18. Só tem um problema...
Depois de muito insistir e de uma ajuda especial de Olga, eu havia conseguido uma autorização para sair com Isadora. Apesar de cansada de tanta burocracia e procedimentos, e também não suportar mais ter que visitar Isadora naquele abrigo, eu estava contente, quem sabe esperançosa. Eu queria tê-la comigo, poder chamá-la de filha logo, mas parecia que todas as avaliações pelas quais passei quando me inscrevi no processo de adoção foram em vão. Principalmente porque agora tinha que passar por muita coisa de novo, incluindo uma visita da assistente social à minha casa. Contudo, com muita insistência, consegui deixarem que eu a levasse ao zoológico. Não era tão distante dali, mas era um bom lugar, já que, durante uma de nossas conversas, Isadora me disse que nunca havia visto uma coruja. Não sei por que ela queria tanto ver uma coruja, mas achei que ela devesse visitar o zoológico para assim realizar seu desejo. Então, no sábado de manhã, acompanhada de Enzo, busquei Isadora no abrigo e fomos andando ao zoológico que ficava a algumas quadras dali. Ela parecia feliz por ter deixado o abrigo por um tempo e eu estava feliz por levá-la para um lugar um pouco menos pesado, sem histórias tristes, sem outras crianças carentes de atenção como ela. E, no abrigo, eu tentava sempre manter meu foco nela, senão, se eu parasse para reparar em todos os rostos e olhos esperançosos e cheios de cicatrizes emocionais ali, eu ia entrar em crise querendo adotá-los todos.
- Tem certeza que aqui tem corujas? - ela disse, segurando minha mão enquanto andávamos pelo zoológico
- Tenho certeza! Mas que tal você ver os leões enquanto não chegamos na parte das corujas?
Ela sorriu e correu de meus braços. Eu fiquei apreensiva e quase gritei seu nome, mas ela parou em frente à jaula, debruçando-se sobre a grade de proteção, como outras crianças.
- Fica calma, eu tenho certeza que ela não vai fugir de você - Enzo falou
Eu suspirei. Estava preocupada com absolutamente tudo, então era difícil relaxar. Fui até Isadora, ficando ao seu lado e olhando o leão por entre as grades. Ele lambia sua própria pata, sem se importar muito com os visitantes.
- Você está com medo? Não precisa, ele não vai nos atacar - eu disse quando percebi o silêncio dela
- Não tô com medo, tô com pena.
- Pena? - eu estranhei
- Sim... Ele fica preso aqui sozinho tempo todo? Aposto que os animais querem brincar juntos, mas estão todos presos e sozinhos!
Eu me surpreendi com aquela linha de pensamento. Quando criança, eu mal passava perto da jaula do leão ou dos tigres por puro medo. E a criança de quatro anos ao meu lado estava com pena dos animais estarem presos.
- Eu entendo ele - ela interrompeu meu silêncio - A gente lá não pode sair, tem sempre e gente visitando. Mas eu posso brincar com as outras crianças... Mas elas não querem brincar comigo. Você acha que os outros leões iam brincar juntos?
Meu coração quebrou ao ouvir aquela comparação. Eu não sabia o que responder.
- Ah, acho que sim... Acho que eles iriam adorar.
- Olhem para cá! - Enzo exclamou, tirando a atenção de Isa da minha resposta não conclusiva
Confesso que eu estava um pouco chocada ainda com a comparação. Ela era uma criança de quatro anos que deve ter passado por coisas que ninguém merece passar nem com quatro anos, nem com quarenta, nem nunca. Mas eu não podia me concentrar nisso, eu tinha que focar no futuro, senão eu choraria ali mesmo.
Enzo estava com minha câmera nas mãos, prestes a tirar uma foto nossa. Ele havia insistido tanto para que eu deixasse ele tirar fotos – também que lhe desse um curso de como mexer na câmera – que eu não pude dizer não, apesar de eu ter um pouco de receio. E se a adoção não desse certo? Essas fotos só iriam me fazer sofrer mais.
- Digam xis!
Sorrimos, dizendo "xis" e ele tirou a foto.
Isadora correu de novo, logo após da foto ser tirada. Meu coração foi à boca, mas eu a vi parar em frente à jaula das onças e relaxei um pouco.
- Você está bem, Mon? - Enzo perguntou, um pouco preocupado
- Não foi nada.
- Certeza?
Suspirei.
- Certeza.
Ele passou seu braço em volta da minha cintura e nós caminhamos até à pequena. Após vermos girafas, zebras, pinguins, cobras e peixes dos tipos mais variados, chegamos à parte de aves. Eu podia ver os olhos de Isa procurando as corujas incessantemente.
