Vai pro seu quarto! Agora! - Charlie mandou, gritando alto

- Ir pro meu quarto? Essa daí se une ao Enzo Scopelli, adota um filho com ele, e ainda acha que vai viver em paz depois do que fizeram com a gente?

- Enzo Scopelli? - a mãe pronunciou

- Sim! Provavelmente essa daí vai se casar com ele naquela casa enorme enquanto nós ficamos aqui, passando dificuldade por causa deles!

- Eu disse pro seu quarto, Daniel!

Charlie não falou de brincadeira. O garoto bateu a porta pelo caminho, contrariado.

- Eu não quero mais brigar com vocês dois, mas vocês têm que entender que o que seu filho fez foi grave demais! Se eu não visse a tempo, Isadora poderia estar morta agora! Além do mais, ou ele desmente a ligação que fez para o orfanato ou eu chamo a polícia e peço uma ordem de restrição. O que o filho de vocês fez foi algo criminoso, doentio, eu nem tenho palavras para descrever a minha raiva!

- Eu não tenho o menor apreço por seu namorado, me desculpa dizer isso, mas atacar a filha de vocês já foi demais - Charlie falou, até um pouco contrariado

- Jura? - eu fui irônica - Ele manipulou, magoou, enganou e quase matou uma menina de quatro anos que já sofreu agressões da mãe que se suicidou, que nunca conheceu o pai e que viveu um bom tempo em um orfanato esperando uma família. "Demais" é pouco para descrever o que ele fez.

Charlie se sentou, colocando as mãos na cabeça.

- Eu achava que ele estava melhorando. Conseguiu entrar em uma faculdade, estava focado em exercícios físicos, até mesmo estava ajudando sua vizinha da frente a aprender a tocar violão!

Eu entendi na hora por que ele tinha se aproximado tanto de Isa. A janela da adolescente que morava na casa à nossa frente dava de cara com a janela do quarto de Isadora. Fora tudo premeditado desde o começo.

A mãe, Kate como Enzo me contara, se sentou no sofá e começou a chorar também. Eu me vi em pé na sala enquanto os dois choravam, decepcionados.

- Olha, eu não queria mesmo ter que vir aqui causar essa confusão, mas foi só porque o filho de vocês ameaçou a minha família. E eu não conheço muito bem a senhora, mas você deve saber como é ser mãe. Eu me tornei uma há pouco tempo e eu não consigo mais me ver sem Isadora. Se algo acontecer com ela por causa do filho de vocês, eu vou lutar com todas as minhas forças para ele pagar bem caro pelo resto da vida.

- Eu entendo, eu entendo - ela falou com a voz fraca

Respirei fundo. O que mais eu podia fazer? Por que eles não estavam com mais raiva? Por que eles não estavam agindo?

- Eu não quero me meter na vida de vocês, afinal eu sei muito pouco, mas vocês precisam agir. Vocês precisam ser firmes com ele. Ele não é mais uma criança, mas age como uma. Não tem o menor senso de consequência e responsabilidade. Ele deve ter crescido em meio a ódio e negatividade, e isso o deixou obcecado por uma vingança. E vocês sabem muito bem que Enzo não causou nada pra vocês, ele apenas foi usado como desculpa. Vocês acabaram criando alguém sem empatia com uma criança de quatro anos! Quatro anos!

- A culpa foi minha. Eu não quis lidar com os problemas na época, apenas arranjei um saco de pancadas para despejar minha decepção - Charlie confessou

- Não. A culpa é minha - a mulher disse, já chorando

Eu me senti como se estivesse numa terapia de casal, mas como se eu fosse a psicóloga.

- Não importa de quem é a culpa agora. Importa é como vocês vão resolver isso. Eu sei que não vai ser fácil, primeiro vocês têm que cuidar de vocês. Vocês têm que ser um casal de novo. E vocês têm que se tratar, buscar terapias. Como vocês vão corrigir alguém se estão quebrados desse jeito também?

