27. Pura sorte, é?
- Quer mais uma xícara de café? - a garçonete usando um uniforme rosa bebê me perguntou, com simpatia
- Aceito.
- Querem pedir mais alguma panqueca? - ela olhou sorrindo para Isa ao meu lado
- Não, tudo certo. Estamos satisfeitas.
Ela depois fez as mesmas perguntas rapidamente a Enzo, que também aceitou mais café.
- Alguém gostou de você... - eu disse, baixo, quando ela se retirou para servir outra mesa
- Quem? Eu? - ele se fez de desentendido
- Esqueceu que eu sou garçonete?
- Ok, o que foi que ela fez pra que você percebesse isso? Porque pra mim foi a coisa mais normal do mundo.
- Ela foi extremamente simpática comigo, me atendeu primeiro, mal olhou nos seus olhos e saiu correndo.
- Você notou tudo isso nesses 10 segundos?
- Eu estou acostumada com isso. Principalmente porque eu sempre dizia para Karina ser bastante simpática com a mulher quando ela achar o homem do casal bonito, já que ela é bem sem noção e daria na cara.
- Karina... - ele riu - Aquele telefone junto com a conta foi hilário.
- Falando nisso, não tem nenhum amigo para que você apresente para ela não? Eu não aguento mais ver ela escolhendo gente errada e chorando as mágoas para cima de mim.
- Depende, não sei se tenho amigos que não sejam tão cafajestes quanto os que ela deve arrumar.
- Enzo! - eu arregalei meus olhos
- Qual é, você viu no casamento do Fred. Eu tive que te tirar de perto deles pra que nenhum pedisse seu número.
- Que exagero, não foi assim. Mas, sinceramente, eu acho que Karina ia ficar caidinha por eles.
Ele riu, olhou para Isa colorindo seu novo livro tranquilamente. Tudo parecia estar perfeitamente bem naquele instante. Tão bem que me perdi guardando-o em minha mente.
- Mãe? Mãe? - eu havia me distraído por dois segundos a observando e ela quase me mata do coração me chamando de mãe
Demorei uns três segundos para responder, o que a fez me chamar de "mãe" de novo para ver se eu estava ouvindo.
- Oi, filha. O que foi? - eu tentei agir naturalmente para que ela não se assustasse, para que ela não achasse que era algo ruim me chamar de mãe
- Eu pinto o peixe de amarelo e azul ou azul e amarelo? - ela apontou pro livro
Eu tentei me concentrar no livro, mas meu coração estava em festa. Era uma página da Pequena Sereia e demorei um pouco para entender sua pergunta.
- Ah, o Linguado? - perguntei
Ela confirmou com a cabeça.
- Que eu me lembre ele é amarelo com listras azuis. E por que você não pinta a cauda da Ariel com o seu lápis novo metalizado? Vai ficar lindo.
Ela sorriu, mas era eu quem estava sorrindo mais.
Olhei para Enzo, que estava com um sorriso bobo na boca.
- Sua câmera está com você? - ele perguntou
Eu confirmei a tirei da bolsa, entregando-o. Ele rodou o filme e pediu para que nós falássemos "xis". E eu tinha certeza que meus olhos estariam molhados na foto.
- Assim a gente eterniza esse momento e ainda tem um exemplo de um legítimo restaurante dos anos 50. Detalhe: sem nenhum patins.
Eu ri, tentando secar meus olhos.
Não demoramos muito para sair do Novo México e adentrarmos a pontinha de cima do Texas. Ao ver o caderno de anotações de pontos turísticos que Enzo deixara no porta-luvas, fiquei animada para nossa próxima parada. Não demorou muito para chegarmos na cidade de Amarillo e meus olhos procuravam incessantemente a estranha instalação de arte.