- Ali! - ela falou apontando
Correu e se debruçou sobre a grade, ficando na ponta dos pés para ver melhor.
Fomos ao seu encontro, vendo as corujas por entre as finas barras de metal. Enzo levantou Isa, colocando-a em seu colo e assim fazendo com que ela as visse melhor.
- Elas estão cansadas? - ela disse
- É porque elas passam a noite inteira acordadas - Enzo respondeu
- A noite inteira? Elas nunca dormem?
- Elas dormem de dia. Mas acho que essas aqui sabiam que você ia vir e ficaram acordadas!
Eu sorri ouvindo aquele diálogo. Céus, eu estava me apaixonando ainda mais pelos dois. Isadora ainda estava com um pouco de vergonha de Enzo, mas eu via que estava se soltando aos poucos, uma pergunta por vez.
- Enzo, me dá a câmera - eu pedi
Ele, com o braço que não segurava Isadora, tirou a alça da câmera de seu pescoço e a me entregou. Eu tirei uma foto discreta deles de costas, observando as aves.
- Olhem aqui - eu disse, fazendo-os virar e ficar de frente à lente
Tirei a foto e, no momento que olhei para o visor, percebi que uma das corujas também olhou para a lente. Eu desejava muito ter tido a sorte de capturar o momento exato, mas só saberia quando revelasse o filme.
Enzo a colocou no chão e ficamos mais um tempo observando as corujas, que pareciam não se importar conosco. Ela estava encostada à grade de proteção, analisando cada movimento das aves. Devolvi a câmera a Enzo e ele me abraçou, beijando minha testa.
- Ei, tenta relaxar - ele falou
Eu suspirei forte e encostei meu rosto em seu peito.
- Isso tem que dar certo, eu não sei se aguentaria viver sem ela agora...
- Eu não acho que eles iriam deixar você se envolver tanto com ela se não fosse certo...
- Eu preciso de uma confirmação.
- Eles vão na sua casa de novo, não é?
- Sim. Vão essa semana.
- Vai dar tudo certo, você tem todas as condições, tanto financeiras quanto emocionais. E eu tô aqui para o que precisar...
Sorri, voltando meus olhos para ele.
- Promete?
- Se fosse pra fugir, eu já teria fugido há muito tempo, não acha?
- Não sei. E se você fugiu para sua casa e eu nunca percebi?
- Eu praticamente moro mais na sua casa do que na minha agora.
Ele riu e beijou meus lábios. Ele tinha razão. Talvez eu devesse perguntar se ele não queria voltar à morar na sua casa antiga, mas talvez fosse um passo muito grande para ele. Talvez as memórias de voltar a morar naquela casa iriam afetá-lo.
Eu virei meu rosto e meus olhos procuraram Isadora. Desesperei-me quando vi que o lugar que ela ocupara anteriormente estava vazio. Afastei-me do abraço de Enzo na mesma hora. Meus olhos, desesperados, procuravam por ela. Era tanta gente, tanta criança, eu estava perdida. Eu estava realmente com um sentimento ruim momentos antes; eu devia ter dado uma bronca quando ela correu de mim pela primeira vez, mas eu tive medo de que repreendê-la fosse afastá-la. Essa era a única coisa que eu não queria dela: distância.
- Isadora! - gritei
Enzo também começou a procurá-la comigo. Eu levei a mão à testa, tentando me controlar. Ela não podia ter ido longe. Passei pelo viveiro das araras, dos passarinhos menores, porém não a vi. Eu procurava por seu cabelo em cachos e pela camiseta lilás que ela usava, mas não a encontrava. Tentei controlar minha respiração, eu estava prestes a chorar. Foi quando olhei para frente e a vi, olhando para cima, mais precisamente para alguns balões que estavam sendo vendidos. Corri até ela, gritando seu nome e ela somente me olhou, alheia ao meu desespero, à minha busca. Para ela, nunca houve nenhum momento de dispersão entre nós. Agachei-me à sua altura, abraçando-a com força e em seguida me afastando para olhar em seus olhos.
- Nunca mais faça isso, entendido? Não saia de perto de mim, nada de correr por aí - falei firme
Ela concordou com a cabeça.
- Promete que não vai largar a minha mão?
- Prometo - falou ainda um pouco confusa
- Ainda bem que nada aconteceu! - Enzo veio até nós
Sua respiração ofegante estava agora aliviada. Ele parecia ter corrido e estado tão desesperado quanto eu.
