17. Você tem nome de fada madrinha.
Eu havia passado o fim de semana com uma enorme ansiedade no peito. Coloquei no papel mais algumas das fotos que faltavam para o meu projeto durante o sábado, mas ele parecia irrelevante agora.
Apesar de ainda telefonar para os meus pais todos os dias, eu não lhes contei sobre a adoção. Eu não havia contado nem sobre entrar na lista de espera. Eu sabia que eles iam se encher de preocupações e dúvidas, principalmente minha mãe. Todo dia ela me perguntava algo sobre Enzo. Parecia que era ele quem era seu filho porque ela perguntava mais dele do que de mim.
- E ele gosta de torta de cereja? Eu posso levar quando eu for te visitar!
- Mãe, não sei, deve gostar. Mas lembra que ele é confeiteiro, provavelmente sabe fazer torta de cereja.
- É verdade! Droga, vou pensar em outra coisa e depois você pergunta se ele gosta, ok?
- Ok, mãe. Mas vocês estão planejando vir me visitar em breve?
- Temos que planejar, comprar as passagens.
- Me avisem. Eu preciso arrumar as coisas aqui antes, ok?
Eu me senti apreensiva. Eu teria que prepará-los para a notícia de que muito provavelmente eu seria mãe. E não é como se eu tivesse nove meses para prepará-los para isso.
Na segunda feira de manhã, eu decidi ir ao orfanato que me indicaram na ligação que fiz no sábado para de fato confirmar que minha vez havia chegado. Enzo fez questão de ir comigo e eu agradeci, pois não sabia se ia conseguir dirigir tão nervosa. Talvez o nervosismo ia fazer com que eu me distraísse do trânsito.
Vesti a roupa mais adulta e com mais cara de responsável que eu tinha e estacionamos na frente do portão. Havia um parquinho lá dentro, onde algumas crianças brincavam. Fiquei imaginando quem seria a criança que eu estava prestes a conhecer.
Fui atendida por uma senhora simpática, chamada Olga.
- O nome dela é Isadora. Tem quatro anos. Uma graça de menina! - a senhora disse, me fazendo segui-la até uma sala
- Quando vou poder conhecê-la?
- Em breve, só vou te dar algumas instruções. Isadora chegou para nós com dois anos e meio. Ela ainda está aqui pela preferência por bebês que a maioria dos pais adotivos tem. Uma pena preferirem limpar fraldas a terem uma criança um pouco mais velha. Eu fiquei feliz ao ver que você tinha colocado na ficha de inscrição que queria uma criança um pouco mais velha, sabia? Continuando, seu pai a abandonou assim que soube da gravidez e sua mãe entrou em uma depressão profunda pós-parto. Ela conviveu com a mãe até os dois anos, mas, por causa da depressão que não passou, Isadora acabou vindo para cá. Acho que olhar para Isadora a fazia lembrar do canalha que a abandonou. Às vezes me dá raiva essas mulheres tão dependentes de sujeitos assim!
Eu concordei com a cabeça e ela se sentou, percebendo que Enzo estava comigo.
- É seu marido? Na ficha diz que você é solteira.
- Não, não - eu respondi - Mas estamos juntos.
- Namorados, se for para rotular - Enzo se pronunciou
Ela pareceu se surpreender.
- Acompanhar a namorada para vê-la adotar uma criança e concordar com isso? Meu bem - ela se referiu a mim - Onde foi que você encontrou um desses?
Eu ri, um pouco sem graça.
- Acredite ou não, na minha piscina.
Enzo gargalhou, mas a mulher ficou desconfiada.
- É uma longa história - falei - Mas, Isadora está aqui? Eu posso conhecê-la?
- Sim, acho que pode. Mas não fale nada ainda sobre a intenção de adotá-la, deixe que ela mostre de algum jeito que gostou de você, que quer você por perto. Isso pode levar algumas visitas a mais...
- Eu a visitarei todas as manhãs se for permitido.