- O que é aquilo? - Isadora foi a primeira a ver
- É basicamente uma das coisas mais legais que a gente vai ver nessa viagem - eu disse, contente
- Eu não achei que você se interessaria por dez carros enfiados no chão cheios de tinta spray - Enzo falou ao estacionar o carro na beira da estrada
- Tá brincando? É sensacional. Isa, lembra de pegar suas canetinhas, ok?
Ela confirmou com a cabeça enquanto eu saía do carro para abrir a porta traseira e tirá-la da cadeirinha.
Nossa sessão de fotos na frente dos carros - e no meio e do lado deles também - só não durou mais por causa do calor insuportável. Tirei uma Polaroid de Isa, uma somente dos carros e gastamos pelo menos dez poses do meu filme, isso sem contar com as fotos de celular. Não queríamos sair dali, minha vontade era ler todos os escritos nos carros, mas tínhamos que chegar ainda hoje na casa dos meus pais ou minha mãe ia ter um treco. Ajudei Isa a escrever seu nome com a canetinha em um dos carros e eu e Enzo escrevemos nossos nomes embaixo. Antes de voltarmos para o carro, tirei uma foto para guardar, já que é sabia que não ia demorar muito para nossos nomes serem cobertos de outras tintas.
O caminho do Texas para Oklahoma foi cheio de "olha aqui", "olha aquilo lá", "o que é aquilo?". Passamos por muitos museus e lojas da Rota 66, postos de gasolina antigos, muitos lugares abandonados talvez por pura estética, até mesmo por um hotel "no qual Elvis se hospedou". Só fomos realmente parar novamente em Oklahoma City, já que eu precisava ir ao banheiro de qualquer maneira e eu não iria parar em qualquer lugar abandonado. Não ficamos muito tempo na cidade, apenas comemos algo rápido – nada de restaurantes com gorjeta – e gastamos mais poses do meu filme com atrações nada convencionais: uma escova de dente gigante na frente de um consultório odontológico, uma escultura enorme de garrafa de leite no topo de um prédio e a estátua em homenagem a três Misses America na universidade de Oklahoma City. Esta última foi a mais divertida, afinal não perdemos a oportunidade de posar fazendo caras e bocas e tchauzinho mais brega do mundo. Isa parecia estar se divertindo, então eu estava mais relaxada.
Convenci Enzo a me deixar dirigir. Eu sabia que, mesmo que ele dissesse que estava bem, seus olhos estavam cansados de prestar atenção na estrada. Ainda faltavam cinco horas para chegar na casa dos meus pais e tínhamos um estoque de guloseimas para comer no carro.
Eu tinha passado da fronteira com o Arkansas quando Enzo, um pouco entediado por estar sendo co-piloto, resolveu ligar o rádio. Havíamos deixado ele desligado pelo dia inteiro já que enjoamos de vez do CD de canções infantis. Sinceramente, até Isadora tinha se cansado das músicas. Enzo começou a procurar uma rádio, passando de estação a cada dois segundos, e simplesmente não parava em nenhuma.
- Quer dizer que o senhor reclama da minha mania de ficar trocando o canal da TV o tempo todo, mas faz o mesmo com o rádio? - eu brinquei
- É completamente diferente, ok? - ele rebateu
- Não, é exatamente a mesma coisa.
Ele revirou os olhos.
- Ok, então. Vou deixar na primeira rádio que achar - ele disse, apertando o botão pela última vez
Ouvimos uma propaganda de supermercado e eu estava segurando o riso. Ele tinha ficado contrariado.
"Estamos de volta com nossa sessão flashback tocando o melhor dos anos 80 e 90!", o locutor da rádio disse.
- Não é que eu achei exatamente a rádio que eu queria? - ele disse, se gabando
- Foi pura sorte, só pra constar.
- Se não quiser essa rádio, eu mudo. Não me importo - ele falou com sinceridade, já tinha perdido a paciência de ficar procurando uma rádio
- Pode deixar aí, eu gosto de flashbacks.