- Nunca mais saia de perto de nós dois, ouviu? Nós ficamos preocupados! - falei
- Eu só vim ver os balões - ela falou inocentemente
- Era só ter falado que nós viríamos com você - falei ainda olhando em seus olhos
Ela olhou para cima de novo, vendo um balão rosa com figuras de princesas.
- Quanto é o balão? - Enzo foi mais rápido que eu e perguntou o que eu iria perguntar
O homem, que estava distraído, respondeu dando-nos um valor. Enzo se prontificou e pagou. Os olhos da criança brilharam ao ver que o balão de gás hélio agora era dela. Amarramos o balão em seu pulso, sem apertar, para que assim ela não o deixasse escapar. Continuamos andando pelo zoológico, mas agora minha atenção estava redobrada. Enzo tirou uma foto de Isadora com o balão, toda alegre, quase esquecendo-se de ver os animais.
- O bom desse balão é que agora dá para encontrar ela mais fácil - ele comentou, me fazendo rir
Passou suas mãos em minha cintura e caminhamos assim até termos andado o zoológico inteiro.
No caminho de volta ao abrigo, Isadora estava saltitante com o balão amarrado no pulso.
- Corujas têm um pêlo macio, eu queria ter tocado - seu comentário me intrigou
- Na verdade não é pêlo, são penas! - a corrigi
- Mas são tão macias...
- Sim, devem ser macias!
- Espero que no meu conto de fadas eu tenha que beijar uma coruja ao invés de um sapo - ela falou, tirando de mim uma risada
Aquela criança e seu pensamento iriam sempre me surpreender.
Quando deixei o abrigo, deixando Isa lá, senti que parte de mim também foi deixada no mesmo lugar. Era no mínimo esquisito, e eu estava angustiada para tê-la logo inteira para mim.
◆
- O que está fazendo? - Enzo perguntou, me vendo ainda de toalha na cabeça, fazendo algumas anotações e contas
Ele havia acabado de entrar, tinha uma caixa de pizza na mão e na outra minha câmera.
- Não é nada, somente algumas contas.
Eu estava, na verdade, vendo quanto dinheiro eu tinha para fazer um quarto decente para Isadora. Ele olhou minhas contas, porém não disse nada.
- Esse cheiro de pizza está me matando, vamos comer isso logo! - fiz Enzo rir
Nós nos sentamos no tapete da sala, colocando a pizza na mesinha de centro e comendo com a mão mesmo, sem frescuras. Era tão bom passar tempo com ele. E, de um tempo para cá, refleti sobre como eu estaria perdida passando por tudo isso sem ele. Nosso relacionamento pesava mais para a parte psicológica do que física, apesar de, obviamente, sentirmos atração um pelo outro nesse quesito.
- Você vai revelar as fotos logo? - ele me despertou de meus pensamentos
- É um pouco demorado, sabia? Eu tenho que fazer vários processos pra revelar o filme e depois mais vários processos pra passar pro papel com cada foto. Só pra você saber que não é tão fácil como imprimir algo.
- Por favor? - ele me implorou com os olhos
- Imagina se eu pedisse pra você fazer um bolo de sete andares com três coberturas e recheios diferentes pra amanhã?
- Eu faria qualquer coisa que você pedisse, Montreal. Eu só queria ver como ficaram as fotos que eu tirei, mas tudo bem se der trabalho. Você pode fazer isso depois.
Ele olhou para baixo e eu me culpei.
- Desculpa. Prometo que vou revelar assim que eu puder, ok?
Eu o peguei pelas mãos enquanto ele olhava para a caixa de pizza vazia.
- Eu prometo.
- Promete?
- Se for tão importante pra você ver as fotos que tirou, eu posso fazer um sacrifício.
Ele sorriu, mas sem querer isso me deixou com uma extrema vontade de revelar logo esse filme e acabar com esse mal entendido. Era o filme que ele havia usado no zoológico, eu também estava curiosa para ver as fotos. Ao mesmo tempo, estava apreensiva. Não queria nada físico dela para mim antes de saber que ia dar certo, apesar de ser contraditório: todo meu emocional já estava ligado a ela.
- Sua mão está toda engordurada de pizza - ele comentou, enquanto nossas mãos ainda estavam unidas
Nós dois rimos e ele se inclinou e me beijou.