A senhora sorriu com a minha disposição e me fez assinar alguns documentos de que eu havia visitado o orfanato, para controle interno. Depois a acompanhei até o parquinho. Meu coração estava saindo pela boca.
- Ela é aquela ali, brincando de fazer castelos com areia. Aquela com uma coroa na cabeça.
Eu olhei para a menina. Ela tinha um cabelo castanho escuro, quase preto, todo em cachos. Sua pele era mulata e ela estava concentrada em fazer um castelo com o baldinho.
- Ela é linda - falei quase sem acreditar que era aquela menina mesmo e imaginei por que não havia sido adotada ainda
- Sim, vá conversar com ela. Mas, lembre-se, nada de falar sobre adoção.
- Você quer ir comigo, Enzo?
- É melhor você fazer isso sozinha. Ela tem que gostar de você primeiro - ele sorriu
No fundo, acho que ele estava tão apreensivo quanto eu. Fui andando devagar até ela, pensando no que falar. Percebi que ela tentava fazer o castelinho com o balde, mas ele desmoronava.
- Você quer ajuda? - perguntei, com medo de sua reação
E se ela me rejeitasse? E se eu perdesse a chance de tê-la logo na primeira impressão?
Porém a menina apenas consentiu com a cabeça, sem dizer nada.
Eu me sentei também na areia, sem me importar com sujar minha calça. Ajudei-a a encher o balde de areia de novo, comprimindo o máximo de areia que eu pude no plástico. Viramos o balde de ponta cabeça com agilidade e eu bati com a pá sobre o topo dele, para que a areia descolasse do fundo.
- Isso funciona? - ela se pronunciou, com uma voz um pouco baixa e cheia de vergonha
Eu, instantaneamente, me apaixonei por aquela voz de criança. E, também, ao mesmo tempo, tentei não reparar muito. Não queria me apegar a ela sem saber se ia dar certo.
- Vamos ver se a minha varinha de condão está funcionando - eu disse, me referindo à pá
Ela olhou esperançosa para o balde e eu a ajudei a tirá-lo devagar. Eu torcia para a areia ter ficado firme.
- Deu certo! - ela expressou ao ver o castelinho intacto
- Ufa! Não vou ter que mandar a varinha para o conserto. Sabia que cobram um absurdo para consertar? - brinquei e ela sorriu
- Você é uma fada madrinha de verdade?
- Você é uma princesa de verdade? - rebati sua pergunta - Ou eu errei o endereço? Porque você é a única que eu estou vendo usando uma coroa aqui.
- As outras meninas dizem que eu não sou.
- É porque elas não têm uma coroa como a sua - eu sussurrei - Elas bem que queriam ser princesas também.
Ela ficou envergonhada, olhando para baixo com seus cílios imensos. Eu queria abraçá-la, mas sabia que isso podia assustá-la.
- Qual o seu nome, querida princesa? - perguntei como quem não soubesse
- Isadora.
- É lógico que você é uma princesa. Até nome de princesa você tem!
- E o seu nome? - ela perguntou, feliz
- Montreal - disse, esperando uma resposta
- Você tem nome de fada madrinha - ela disse, ajeitando a coroa no topo da cabeça com as pequenas mãos - Você acha que príncipes encantados existem?
Aquela pergunta me pegou de surpresa.
- Claro que sim. Se você existe e é uma princesa, é claro que existem príncipes. Os encantados são mais raros, mas estão por aí.
- Eu não vou precisar beijar nenhum sapo, né? Eu não gosto muito de sapos.
- Não, essa história é de outro conto de fadas. E nenhum conto de fadas é igual a outro.
- Você acha que meu príncipe vai ser que nem aquele moço ali? Ele parece com o príncipe do filme da Rapunzel.
Ela não apontou, com vergonha, mas eu soube na hora que ela estava se referindo a Enzo. Ele era o único sentado na direção que ela indicara. Eu sorri comigo mesma.
- Tenho certeza - eu disse - Quer que eu o chame aqui?