- Dá pra notar na sua Polaroid no banco de trás - ele brincou
Eu encostei meu cotovelo na janela do carro, vendo o pôr-do-sol aparecendo. Meus ouvidos reconheceram a introdução da música que estava começando a tocar e meu instinto foi pedir para Enzo aumentar o volume.
- Não me diga que você gosta de Oasis - ele disse, com humor, ao reconhecer a música
- E tem como não gostar de uma banda dos anos 90 com ótimas letras e melodias com irmãos problemáticos que até hoje não se dão bem?
- Essa foi uma ótima descrição. Me lembra minha adolescência, quando eu esperava as musicas tocarem no rádio pra gravar na fita cassete.
- Hum... - eu expressei - Não consigo te ver com treze anos ouvindo música de rock alternativo.
Ele riu.
- Minha irmã só ouvia boybands e as musicas pop mais irritantes dos anos 90, eu basicamente fui obrigado a gostar de qualquer coisa que tivesse letras mais profundas.
Eu concordei.
- Essas coisas me fazem sentir tão velha, mas ao mesmo tempo eu adoraria que esses tempos voltassem.
- Desde que a vida seja exatamente como está agora, não me importaria em voltar no tempo.
Enzo sorriu, olhou para Isa que estava sonolenta no banco de trás. Eu ultrapassei um carro. Não demorou muito para que a felicidade do momento se expressasse da maneira mais barulhenta possível: eu e Enzo cantando "Don't Look Back in Anger" com todo o ar dos nossos pulmões enquanto Isa nos olhava animada no banco de trás, quem sabe tentando entender. Foi uma performance tamanha, com direito a bateria imaginária e mão para fora da janela.
Quando a música acabou, nós só conseguíamos rir.
- Somos ou não somos os pais mais legais do mundo, ein Isa? - Enzo disse olhando para ela
A menina concordou enquanto eu só não queria que o momento acabasse.
◆
As cinco horas passaram rápido e nós provavelmente cantamos a maior parte das músicas que surgiam na rádio. The Cure, Tears for Fears, Michael Jackson, até mesmo Lionel Richie, embalaram nossa viagem rumo à capital do Arkansas. Foi divertido e um tanto quanto nostálgico. Concordamos que poucas músicas atualmente eram tão boas quanto aquelas... Ou quem sabe isso é só alguma ligação sentimental por termos crescido as ouvindo e toda geração sente o mesmo. Bem, essa foi nossa discussão filosófica depois que paramos de cantar e Isa pegou no sono outra vez. Quando eu estava perto de chegar, minha mãe me ligou. Pedi para que Enzo colocasse o celular no viva-voz para que eu pudesse atender. Ela estava preocupada, como de costume.
"Mais uma meia hora, mãe. Não, tá tudo certo. Não estamos morrendo de fome não. Não, eu estou dirigindo, mas Enzo está segurando o celular pra mim. Ok. Ok. Até."
- Tenho certeza que ela vai fazer você comer tudo o que ela fez lá e ainda repetir, me desculpa por isso - foi o que eu disse quando a ligação acabou
- E isso é pra ser algo ruim? - Enzo riu, eu tive que concordar
◆
- Aqui estamos, lar doce lar.
Enzo olhou pela janela.
- Você nunca me disse que estava acostumada a morar em casas grandes - ele falou
- Não sozinha - eu sorri
Isa estava dormindo no banco de trás. Eu desliguei o motor do carro e instantaneamente ouvi a porta de frente da casa se abrir. Abri as portas e encontrei minha mãe já perto do carro, de braços abertos para uma abraço. Ela me agarrou pelo pescoço assim que saí do automóvel.
- Que saudades eu estava da minha filhotinha! - era como se eu tivesse cinco anos novamente
Meu pai continuava parado, observando, na porta de casa, sem se aproximar muito. Enzo abriu a porta e minha mãe o olhou de cima a baixo, me deixando envergonhada.
