3. Eu acho melhor você sair.
Eu ainda não sabia como era, de fato, uma noite dormindo naquela casa enorme e vazia. Eu havia voltado do trabalho já tarde e, de novo, apaguei em segundos. O banho quente que tomei ajudou a me relaxar um pouco das minhas preocupações. Então eu apenas ajustei o despertador para às nove da manhã, esperando que o horário marcado não chegasse tão rápido. Geralmente, acordo mais cedo, porém decidi faltar à faculdade para ir à imobiliária. Era o único horário disponível a mim, pois eu não podia faltar ao trabalho. Na verdade, eu não podia deixar de ganhar gorjetas. Então, entre gorjetas e aulas chatas, é lógico que preferi a primeira opção. Estava ficando cada vez mais aparente que a faculdade não era minha prioridade, mas eu ainda tentava mentir a mim mesma.
Acordei relutante na segunda-feira, desligando o despertador e dormindo mais alguns minutos. Coloquei o uniforme azul-bebê dentro de uma bolsa. Não estava com planos de voltar à casa para trocar de roupas e eu não iria vestida de garçonete à imobiliária cobrar meus direitos, afinal, a gente tenta se iludir, mas somos julgados e julgamos pela aparência o tempo inteiro. Eu não iria arriscar ser julgada por menos do que sou só por usar um uniforme.
Joguei a bolsa no banco de trás de meu carro enquanto dava partida. Um "bom dia" animado surgiu de repente do outro lado da minha janela. Era Daniel, em trajes esportivos, com os fones de ouvido pendurados no pescoço.
Eu abaixei o vidro, vendo seu rosto esperando por um outro "bom dia" amigável. Porém, não foi isso que recebeu.
- Você sabia né? E não me contou nada! - foi a primeira coisa que falei
- Sabia do quê?
- Sobre o terreno do quintal ser dividido. Sobre a piscina não ser completamente minha.
- Eu... Não sei de nada disso.
- Você é um péssimo mentiroso. Você me viu mudar para cá toda contente e nem ao menos me avisou? Eu sabia que você estava escondendo algo e era isso!
- Eu sinceramente não sei sobre o que você está falando - ele se fez de sonso
- E você sinceramente está me atrasando. Eu preciso ir à imobiliária resolver isso.
- Desculpa - ele disse fazendo distância entre seu corpo e meu carro
Eu não disse nenhuma outra palavra, apenas acelerei o carro. Eu sei que às vezes sou muito grossa, mas eu estava irritada e ele sabia sobre isso o tempo todo, mas não me contou. Talvez eu tenha descontado minha frustração no coitado, mas tive uma razão. Ele sempre parecia querer me esconder algo sobre a casa quando eu perguntava e eu agora tinha certeza que era justamente isso.
Dizer que minha entrada na imobiliária foi discreta é mentir descaradamente. Eu entrei com passos largos e fortes, abrindo as duas portas de vidro de uma vez só e fazendo com que elas se chocassem com a parede lateral. Digamos que todos ali viram que eu tinha chegado e era isso que eu queria. Simplesmente ignorei o balcão de recepção e fui direto à mesa da corretora, que, por sorte, estava ali, sentada vendo minha entrada dramática com os dedos nas hastes dos óculos.
Vi os olhos da mulher abrirem ao verem que eu estava indo à sua mesa. Ela deu um pulo, sentada em sua cadeira de rodinhas, quando eu bati meus pulsos contra sua mesa de madeira, fazendo com que o porta-lápis se movesse para o lado.
- Eu acho que você sabe porque eu estou aqui - eu disse, olhando-a nos olhos
A coitada não sabia o que dizer. Gaguejou um pouco e pediu, educadamente, para que eu me sentasse. Eu, sem abrir sorrisos ou esperar uma outra reação de sua parte, comecei a perguntar, em tom alto, por que é que ela não me dissera em nenhum momento que metade do quintal não era minha.
- Mas, eu disse quando eu te mostrei a...
- Não disse - eu a interrompi
- Você deve não ter entendido e...
- Eu estou dizendo que você não me disse. Você acha que eu concordaria em comprar uma casa sabendo disso?
- É que está no contrato...
- A única coisa que está escrita nesse contrato é a medida do quintal, por acaso vocês esperavam que eu levasse uma fita métrica e conferisse cada medida no contrato? Vocês agiram de má fé comigo.
Ela tentou falar mais algumas coisas, mas não tinha mais o que contestar.
- Bom... Você quer cancelar o contrato? - foi a solução dela
- Vocês me fazem correr atrás de documentação, gastar meu tempo, cancelar o contrato antigo, fazer uma mudança exaustiva e esta é a solução? Cancelar o contrato?
- Você receberia o dinheiro de volta...