- É difícil - Kate veio com pessimismo, olhando para baixo, me dando mais raiva

- Sim. É difícil - eu fui seca - Mas a gente tem que viver um dia após o outro, não dá pra se trancar e esperar a vida passar. Acredite, eu também lidei com depressão minha vida toda. Eu já fiz terapia e de vez em quando ela volta sim, mas eu não deixo ela ficar. Você tem que ser mais forte, Kate.

A mulher me olhou. Eu e minha boca grande. Ninguém ali havia falado nada de depressão. Na verdade, nem ao menos era para eu saber seu nome. Fiquei receosa por talvez pensarem ainda mais mal de Enzo, chamá-lo de fofoqueiro.

- Você precisa sair um pouco de casa, ver que o mundo não é tão ruim. Ver que tem um filho que precisa mais do que nunca de você. Você precisa continuar a fazer bolos se é isso o que você ama! Não importa se há mais um ou dez mil confeiteiros na cidade, faça isso por você.

Os dois me olharam. Não era para eu saber muito, mas eu não estava segurando minha língua.

- Eu mal sei a receita mais... - ela disse, cabisbaixa

- Tenho certeza que é como andar de bicicleta. Tudo o que você precisa é tirá-la da garagem e voltar a pedalar - tentei sorrir

Eles ficaram calados. Eu me vi perdida naquela casa, de roupão e chinelo.

- Vocês me perdoem pelo sermão, mas eu não podia deixar isso pra lá quando é a minha família em risco. Pensem no que eu disse. E se Daniel não ligar para o orfanato e se explicar, ele vai ter que prestar conta com a polícia, porque eu vou pessoalmente abrir uma ocorrência contra ele. Passar bem.

Eu saí da casa do fim da rua andando forte, quase tropeçando no meu chinelo. Quando me aproximei da porta da minha casa, Enzo estava lá com cara de preocupado.

- Mais um minuto e eu ia correndo ver se estava tudo bem, apesar de odiar passar por aquela casa.

- Foi tudo bem. Não precisei bater em ninguém - sorri ironicamente - Se não desmentirem essa história pro orfanato antes de chegar nos ouvidos da assistente social, eu abro uma ocorrência na polícia contra Daniel.

- Tinha certeza que você conseguiria assustá-los bem - ele piscou - Mas agora acho que temos que ter uma conversa com Isadora. Ela já parou de chorar, mas percebi que está soluçando alto para chamar nossa atenção.

Respirei fundo, tentando controlar minha revolta. Tínhamos que ter o máximo de cuidado com essa conversa.


A porta se abriu devagar, rangendo, quando eu virei a maçaneta. Encontramos Isa sentada na cama, com as costas na parede e o rosto entre os joelhos.

- Isa? - ela me olhou quando ouviu seu nome

Seus olhos estavam vermelhos, seu nariz congestionado, mas não havia mais lágrima.

- Trouxemos um achocolatado para você - Enzo disse com um copo em mãos

Ela aceitou o achocolatado sem dizer nada enquanto nós nos sentávamos na sua cama.

- Isa, nós precisamos te pedir desculpas.

A menina me olhou surpresa quando eu disse isso. Talvez esperava que ia levar uma bronca.

- Desculpas por não cuidar melhor de você e também por não tentar conhecer seu amigo melhor.

- E desculpas por termos te assustado e gritado hoje de manhã - Enzo completou

- Mas você precisa saber de algumas coisas e não vai ser muito fácil de ouvir. Ok?

Ela concordou com a cabeça, mas seus olhos se encheram de lágrimas. Olhei pra Enzo. Como iríamos contar tudo para ela?

- Sabe quando a madrastra má da Branca de Neve se transformou em uma velhinha inocente? - Enzo encontrou a metáfora perfeita

- E deu a maçã pra ela? - Isa completou a história

- Sim, exatamente. Você tem uma ótima memória, ein?

Ela agradeceu, mas era claro que queria entender mais a fundo.

- Ela não disse o nome verdadeiro pra Branca de Neve, não é? - eu falei - No fundo tudo o que ela queria era envenenar a Branca de Neve e ser a mais bonita, certo?

- Bom... O nome do Troy não é Troy. Ele mentiu para você. O nome dele é Daniel.