- Então é por isso que você demorou tanto para arranjar alguém? Só cedeu quando achou o cara perfeito, ein? Que dedo, minha filha! Que dedo você tem!
Eu devia estar vermelha. Ela foi até Enzo e o cumprimentou, dando-o um abraço forte. Meu pai chegou mais perto, deu um beijo no meu rosto, disse que estava com saudades. Apertou as mãos de Enzo sem muita festa, mas foi educado.
- Onde está minha netinha? - minha mãe disse, tentando olhar pela janela traseira
Abri as portas e tirei o cinto da cadeirinha. Tentei tirá-la sem acordar a pequena, mas ela resmungou, sonolenta.
- Já estamos chegando?
Eu ri, enquanto a colocava em meus braços.
- Já chegamos, mas pode continuar dormindo.
Minha mãe a olhou em meus braços e passou seus dedos carinhosamente pela bochecha de Isa.
- Mas é uma boneca! Tem o seu nariz!
Eu me intriguei. Talvez nunca tinha parado para perceber que compartilhávamos, por pura coincidência, algumas feições. Eu sorri.
Minha mãe me guiou escada acima, achando que eu não sabia mais o caminho. Meu quarto ainda estava o mesmo, um pouco mais vazio e organizado, mas as paredes continuavam roxas - porque minha mãe não me deixara pintar as paredes amarelas de preto na adolescência - e minha cama ainda era a mesma.
- Eu deixei a cama arrumada pra ela - minha mãe falou
- Não é melhor trocar de roupa e escovar os dentes?
- Uma vez na vida não tem problema! Amanhã ela toma um banho e escova os dentes duas vezes!
Eu tive que rir.
- Não era o que você falava comigo.
- Mãe é uma coisa. Vó é outra completamente diferente - ela brincou
- Ah, eu não quero nem ver o quanto você vai mimá-la...
Coloquei Isa na cama, cobrindo-a. Nós a observamos em silêncio por algum tempo enquanto ela dormia. Minha mãe colocou os braços em meus ombros e falou, emocionada: "Estou orgulhosa de você". Quando saímos do quarto, fazendo o máximo de silêncio, minha mãe me puxou para um abraço.
- Eu não achava que ia passar tão rápido! Parece que foi ontem que eu te coloquei pra dormir nessa mesma cama, nesse mesmo quarto!
- Tudo aconteceu rápido demais, né? Desculpa não ter te contado antes, mãe. Eu só não queria que você se preocupasse.
- Eu sempre vou me preocupar. Eu sou sua mãe! - ela riu - Mas isso você logo aprende também, coisa de mãe.
Eu sorri, sem muitas palavras, só agradecimento.
- Vamos lá embaixo pra salvar o Enzo do seu pai, vamos!
Enquanto ela me puxava escada abaixo, eu não evitei uma gargalhada. Só que, ao contrário do silêncio que eu estava esperando encontrar, Enzo e meu pai estavam na sala, com a TV ligada, falando sobre... Churrasco.
- A melhor maneira de se fazer um bom churrasco é escolher a melhor carne e somente colocar sal! Carne tem que ter gosto de carne! - meu pai disse, gesticulando
- Concordo. Quem sabe uma pimenta do reino também, mas só - Enzo disse, sem perceber que estávamos no começo da escada, observando-os
- Quer dizer que amanhã os dois vão preparar um bom churrasco para gente? Nada de cozinha pra mim amanhã? - minha mãe falou, quebrando a conversa
Os dois viraram e nos olharam. Eu estava feliz, Enzo pôde ver em meus olhos quando eu sentei ao seu lado e encostei minha cabeça em seu ombro.
- Eles não formam um lindo casal? - minha mãe perguntou, mas meu pai só mexeu a cabeça, não concordando nem discordando
- Você deve estar cansado. Tem uma cama no quarto de hóspedes, você pode dormir lá e eu durmo aqui na sala - eu disse
- Dormir na sala? - minha mãe expressou - Sei que somos velhos, mas em que século você está? Você realmente acha que eu ia fazer vocês dois dormirem separados quando tem uma cama de casal lá em cima prontinha com lençóis novos?