- Não, não! Eu tenho vergonha. Você conhece ele? - ela se assustou
- Fadas madrinhas conhecem todos os príncipes do mundo.
- Até o da Bela Adormecida?
- Sim. Só que ele anda muito ocupado fazendo ela parar de dormir tanto - eu brinquei
Ela ficou mais confortável falando comigo sobre príncipes e princesas. Eu agradeci por conhecer e ter visto todos os filmes e histórias de princesas e contos de fada. Eu não queria me apegar, mas acho que esse plano inicial falhou.
- Isadora, está na hora do almoço. Vamos ao refeitório? - uma moça do orfanato disse a ela
Percebi que todas as crianças estavam indo almoçar também.
- Eu não estou com fome - ela reclamou
- Princesas precisam comer, sabia? Dizem que, se a princesa não come, o cabelo delas perde o brilho mágico - eu sussurrei como se fosse um segredo real
- Você volta amanhã? - ela perguntou
- Volto - assim que eu disse isso, ela me abraçou um pouco comedida e eu quis levá-la para casa no mesmo instante, mas eu sabia que não era tão simples assim
Ela se foi, de mãos dadas com a moça, mas olhando para mim, até que desapareceu, entrando no refeitório. Eu me levantei, limpando a areia de minha roupa.
- Isso foi muito bom - Olga disse assim que me aproximei deles novamente
- Não sei quem gostou mais de quem. Ela de você ou você dela - Enzo falou
- Ela gostou de você também.
- Sério? Ela chegou a me ver?
- Ela pensou que você era um príncipe encantado - eu ri
- Você vai voltar amanhã? - Olga disse
- Sim. E depois de amanhã, e depois, e depois! O tempo que for necessário - sorri
- Ótimo! Vamos analisar o progresso. Mas vamos agora voltar para minha sala, tem algumas papelada e informações que são boas para você ficar menos perdida no processo.
Enzo e eu a acompanhamos de volta à sala. Olga analisou minha ficha e me pediu para conferir as informações.
- Só o endereço que mudou - eu comentei
- O endereço? Então vamos ter que fazer uma outra revisão na casa com a assistência social, tudo bem?
- Sem problema algum! - sorri - Acho que vai ser um ponto positivo. A casa é ótima, não é mais um apartamento.
- Ótimo! Mais alguma coisa para atualizar? Telefone, renda, estado civil?
Olga perguntou olhando para Enzo. Não tinha como colocar "namorando" na ficha, o que ela queria?
- Colocar uma renda a mais pode ajudar no processo, não é? - Enzo se pronunciou - Porque eu quero ajudar no que for preciso.
- Bom, teria que comprovar renda e comprovar algum vínculo entre vocês dois. Mas, quando o vínculo não é reconhecido pela lei, fica complicado provar que a criança vai mesmo dispor dessa renda, não há segurança.
- Enzo, eu já falei que você não precisa me ajudar com isso. Não é sua obrigação de modo algum - eu falei em um tom mais baixo
- Eu não estou fazendo isso por obrigação, Montreal. Eu só queria ajudar porque eu quero que você seja feliz e que essa criança seja feliz.
Olga olhou para nós esperando alguma resposta.
- A gente vai ver o que dá pra fazer, por enquanto deixa a ficha assim mesmo. Eu já esperei anos, para mim já foi um milagre ser chamada. Se for pra ser Isadora mesmo, vai ser - eu sorri
- Eu não vou mentir. Analisando sua renda, o fato de você ser solteira e nova e, antigamente, morar em um apartamento não foi algo que ajudou no processo. Mas nós queríamos muito ver Isadora feliz. Confesso que senti que vocês se deram muito bem, ninguém havia aproximado dela como você fez. Estou esperançosa.
- Eu também - tentei conter minha animação, eu sabia que iria ser um processo lento
Saímos por aquele portão e eu já estava perto da hora de entrar no serviço. Eu sugeri que fossemos àquela lanchonete na frente da ponte, cuja vista tinha encantado a nós dois, mas infelizmente ela não existia mais. Havia uma placa enorme na frente escrito "passa-se o ponto".