- Daniel? Mas... Por que ele mentiu? - ela estava segurando o choro

Segurei sua pequena não nas minhas, sentindo um aperto no meu peito.

- Ele te disse onde ele morava? O que mais ele disse para você sobre ele, Isa?

- Ele... Ele disse que morava na casa da frente. Disse que ia me ensinar a andar de patins. Ele disse que era meu amigo.

A pequena estava apertando minha mão e deixando algumas lágrimas escaparem.

- Ele não mora na casa da frente, Isa. Ele mora no fim da rua. E você acha que amigos de verdade mentem um para o outro? - ela negou com a cabeça

Nós suspiramos. Deixamos a menina chorar por um tempo.

- Você vai arranjar novos amigos, Isa. Amigos de verdade. E amigos de verdade não mentem e muito menos pedem para você não contar algo para os seus pais - Enzo disse - Isso serve para a vida toda, ok? Se é algo que nem eu nem sua mãe podemos saber, não é bom para você. A não ser que seja uma surpresa de dia das mães ou dia dos pais.

A pequena riu um pouco tímida com a última frase.

- Estamos perdoados? Nós só queremos o seu bem, filha. E você precisa confiar que nós sabemos o que é bom para você.

Ela concordou com a cabeça.

- Eu só não entendi por que Troy mentiu para mim - ela ainda estava magoada

- Você tem tempo para ouvir uma história curtinha? - isso a deixou mais animada, ela amava histórias - Era uma vez um garotinho que tinha dois cachorros. Um cachorro era manso, adorava carinho e gostava de brincar o tempo todo. O outro cachorro era bravo, não gostava de ninguém e sempre tentava morder o cachorro bonzinho.

Enzo contava a história enquanto eu observava a reação de Isa. Ela parecia vidrada com o enredo.

- O garotinho dava comida todos os dias pros cachorros. Mas ele sempre dava um pouco a mais pro mais bravo. Depois de um tempo, começou a dar a comida do cachorro manso para o bravo. Então o cachorro bonzinho foi ficando com fome fraco, desnutrido, sem vontade de brincar. O cachorro mau foi ficando maior, mais forte, mais feroz. Um dia, o garoto percebeu que tinha errado, tentou consertar o que fez. Ele tentou tirar a comida do mais forte e dar pro mais fraquinho, mas assim que ele tentou, nhac!

Isa se assustou.

- O cachorro mau mordeu a mão dele. Ou seja, o cachorro mau que sempre foi melhor cuidado machucou quem sempre cuidou dele. O cachorrinho bom ficou bravo, quis impedir que o bravo mordesse o garoto, mas não teve força nem para latir.

- Mas o menino deveria ter dado mais comida pro cachorrinho bom. Tadinho dele!

- Exatamente. Sabe o que essa história nos ensina? Que todos nós temos dentro do coração um cachorrinho bom e um mau, um cachorrinho do amor e um cachorrinho do ódio. E o que a gente faz pro cachorro bom ficar forte e nos defender e para o cachorro mau ficar fraquinho e não nos morder?

- Alimenta mais o do amor - ela disse inocentemente

- Sim. O Daniel, ou o Troy, passou anos e anos alimentando o cachorro do ódio. Por isso ele mentiu e tentou nos separar. Eu só espero que não seja muito tarde para ele voltar a alimentar o cachorro do amor.

- Eu também não. Eu vou dar muita comida pro meu cachorro bom. O nome dele é Lulu! - ela disse já sorrindo, com convicção

- Lulu? Não acha que o Lolo vai ficar com ciúme? - comentei, mencionando o seu cachorro de pelúcia

- Não, eu vou dar comida pro Lolo também! - ela sorriu, quase me explicando o óbvio

As lágrimas já haviam secado. Ela havia se distraído e nós esperávamos que tivesse entendido as histórias das quais muitas vezes nós mesmos precisamos ser lembrados.
Eu e Enzo ganhamos um abraço e descemos para enfim tomarmos café como uma família feliz, afinal, apesar de tudo, nós éramos uma.

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