Eu apenas olhei pro meu pai. Ele ia aprovar isso? Um silêncio permaneceu no cômodo por alguns segundos.
- Além do mais, o sofá não é muito confortável, não é querido? - minha mãe disse, mas eu ainda estava buscando uma confirmação do meu pai
- Sim, o estofado já está velho.
Foi tudo o que ele disse, mas eu finalmente fiquei tranquila. Era bobagem, mas era a casa deles, e, apesar de não estarmos planejando fazer nada na cama, queria saber se todos estavam de acordo.
- Não tem problema dormir no sofá, eu estou tão cansado que dormiria em qualquer lugar.
- Não, não, não. Não vou deixar ninguém dormir no sofá. Ponto final. Vocês vão tomar um banho, descer para tomar um chá com bolo e depois dormir lá em cima.
- Vocês ouviram, ela que manda aqui - meu pai comentou, com humor
Eu sabia que Enzo deveria ter ganhado alguns pontos com ele por ter falado que podia sim dormir no sofá, mas ele não ia lá admitir tão fácil assim.
Nós tomamos banho e depois tomamos chá e comemos bolo por pura insistência da minha mãe. Nossos olhos já não estavam aguentando mais ficarem abertos quando nós nos deitamos nos lençóis recém-trocados.
- E aí? O que achou? Já quer sair correndo ou continuamos com a história do noivado? - perguntei já de olhos fechados
Senti o corpo de Enzo rindo perto do meu.
- Você acha que isso vai me assustar? Sua mãe mandona e seu pai desconfiado e ciumento? Espere você até conhecer minha família. Eles vão fazer você comer macarronada até você explodir e não vão te deixar falar por um segundo.
- Lembre-me de viajar de estômago vazio pra Itália - brinquei
- Hoje eu percebi que eu quero que essa seja a nossa primeira viagem de muitas. Vamos viajar o mundo todo, vamos mostrar pra Isa que tem muita coisa que vale a pena ser vivida nesse planeta. O que você acha?
- Eu não tenho nada contra viajar o mundo inteiro - eu sorri pro nada, no escuro
Eu devo ter dormido profundamente pois acordei e o quarto de hóspedes estava claro demais pro meu gosto e eu mal tinha notado. Enzo não estava mais na cama e eu me intriguei, tentando achar algum relógio que me pudesse dizer que horas eram.
Levantei, passando pelo corredor e vendo que o meu antigo quarto onde Isa dormira também estava vazio. Ouvi vozes do andar debaixo e desci as escadas com os olhos ainda pesados pela noite de sono.
- Olha quem decidiu acordar! - meu pai disse, parando a conversa, assim que me viu no pé da escada
Ele, minha mãe, Isa e Enzo estavam sentados à mesa, tomando café da manhã. Eu não sabia se estava ainda em um sonho maluco ou não.
- Ela sempre teve um humor horrível de manhã! - minha mãe comentou
- Nem me fale, eu a conheci em uma dessas manhãs - Enzo brincou
Meus olhos se apertaram, tentando entender aquela cena.
- Por que vocês não me acordaram? - eu falei, meio rabugenta, indo à mesa
- Se seu humor está assim sem termos acordado você, imagina só se tivéssemos te acordado! - minha mãe brincou novamente
Eu beijei o topo da cabeça de Isa, que ouvia a conversa sentada na cadeira improvisada com almofadas, dando-lhe bom dia.
- E só pra constar, meu humor estava péssimo no dia que nos conhecemos porque você era um estranho usando minha piscina - eu retruquei a Enzo
- Bom dia para você também, querida.
Meus pais riram enquanto eu me sentava à mesa e colocava café em uma xícara.