- E onde eu iria morar agora? No apartamento do qual quebrei o contrato para me mudar? E o dinheiro que eu gastei no processo todo? Onde fica?
Mais uma vez houve silêncio. Eu sentia que todo mundo naquela imobiliária estava ouvindo a nossa conversa.
- Eu vou ter que entrar na justiça para ter meus direitos?
- Não, nós podemos resolver isso de outro jeito - ela falou, um pouco receosa
- Tudo bem, qual jeito? - eu falei calmamente, cruzando meus braços e esperando uma resposta
- Que tal isso, nós vamos ver o que podemos fazer e te ligamos?
- Ah! - eu soltei, ironicamente - É melhor eu esperar essa ligação deitada porque isso provavelmente nunca vai acontecer.
Ela não sabia mais o que me dizer.
- Olha, tudo bem, vocês arranjam uma solução. Mas sejam rápidos. Se não forem, eu entro na justiça.
Eu disse aquilo já me levantando da cadeira.
- Mas saibam que nunca, mas nunca, eu voltarei a fazer negócios com essa imobiliária. E nunca vou dar boas recomendações daqui. Passar bem.
Eu ajeitei a minha bolsa no ombro e saí sem olhar para trás, com um impacto menor do que minha entrada, mas saí de rosto erguido. Ó Deus, eu às vezes tinha vergonha de ser tão dramática, mas parece que só assim as pessoas te respeitam, ou, pelo menos, agem.
No fundo, eu ia esperar a ligação da imobiliária me propondo uma solução. Aquela história toda de entrar na justiça foi só uma ameaça para que eles ajam depressa. Eu não tinha condições financeiras de contratar um advogado para abrir um processo judicial. E eu sei que não ia ser um processo fácil, já que eu assinei a droga do contrato. Então eu apenas esperava que, com medo de receberem um processo, a imobiliária solucionasse essa questão rapidamente.
◆
Olhei para o meu relógio e vi que estava quase na hora de começar o meu turno no serviço. Eu deveria ter acordado mais cedo, talvez até desse para assistir um pouco da aula, mas a preguiça e a falta de ânimo me venceram, como geralmente acontecia. Ainda mais quando trabalhei o domingo inteiro até tarde, tive varias preocupações e quando a aula não me interessa. O difícil é encontrar uma que me interesse.
Como eu tinha pouco tempo para entrar no serviço, parei em uma lanchonete para tentar almoçar. Agora você se pergunta: "mas você trabalha em um restaurante, por que não almoça lá?". A verdade é que só de pensar no cheiro das batatas fritas e hambúrgueres de lá, eu já me enjoava. E olha que eu amo batata frita e hambúrguer, o fato é que eu estava a tanto tempo trabalhando e convivendo com ambos que eu simplesmente me enjoei. Parei e entrei em uma lanchonete no meio do caminho, uma na qual eu nunca havia reparado e, consequentemente, nunca entrado. Não era de todo má, tentava fazer o gênero "padaria francesa" e meu lanche estava bom. Porém, o que realmente me impressionou foi a vista. Como eu nunca havia reparado o belo cartão postal que daria essa vista? Talvez eu nunca tinha parado para olhar. As flores da primavera faziam o contraste com o rio e a ponte de ferro antiga. O céu estava aberto e bonito, apesar de não estar fazendo tanto calor. Quase me atrasei para o trabalho de tanto que admirei aquela paisagem, então prometi a mim mesma que iria voltar ali sempre que pudesse.
◆
Depois de um dia exaustivo no trabalho que simplesmente não necessita ser posto em palavras, eu finalmente cheguei à minha nova casa. Eu ainda podia chamá-la de minha casa ou havia outras partes dela que não pertenciam a mim? Eu não sabia. Eu não queria mais saber ou pensar nisso, pelo menos por enquanto. Então eu resolvi estrear a banheira. Deixei a água quente correr e depois completei com um pouco de sabão líquido, só para formar um pouco de espuma, já que eu não tinha sais de banhos. Para falar bem a verdade, acho que nem sei onde comprá-los, já que nunca reparei nisso durante minhas idas ao supermercado.
Entrei devagar naquela banheira, tentando relaxar e sentindo a água quente amolecer minha pele. De repente, comecei a sentir o que eu achava que ia sentir logo no primeiro dia: solidão. Acreditem, solidão não é um assunto novo para mim, mas aquela solidão era sim nova. Um outro tipo de solidão talvez. Aquele banheiro começou a ficar grande demais para mim. Aquela casa começou a ficar gigantesca e vazia. O silêncio só aumentava seu volume, por mais absurdo que isto soe.
Porém, não demorou muito para o silêncio ser interrompido por uma campainha. Eu pulei de susto dentro da banheira e depois me perguntei quem seria e se deveria ser importante ou não. Ou, melhor: se valeria eu sair da banheira às pressas, colocar o roupão e descer para atender.