- Droga, eu realmente tinha gostado desse lugar - eu disse ao encarar as portas fechadas
Enzo estava do outro lado, olhando a paisagem, encostado à cerca que dava para o rio.
- O que foi? Você quase não disse uma palavra desde que saímos de lá.
- Não sei... É que... Você não quer que eu te ajude com essa criança? Porque eu quero. Mas se você disser que não, eu entendo, eu te respeito, ok?
- Eu acharia incrível, Enzo! Mas eu não quero colocar em você uma responsabilidade que não é sua, sabe? Isso foi antes, você não precisa sentir a obrigação de me ajudar com nada.
- Obrigação? Eu não estou com você por obrigação então não sinto que essa novidade sobre você me pressione a nada. É estranho pensar que daqui a pouco vai ter uma criança morando na minha antiga casa? Sim, é - ele riu - mas é incrível como eu nunca fico entediado como você, tem sempre algo novo para descobrir e para acontecer.
- Coloca algo novo nisso - eu ri - Ok, vamos deixar as coisas acontecerem naturalmente. Você ajuda no que quiser, eu não vou te pressionar a nada também. Fechado? E eu mal sei ainda se vou mesmo ficar com aquela menina linda, eu nem deveria estar tão animada.
- Ela é linda mesmo. E você parecia tão feliz do lado dela e ela do seu. Você deveria me emprestar sua câmera para eu tirar fotos desses momentos, ein?
- Só se você me ensinar a fazer bolos recheados e com cobertura - eu ri
- Fechado! Vamos achar outro restaurante antes que você se atrase.
Ele envolveu sua mão à minha e eu encostei o lado de meu rosto em seu ombro. Eu tinha que conter a excitação em meu peito.
Almoçamos em outro local, nem de longe tão bonito quanto o outro. Quando cheguei em casa, meus pés doloridos do patins não me incomodavam tanto. Eu só queria que chegasse o dia seguinte logo.
Na terça-feira, fomos até o orfanato um pouco mais cedo. Olga nos recepcionou de novo e falou que uma psicóloga ia acompanhar nosso encontro de longe. Eu concordei. Havia crianças espalhadas brincando pelo orfanato e meus olhos procuravam Isadora incessantemente. Foi quando não precisei mais procurar: ela havia corrido até mim e agarrado uma de minhas pernas.
- Você veio - foi tudo o que ela disse, sorrindo
Eu quis não derreter, mas foi impossível.
- Por que você não nos mostra os desenhos que fez ontem, Isa? - Olga disse e ela concordou com a cabeça
A menininha começou a andar e nós a seguimos até um dormitório. Havia várias beliches em um grande espaço. Ela entrou em um dos corredores e apontou para a cama de baixo de uma beliche encostada à parede. Na mesma parede, eu pude ver uma folha de papel colada com fita adesiva a ela. Isadora subiu na cama e descolou o desenho da parede, me mostrando.
- Que bonito - eu disse, vendo aqueles traços infantis feitos com giz de cera - Quem é essa aqui? É você?
Apontei para uma personagem desenhada com uma coroa. Ela assentiu com a cabeça.
- E essa é você - ela apontou para outra figura, mais alta, segurando uma varinha - e esse é o castelo.
Eu olhei os traços com um sentimento crescendo dentro de mim. Por que eu não poderia levá-la hoje mesmo para casa? Ela dormiria na minha cama até eu arrumar o quarto dela! Mas infelizmente as coisas não são tão simples assim.
- Eu vou deixar vocês sozinhos, me chamem se precisarem - Olga disse
- Você trouxe o príncipe? - Isadora sussurrou a mim, olhando para Enzo
- Ele veio te conhecer - eu disse
Enzo, percebendo a conversa, chegou mais perto e fez um gesto de saudação antigo, pegando delicadamente a pequena mão da menina.
- Encantado em conhecê-la, princesa Isadora - esse disse
A pequena chegou a ficar vermelha de vergonha.