- Conte-nos mais sobre isso. Montreal nunca nos fala dessas coisas! Achei um milagre ela ter me falado de você sem ser pessoalmente - minha mãe até repousou seu queixo nos braços, pronta para uma história que eu sabia que Enzo adoraria contar
- Bom, eu estava na minha metade da piscina, mergulhando porque estava um calor intenso e, de repente, alguém grita da janela toda irritada e eu respondo com educação. Depois ela vem correndo querendo me tirar da piscina, com o cabelo todo bagunçado e uma máscara de gatinho na testa.
- Esqueceu de mencionar que eu não fora avisada que só possuía metade da piscina da casa que tinha acabado de comprar - rebati
Ele riu.
- Isso foi só um detalhe. Mas alguém aqui me contou que vocês dois se conheceram por pura sorte - Enzo reforçou essas palavras - em Montreal e por isso deram esse nome a ela.
- Pura sorte, é? - meu pai ironizou, eu apenas rolei meus olhos e ajudei Isa a comer seu pedaço de bolo
- Foi obra do destino, isso sim - minha mãe afirmou - Eu nem ia para Montreal, acabei viajando porque tinha uma prima que havia se mudado para lá e pagou minha passagem. Viajar de avião naquela época não era nada barato não. E James estava morando lá por meio de um intercâmbio de alguns meses entre sua universidade e a universidade de Montreal.
- E um belo dia eu acordo atrasado para uma prova e vejo que não ia dar tempo de esperar o metrô. Decido pegar um táxi. Quando um finalmente para e eu entro no banco traseiro, vejo que alguém também tinha entrado pela outra porta na mesma hora, achando que o táxi tinha parado para ela.
- Foram alguns minutos de desconforto. Ficamos falando "não, você fica com esse táxi, eu pego o outro", "não, é melhor você ir nesse, eu não tinha visto que outra pessoa tinha o chamado também". E o taxista já de saco cheio pergunta para onde vamos e, como eram destinos próximos, dividimos o táxi. E depois dividimos o número do telefone e acabamos aqui, dividindo a cama pelo resto da vida.
Isadora estava sorrindo com a história, eu também deveria estar com uma expressão feliz, mas ela logo acabou quando começaram a encarnar de novo em mim.
- Tá bom, tá bom, eu admito. Não foi sorte, não acontece todo dia. Felizes agora?
Eles apenas riram e mudaram o assunto. Eu virei meus olhos em resposta.
Saímos para visitar um pouco Little Rock e eu vi que muita coisa havia mudado. Minha livraria favorita tinha virado uma lanchonete e minha lanchonete favorita tinha virado um café árabe. Contudo, ainda havia o clima de cidade pequena, apesar de ser a capital do estado. Visitamos o museu histórico e passeamos perto do rio, indo até uma das grandes pontes, onde tirei uma foto instantânea de Isadora. Minha mãe mimou a menina o tempo todo e eu agradeci por ela ter muita vergonha, afinal, daria para se aproveitar muito das boas vontades da minha mãe. Isa mesmo assim ganhou brinquedos, roupas novas e até um óculos – sem nenhum grau – simplesmente porque tinha achado a cor bonita.
- Pelo visto perdi o meu reinado, ein? - eu brinquei, mas o comentário só fez minha mãe comprar uma blusa para mim sem nem ao menos perguntar se eu queria
Eu tive até que brigar com ela para conseguir pagar a conta no mercado. Meu pai apenas balançava a cabeça.
- Você sabe como é sua mãe... - ele me dizia
Eu sabia muito bem.
Compramos quilos de carne e resolvemos fazer um churrasco para o almoço. Não havia piscina, mas Isa se divertiu com a mangueira esquecida no quintal, fazendo arco-íris com os jatos de água no sol. Enzo e meu pai estavam tomando conta do churrasco e eu e minha mãe paramos um pouco e sentamos nas cadeiras velhas do fundo de casa, observando Isa e esperando a carne.