O terceiro toque na campainha me convenceu a sair da água quente. "Eu realmente espero que seja algo importante", eu disse para mim mesma enquanto descia a escada, arrumando a toalha enrolada em meus cabelos. Eu queria deixar claro que, quem quer que fosse, havia me tirado do banho.
- O que foi agora? Por acaso a banheira é metade sua também? - foi o que eu disse quando abri a porta e vi quem era
- Está de mau humor? Eu posso voltar outra hora... - ele falou, fazendo menção de se virar e sair
- É lógico que não. Você não vai me tirar assim do meu banho para me perturbar outra hora. É melhor falar o que tem pra falar agora mesmo.
- Ih, você é sempre assim ou é apenas uma fase rabugenta?
Eu cruzei os braços, ignorando aquilo.
- Bom, é que me ligaram da imobiliária com a qual você negociou e - ele fez uma pausa - Você nem vai me convidar para entrar?
Eu virei meus olhos. Que audácia tinha aquele homem. O quanto isso me irritava! Abri a porta, ironicamente gesticulando para que ele entrasse.
- Vejo que nada mudou - ele falou observando as paredes
- Você pode por favor continuar o que estava falando?
- Ah, sim - ele se sentou no sofá sem pedir minha permissão - Ligaram para mim da imobiliária explicando que você foi lá pedir uma providência senão vai processá-los. Essa é a sua real intenção?
- Por que eles ligaram para você?
- Porque além de ser seu vizinho, eu sou o antigo proprietário dessa casa, oras!
Eu me surpreendi e minha expressão facial não negou.
- Acho que nunca fomos devidamente apresentados. Eu sou Enzo, seu vizinho, ou "o cara da piscina" como ouvi você e sua amiga me chamando. E também o ex-proprietário deste imóvel.
Ele estendeu sua mão a mim e aquilo me deixou um pouco constrangida. Demorei um pouco, mas alcancei sua mão e o cumprimentei.
- Montreal. A nova proprietária desse imóvel - eu falei - Me desculpe por você ter ouvido os comentários de Karina no restaurante, ela não tem muita noção das coisas.
- É, eu percebi isso quando eu pedi a conta e recebi um papel com um número de telefone escrito a caneta - ele disse e eu quis me esconder de vergonha alheia - Então, quanto você quer de indenização?
- Desculpe, o quê?
- Quanto você quer de indenização por ter sido vítima desse mal entendido - ele falou, tirando uma caneta e um bloco de cheques do bolso - É só me dizer o valor, o dinheiro veio para mim, eu quero te ressarcir.
- Eu não quero dinheiro nenhum de você - eu o cortei - Pode guardar esse cheque. O que eu quero é que a imobiliária resolva, não quero ser comprada por você.
- 10 mil? 15 mil?
- Olha, eu acho melhor você sair.
- Então você vai processá-los? Vai gastar quase metade do que eu estou te oferecendo com advogados sem saber se vai ganhar o processo? Pense bem, afinal você assinou...
- Você quer fazer o favor de guardar essa caneta? Eu já falei que não quero dinheiro seu.
- 20 mil? É só me dizer o quanto você acha que essa casa vale sem a metade da piscina.
- Eu estou falando sério. É melhor você sair. Você já interrompeu meu banho e está prestes a estragar a minha noite.
- Tudo bem, eu vou sair - falou levantando do sofá e guardando a caneta no bolso - Mas saiba que esse cheque está reservado para você, é só me falar.
- Eu não quero seu dinheiro, eu quero justiça. Eles me enganaram e não vão poder sair ilesos - eu parecia um herói de história em quadrinhos ao dizer frases assim
- Tudo bem - ele falou - Foi bom te conhecer, Montreal. Falando nisso, acho que você é a primeira Montreal que eu conheço. É comum?
- Por favor, eu quero voltar pro banho - eu falei sem responder
- Tudo bem, até mais, vizinha.
Ele se direcionou à porta. Porta que eu bati assim que ele saiu. Arrogante demais esse sujeitinho. E ainda queria me comprar.
Subi as escadas e a minha vontade de entrar de novo na banheira era agora inexistente. Sequei o cabelo pensando naquilo tudo. Então ele era o antigo proprietário? Ele era quem morava aqui? Por que então insistiu em ficar com a metade da piscina?
Mas Daniel me disse que um casal morava aqui. E que a casa ficou grande demais. Talvez tenham se separado, o que eu acho provável porque qual mulher conseguiria suportá-lo vinte quatro horas por dia debaixo do mesmo teto? Eu simplesmente não conseguiria. Essa casa talvez não tenha ficado grande demais para os dois. Talvez tenha ficado pequena para os três: ela, ele e seu ego enorme. Então, assim, ela foi forçada a sair – o que realmente não me surpreenderia nem um pouco.
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