Ficamos um bom tempo conversando com ela, até que ela se deitou em seu travesseiro e dormiu ouvindo as histórias que contávamos. Eu passei meus dedos pela sua bochecha macia, analisando seu rosto. Quem foi que conseguiu abandonar e rejeitar uma criança tão linda e inocente? Enquanto ela respirava tranquilamente, notei algumas marcas em seu pescoço e em seu braço que eu não havia notado antes.
- É melhor deixar ela dormir - Enzo sussurrou - A gente volta amanhã.
Eu, que estava de joelho no chão para ficar ao mesmo nível da cama, me levantei sem desviar os olhos dela.
- Olá, Montreal, certo? - uma mulher com uma prancheta na mão disse assim que saímos do corredor da beliche
- Sim, eu mesma.
- Meu nome é Valerie. Acho que Olga disse que eu ia acompanhar o encontro hoje. Eu sou psicóloga. Eu estava observando vocês de longe, prestando atenção na conversa.
- Ah, claro, falou sim - eu disse - Esse é Enzo, meu namorado.
Ela o cumprimentou também e nos convidou a segui-la. Entramos em uma outra sala e nos sentamos.
- Acho que Olga já contou sobre como Isadora veio parar aqui, não é?
- Sim, a mãe abandonou ela por depressão pós-parto, não é?
- Sim, mas houve uma razão pela qual tiraram a guarda da mãe dela. A mãe descontava a raiva do pai tê-la abandonado grávida... Bom, isso vai ser difícil de ouvir, mas... Ela fazia isso agredindo Isadora fisicamente - a psicóloga disse com pesar
As marcas que eu havia notado minutos atrás vieram-me à mente junto com um sentimento ruim dentro do meu coração.
- Como tem gente que consegue agredir uma criança tão inocente assim? - eu pensei comigo mesma - Tem alguma possibilidade da mãe voltar a procurá-la?
Confesso que esse sempre foi um medo meu. Adotar uma criança e depois os pais biológicos quererem reivindicar a guarda ou atingir a criança de algum modo.
- Olga provavelmente não te contou. A mãe biológica dela cometeu suicídio um pouco depois da retirada da guarda.
- Oh - foi tudo o que eu expressei - Eu não sabia.
- E, como você já deve ter notado, Isadora é extremamente carente, mas ela não se abre com muitas pessoas, principalmente adultos. Foi uma surpresa o quão falante ela está agora. Ela sempre se fechou em um mundo de fantasias, certamente para tentar ignorar sua realidade.
- Acho que talvez ela se abriu porque acha que eu seja uma fada madrinha e Enzo um príncipe - comentei rindo
- Sim! E você foi a única que se aproximou dela com essa narrativa lúdica. É bom ela se abrir sem saber que vocês têm a intenção de adotá-la, sem ela ter medo do que está por vir. Eu preciso saber se você realmente está disposta a adotá-la, para começarmos a introduzir essa ideia a ela da melhor forma possível.
- Sim, claro! Se fosse possível, eu a levava comigo hoje mesmo.
- Isso é ótimo! Ela realmente precisa de atenção, de uma realidade melhor. Não é à toa que ela se cerca de fantasias de contos de fada...
- Esse processo é muito demorado, quanto tempo geralmente leva? Eu preciso segurar minha ansiedade - perguntei
- Nós temos que fazer uma boa avaliação para ver se a criança vai ser bem cuidada, fisicamente e psicologicamente. Isadora precisa de uma referência adulta, já que ela simplesmente não teve nenhuma. A sua família é bem estruturada? - consenti com a cabeça - E sobre um referencial masculino? Isadora nunca teve isso e talvez isso a assuste.
Nessa hora, Enzo, que estava calado, se pronunciou.
- Eu pretendo ser esse referencial - ele falou - Mesmo que não sejamos casados, como namorado e vizinho, eu sempre estarei por perto.