- Então, quando vai ser o grande dia? - minha mãe perguntou
Demorei para perceber ao que ela estava se referindo.
- Esse anel gigante aí no seu dedo, Montreal - ela riu - Já marcaram o dia?
- Oh, na verdade não. Você sabe, pulamos alguns estágios - eu ri, me referindo a Isa, que sorria se molhando - Tudo aconteceu rápido demais.
- Porque você sabe que pode contar comigo pra te ajudar, certo? Às vezes eu acho que você tem medo de me pedir as coisas.
- Eu vou te pedir tudo, mãe. Eu não sei nem por onde começar.
- Pelo vestido! - ela falou, como se fosse óbvio - E depois você pensa em convidados, flores, votos, buquê, cabelo, sapato, maquiagem...
- Ok, ok, não me deixa desesperada tão cedo - eu a interrompi - Eu ligo para você e pergunto tudo!
Ela sorriu, como se isso bastasse para sua felicidade: eu precisando dela.
- Eu estou tão feliz por você ter encontrado o cara certo - ela disse olhando para Enzo, que estava falando alguma coisa com o meu pai sobre o carvão
- Às vezes eu acho que ele é muito pra mim, sabe? Às vezes eu acho que ele merecia alguém melhor, mais divertido, mais positivo...
- Filha - minha mãe balançou a cabeça - Nós conversamos um pouco com ele no café da manhã, antes de você acordar. Esse homem resolveu casar de novo depois de tudo o que aconteceu...
- O que isso quer dizer?
- Você não entende ainda, mas casamento não é algo simples. É um dos maiores comprometimentos da vida. E ele se comprometeu a isso uma vez, passou por todas as dificuldades de um casamento... Acredite, não é nada fácil. E depois de ter perdido a mulher e um filho, ele conseguiu se abrir para o amor de novo e quer se comprometer a tudo isso novamente... Isso é algo muito grande. Quer dizer, ele se comprometeu a criar uma criança junto com você, se comprometeu a te apoiar e a te amar... Isso é sério demais, poucos homens fariam isso... Ainda mais por uma segunda vez depois de um baita trauma.
Eu franzi a testa. Por que eu nunca tinha parado para pensar nisso? Por que eu sempre achava que Enzo estava fazendo um favor a mim quando ele no fundo estava só se comprometendo sem cobrar nada de mim, sem querer nada em retorno.
Eu deveria estar olhando para ele enquanto refletia porque, quando voltei à realidade, meus olhos estavam nele e ele estava sorrindo a mim de lado, com a cerveja na mão, enquanto meu pai continuava a falar, provavelmente a reclamar, sobre algo.
- Ele está aguentando seu pai reclamando sobre os programas de culinária na TV sendo que ele é confeiteiro! Esse é o homem certo para você sem sombra de dúvidas, Montreal! - minha mãe brincou e só me restou rir e sorrir e querer que a tarde não acabasse
Nossa tarde foi agradável, mas no final dela minha mãe começou a insistir para que eu e Enzo saíssemos sozinhos.
- Vocês ainda vão me agradecer por isso! Estou fazendo o papel de babá por pura e espontânea vontade - ela disse
- Mas, mãe, não precisa...
- Não, não, não. Vão sair, se divertir, seja jovem uma vez na vida!
Eu virei os olhos.
- O que você acha, Enzo?
- Se você quiser, eu vou. Mas eu não tenho o menor problema em ficarmos aqui.
- Vocês vão sim, decidido - minha mãe deu seu veredito e não tinha mais como negociarmos
- Ok, ok. Mas nada de mimar muito a Isa, ok?
- Ok, prometo!
- Eu vou me arrumar. Tem um chuveiro no banheiro aqui embaixo se você quiser ir se adiantando, Enzo.
- Tudo bem. Te busco às sete?
- Quê? - eu falei já na escada
- Achei que tínhamos um encontro - ele riu
- Um encontro! Perfeito! - minha mãe expressou - Quer que eu te ajude a escolher sua roupa?