- Idiota - eu falei antes de seus lábios encontrarem os meus
◆
Eu juro que tentei dormir. Juro que tentei encostar minha cabeça no travesseiro e simplesmente sonhar, mas minha vida parecia um pouco mais interessante do que qualquer sonho. Eram muitas coisas pra se pensar em e eu simplesmente não conseguia desligar minha mente. Mal podia acreditar em como tudo na minha vida mudou para melhor nos últimos meses. Na verdade, desde que eu me mudei para essa casa.
Eu encarei o teto mais uma vez, sem sono, então decidi levantar. Fui até a cozinha, peguei um copo de leite e subi as escadas de novo. Decidi que faria daquela madrugada um tempo produtivo, então entrei no meu laboratório improvisado junto com o filme que Enzo havia me devolvido. Eu não precisei me preocupar em checar a janela, já que estava noite e nenhuma luz entraria no cômodo mesmo. Abri o filme, coloquei-o na espiral, pus a espiral no tanque e comecei o processo que eu já sabia de cor. Depois de agitar o tanque várias vezes, esperar, tirar uma química, colocar outra, lavar o tanque e o filme diversas vezes, o sono me atingiu. O copo de leite quente começou a fazer efeito e eu não conseguia parar de bocejar e meus olhos estavam até lacrimejando. Pendurei o filme revelado para que ele secasse e liguei a luz vermelha para me certificar que não havia deixado nada aberto ou fora do lugar e voltei a apagá-la, indo direto ao meu quarto e finalmente dormindo.
No dia seguinte, desci ainda com sono e fui direto à cozinha tomar leite ou qualquer outra coisa que tinha sobrado na geladeira. Fazia tempo que eu não fazia compras. Olhei pela janela e vi Enzo pela janela dele. Ele estava concentrado, devia estar decorando algum bolo. Decidi trocar meu pijama e ir até sua casa. Não queria me aproveitar dele, mas era certo que ele teria bolo para que eu tomasse café da manhã. Quando eu já estava descendo as escadas de novo, lembrei do filme que eu havia revelado e que Enzo queria tanto ver, então voltei alguns degraus e entrei com cuidado no laboratório. Peguei o filme em minhas mãos e o levei para fora do quarto, vendo-o na luz do dia que entrara no corredor. As fotos de Isadora ficaram lindas, mas eu só as ampliaria caso desse tudo certo. Caso contrário, eu daria um fim àquele filme para machucar menos, ter memórias só dentro da minha mente. Analisei o filme até que, no final, havia fotos que eu não reconheci de primeira. Coloquei o filme contra a luz e a minha reação ao ver aqueles três negativos foi soltar um grito. Não um grito desesperado, um grito de surpresa, de não estar acreditando. Até deixei o filme cair no chão, mas voltei a recolhê-lo para ver se não estava vendo miragens. Não eram miragens. As ultimas três fotos eram de Enzo segurando uma placa ou uma folha branca de papel, não sei. O que sei é o que estava escrito nelas. A palavra "casa" na primeira das três. Ele estava segurando o papel com minha casa de fundo. Na segunda foto, a palavra "comigo". Eu podia ver sua casa ao fundo. A última fotografia continha um papel com um ponto de interrogação bem à beira da piscina. Olhando as três juntas, eu mal podia acreditar na frase formada.
Eu fiquei em estado de choque por um tempo, sem ao menos me mexer. Somente voltei a respirar corretamente quando percebi que estava segurando o filme com muita força, quase amassando-o sem perceber.
Resolvi respirar fundo e me acalmar. Andei em círculos. Desci as escadas contando os degraus para não fazer nada com pressa. Enrolei o filme e o deixei em cima da mesa antes de atravessar o quintal e ir até sua porta da frente. Eu precisava ser natural. Chamei seu nome e ele gritou, da cozinha, para que eu entrasse. Ainda respirando fundo, atravessei a sala e parei na porta da cozinha.
- Bom dia! - ele falou sorridente a mim enquanto fechava o forno
O cara que havia pedido para se casar comigo estava me dando bom dia e tudo o que eu consegui responder foi outro bom dia, contendo todas as emoções dentro de mim.
- Bom dia - eu finalmente respondi, normalizando minha voz
Ele veio até mim e selou nossos lábios.
- Deixa eu adivinhar... Não tem café da manhã na sua casa?
Eu ri, um pouco nervosa. Como ele está agindo tão naturalmente? Ele me pediu em casamento. Ele pode não saber que eu sei, mas não é algo ao qual dá para simplesmente ficar tranquilo esperando uma resposta. Talvez não estivesse tão nervoso, afinal de contas, eu não havia sido a primeira mulher a receber esse pedido dele. Resolvi me pronunciar depois de perceber que eu tinha pausado muito a conversa para pensar.