- Magnífico! - Valerie expressou - Ainda vamos passar por vários processos de adaptação e análises, ela vai passar seis meses com você antes da guarda oficial sempre sendo acompanhada por assistentes sociais, mas eu acho que vai dar tudo certo. É bom ver Isa finalmente encontrando um lar.
- Se me permite perguntar... Ninguém nunca quis adotá-la? Por quê?
- Quiseram sim. Poucos, porque a maioria prefere bebês. O fato de Isa ter sofrido esses traumas de agressão também influenciam na escolha... Mas ela é uma menina de ouro. Só que é muito quietinha, pais adotivos precisam desse contato com a criança inicialmente e ela nunca demonstrava isso. Eu vi que você conseguiu cativá-la a se expressar. Isso é muito bom!
- Obrigada - sorri, sem graça
- Ah, só uma dica. Sei que você não vai fazer isso agora, é arriscado, mas tente depois agir um pouco mais como mãe e menos como amiga. Ela nunca teve um referencial, então nunca soube quais são os limites. E, apesar de ser boazinha, é criança, e criança testa os limites do adulto.
- Ah, tudo bem - sorri - Vou pensar sobre como posso fazer isso.
- É só uma dica para evitar conflitos futuros, ainda mais na adolescência mais pra frente. Eu te ajudo com isso.
Concordei com a cabeça e nós saímos, deixando Isadora dormindo. Eu ainda estava um pouco chocada e quem sabe raivosa sobre as agressões físicas cometidas a ela. Só que ao mesmo tempo eu também estava triste por sua mãe ter tirado a vida. Eu atravessei a rua falando sobre aquilo tudo, na verdade, parecia meu único assunto esses dias. Quando entramos no carro, percebi que Enzo estava calado e pensativo demais. Era algo recorrente desde que contei a ele que pretendia adotar uma criança.
- Eu estou te incomodando falando muito sobre ela? - eu disse, vendo-o parado, com as mãos no volante sem ligar o carro
- Não é isso, Montreal... - ele suspirou - É que ela tem quatro anos. Exatamente quatro anos. E eu fico pensando que meu filho que eu nunca pude conhecer teria a idade dela. Eu só estou um pouco assustado com essa oportunidade que a vida está me dando de recomeçar, é isso.
Eu me calei. Eu nem havia notado essa coincidência de anos. E então, pensando sobre aquilo, meu cérebro acabou agindo mais lento que minha boca e eu soltei palavras que eu não sabia que estavam prontas para serem usadas.
- Eu te amo, Enzo. E eu amo tudo o que você está fazendo por mim. Eu confesso que estaria sendo mil vezes mais difícil sem você do meu lado.
Ele ligou o carro depois de ouvir o que eu falei.
- Eu estou... Assustado. Tudo aconteceu muito rápido - foi tudo o que ele disse e, bom, analisando minhas palavras após dizê-las, eu percebi que esperava uma resposta diferente
O caminho até em casa foi silencioso. Eu entrei, almoçei e fui ao restaurante, trabalhar. Eu estava um pouco triste com a resposta dele, mas, no fundo, eu até compreendia. Fui tremendamente tola ao dizer aquilo. É claro que ele nunca vai me amar assim, não do jeito que amou Catherine. Às vezes eu achava que eu era somente uma distração, algo para preencher o vazio, a falta dela.
Trabalhei com a minha mente me torturando com esses assuntos e ao mesmo tempo segurando a língua para não contar à Karina que eu estava prestes a adotar a criança mais linda e adorável do mundo. Então, com esses esforços somados à concentração para não cair com os patins, eu cheguei em casa exausta. Parti para um longo banho e depois para meu laboratório para tentar me concentrar em qualquer outra coisa que não envolvesse Isadora ou Enzo. Ampliei as últimas fotos e, quando o cheiro da química começou a me dar tontura, desci até a sala com algumas fotos que eu havia revelado dias atrás. Selecionei-as e, com um caderno ao lado, comecei a elaborar o fundamento do meu projeto, apesar dele parecer um pouco irrelevante visto os últimos acontecimentos na minha vida.