- Mãe, eu tenho vinte e sete anos - eu falei, já um pouco irritada com tanta romantização por parte da minha mãe
- E voltem antes das dez! - meu pai gritou da cozinha, fazendo todos rirem
◆
- Sério! Eu não sabia que era um convite pra um encontro. Eu simplesmente disse que não gostaria de ver o filme no cinema porque parecia ser um filme muito ruim - eu disse, tentando me explicar, mas Enzo gargalhava
Estávamos andando pela cidade depois de comermos em um restaurante simples, mas com a melhor asinha de frango da cidade. Pegamos um milkshake para refrescar a noite quente e andamos seguindo o rio, pelo River Market District. A noite de Little Rock era agitada naquela parte da cidade e havia um músico em cada esquina. Não sei a razão, mas confessei que aquele era meu primeiro encontro de verdade, o que me fez lembrar que eu recusei um encontro no ensino médio: um garoto me chamou para o cinema e eu disse que o filme era ruim.
- Mas ele não sugeriu outro filme, sei lá?
- Acho que sim, mas eu devo ter dito que não estava interessada em ver nenhum ou provavelmente já tinha visto. Eu adorava ir ao cinema naquela época.
- Não estou acreditando. Coitado, Montreal! Você sabe a preparação que um cara precisa pra chamar uma menina pra um encontro? Ele deve ter ficado decepcionado. Se é difícil pra um garoto popular, imagina pra esse que você falou que também não tinha muitos amigos.
- Como você sabe que é difícil pra um garoto popular, ein?
- Porque eu era um.
Eu tive que rir.
- Quer dizer que estou tendo um encontro com um dos populares? Espero que você me cumprimente amanhã no corredor - brinquei, ele apenas virou os olhos
- Não sei se eu era bem popular... Mas acho que a escola toda gostava de mim, ok?
- Ah sim, aposto que você era muito popular. Os atletas, motoqueiros, nerds, intelectuais, baderneiros, todos deviam te adorar. Eles te consideravam um cara justo?
Enzo me olhou.
- Você acabou de fazer uma ótima referência a Curtindo a Vida Adoidado?
- Não sei, você acabou de notar de primeira que eu acabei de fazer uma ótima referência a Curtindo a Vida Adoidado? Porque, se sim, nós deveríamos nos casar.
- Achei que a gente já tinha discutido isso - Enzo passou os braços pelos meus ombros e parou de andar - Mas não, Ferris Bueller era bem mais popular que eu. Mas você é bem mais bonita que a Sloane, diga-se de passagem.
Eu devo ter sorrido que nem uma idiota com o canudo do milkshake entre meus dentes.
- Você é meu herói, Enzo Scopelli - falei, citando o filme novamente, fazendo ele rir
Eu observei seus lábios, molhados e provavelmente com gosto de milkshake de baunilha. Mordi o canudo em minha boca.
- Eu fico feliz por você ter aceitado ter esse encontro comigo. Imagina se eu te convidasse pro cinema e você dissesse que não por causa dos filmes?
Dei um peteleco indolor em seu ombro, bem à minha frente. "Idiota", murmurei.
- É, garotos populares geralmente são idiotas mesmo.
- Isso quer dizer que as meninas populares vão me olhar atravessado amanhã?
- Elas provavelmente vão fofocar sobre você no banheiro.
- Ótimo - sorri - Deixa eu dar mais um motivo para elas me chamarem de nomes ruins.
Eu aproximei minha boca da sua e senti as borboletas no estômago que provavelmente sentiria quando adolescente. Ele me beijou com seus lábios cheios de aroma de baunilha e eu realmente quis que as garotas populares da minha sala estivessem ali, assistindo e comentando que a garota estranha que não falava com ninguém tinha beijado o garoto popular.
"Ele vai se casar comigo", eu fiz outra citação ao filme dentro da minha cabeça.
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