- Na verdade eu nem estou com fome - eu não menti, eu mal conseguia pensar em comida
Ele voltou aos bolinhos, decorando-os com chantilly. Conversamos um pouco, coisas bobas, só para passar o tempo, mas eu estava nervosa. Eu queria falar que sabia. Eu queria vê-lo tão nervoso quanto eu.
- Você pode me ajudar em uma coisa? - ele disse, ocupado com as encomendas
- Claro, só dizer.
- Coloca chantilly nesses aqui que já estão prontos? Preciso fazer mais massa.
- Claro - concordei
- É só fazer um círculo de fora para dentro pressionando o plástico sem parar, assim - ele demonstrou - Acha que consegue?
- Relaxa, não é tão difícil assim! - eu brinquei
Eu coloquei o chantilly em um dos bolinhos como ele havia feito e ele disse que tinha ficado ótimo. Depois disso, foi até a batedeira, do outro lado da pia. Olhei para minhas mãos novamente e elas estavam tremendo. Eu não sabia se iria conseguir fazer a decoração ficar decente. Respirei fundo. Era algo grande demais para guardar no meu peito.
Contudo, tive uma ideia repentina. Ao invés de fazer círculos, eu fiz letras. "S", "I" e "M", cada uma em um bolinho. Era minha resposta. Eu esperava que ele entendesse sem que eu precisasse explicar, sem que o momento se acabasse. Depois voltei a fazer os círculos como ele mandara. Se ele havia usado a fotografia para me pedir em casamento, nada mais justo que responder usando a sua paixão também, não é?
O barulho da batedeira estava alto e ele estava concentrado. Terminei o resto dos bolinhos e falei que precisava sair pois achava que tinha deixado a TV ligada. Como meu coração estava na boca, eu não ia aguentar a ansiedade, eu não ia aguentar esperar até que ele notasse a cobertura dos bolinhos e ligasse os pontos. Eu era assim até com filmes: sempre trocava de canal nos momentos tensos para que a ansiedade não me atacasse. E foi assim na vida real também: foi uma desculpa horrorosa para trocar o canal e esperar a cena passar sem sentir meu coração explodir. Ele me mal ouviu da primeira vez.
- Enzo! - falei outra vez e ele desligou a batedeira
- Opa, desculpa, o que foi?
- Eu vou ali em casa rapidinho, acho que esqueci a TV ligada, eu já volto.
- Tudo bem - foi tudo o que ele falou
Eu saí da cozinha deixando minha resposta escrita em chantilly. Passei pela sala com o coração batendo forte. Quando atravessava o quintal, ele me pegou de surpresa por trás, correndo e nos jogando juntos na piscina. Eu não tive tempo para pensar. Assim que voltamos à superfície depois daquele mergulho forçado, ele me beijou. Eu acompanhei o beijo, sentindo sua pele molhada e minhas roupas pesadas no meu corpo. Quando nossos lábios se separaram, estávamos ofegantes e eu sentia as gotas de água escorrerem pelo meu rosto.
- Você arruinou três bolinhos da minha encomenda - ele brincou, me apertando
Eu ri, falando que ele também havia gasto três poses do filme.
- Foi por uma boa causa.
- Digo o mesmo.
Ele me olhou mais seriamente, acho que sem acreditar que aquilo estava acontecendo. Eu também não estava acreditando muito, mas não queria pensar. Às vezes, se você pensa muito, você se esquece de viver.
Olhando em seus olhos, percebi o quão difícil era imaginar o mundo sem ele, o mundo sem eu ter comprado essa casa, um mundo sem essa piscina na qual estávamos, um mundo sem sua casa do outro lado do quintal, sem o cheiro de bolo, sem ele nos meus dias. Fiquei vendo as gotas de água escorrendo pelo seu rosto, assim como ele estava também assistindo as que escorriam pelo meu.
Ele me abraçou e eu encostei meu queixo em seu ombro.
- Só tem um problema... - ele disse
Eu imediatamente me afastei de seu ombro e o olhei preocupada.
- O quê? - perguntei enquanto ele parecia sério
- Quem vai fotografar nosso casamento? E quem vai fazer o bolo?
Nessa hora ele gargalhou e eu ri, jogando água nele.
- Droga, Enzo! Você me assustou! - eu continuei jogando água em seu rosto, mas ele me segurou firme e me puxou para outro abraço - Idiota.
Ele sorriu. Ele sabia que, para nós, aquele adjetivo ia bem além do que o dicionário dizia.
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