Ouvi a campainha tocar e nem me importei em levantar. Eu sabia exatamente quem era.
- Pode entrar, a porta está aberta - foi tudo o que eu disse
Eu geralmente deixava a porta aberta para não me levantar para abrir, já que Enzo sempre me visitava à noite.
- Está muito ocupada? - ele disse, abrindo a porta mas não entrando
- Não, pode entrar - eu disse sem tirar os olhos do caderno no qual estava escrevendo
Ele entrou e se posicionou atrás de mim, segurando-se na cadeira na qual eu estava sentada.
- Já começou o projeto? - perguntou ao ver o que eu estava fazendo
- Sim - eu disse curtamente
- Já fez a minha foto?
- Você só vai ver a sua junto com todo mundo, não adianta insistir.
- Ei... - ele falou, encostando o queixo no topo de minha cabeça por um tempo
Eu olhei para cima, jogando meu pescoço para trás e olhando-o. Vi seu rosto bem à frente do meu só que de ponta cabeça para mim. Ele, gentilmente, tirou uma mecha de meu cabelo da frente do meu olho e pôs suas mãos cada uma de um lado da minha cabeça. Depois disso, beijou meu lábios calmamente, mas sem demorar muito. Meu pescoço agradeceu. Voltei a olhar para frente e ele percebeu meu incômodo.
- O que foi, Montreal? - ele perguntou
- Não foi nada.
- Foi sim alguma coisa. Não minta. Eu fiz alguma coisa errada? É só dizer.
"Sim, Enzo. Você ignorou o fato de eu ter dito que eu te amava." Eu não tive coragem de dizer isso, obviamente.
- Você não fez nada. Eu que me precipitei.
- Precipitou? Você está em dúvida sobre adotar ou não?
Homens. O quão difícil é perceber onde foi que eles erraram? Eu teria que desenhar para ele entender?
- Não, eu tenho certeza e não volto atrás.
- É porque eu falei que estou assustado, não é? Sobre a coincidência de idades? Com certeza é isso!
Eu não disse mais nenhuma palavra. Eu não queria dizer a ele o problema, pois ele poderia se sentir forçado a dizer que sentia o mesmo e eu não queria aquilo. Ou ainda pior: ele poderia dizer que não sentia o mesmo e isso iria me machucar. Eu não estava preparada emocionalmente para nenhuma das duas situações. Contudo, ele somente se agachou ao lado de minha cadeira e tocou minhas mãos.
- É complicado para mim e eu ainda estou tentando entender. Mas isso nada tem a ver com desistir. Eu te dei minha palavra, eu quero estar na sua vida e na vida dessa criança. Eu te amo e acho que posso dizer que já a amo também. Eu só estou assustado com a segunda chance que a vida está me dando. Essa virada de página. Eu não achava que conseguiria amar mais ninguém depois de Catherine, mas olha só! Agora eu tenho uma mulher e uma criança na minha vida de novo, e isso me espanta! Às vezes acho que estou dormindo e vivendo no meio de um sonho maluco. Eu tenho medo de que alguém me belisque e eu acorde, sabia?
E, assim, sem perguntar, sem pedir, sem forçar, sem pressionar, eu tive minha resposta. Naturalmente, algo sem ser muito pensado, mas algo certo, sem dúvidas escondidas no meio das palavras.
Eu coloquei minhas mãos uma em cada lado de seu rosto e o beijei até meu fôlego acabar. Quando soltei seus lábios, notei sua feição um pouco extasiada. Ele ficou de olhos fechados por um tempo, mas, quando abriu, deixou uma expressão de surpresa sair de sua boca.
- Isso quer dizer que eu já posso ver o que você escreveu sobre mim?
Eu ri com a pergunta.
- É claro que não. Só por segurança, o seu vai ser o último que eu escrever.
- Isso é muita maldade, sabia?
Nós rimos enquanto ele se jogava no sofá. Só que, ao invés de assistir televisão, algo que ele odiava, Enzo ficou me desconcentrando ao me assistir pelo resto da noite.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro