11. Logo você?
O dia seguinte, um domingo, foi bem o que um domingo é: um tédio. Não adiantava ligar a TV, porque eu sabia que ia ficar rodando os canais e não parando em nenhum. Então eu decidi parar de preguiça e revelar as fotos do sábado. Eu tinha que ter cuidado, afinal, as fotos não eram para mim e sim para o casal recém-casado, sem contar as fotos para o trabalho. Na verdade, eu estava com medo de revelá-las e ver que nenhuma tinha saído boa, mas sabia que eu não teria muito tempo para fazer isso durante a semana, e eu não podia adiar tanto.
Peguei o primeiro rolo de filme e entrei no meu laboratório improvisado. Conferi as emulsões químicas e todas as medidas quinhentas vezes antes de começar o processo. Eu não podia errar em nada. A primeira foto do primeiro filme revelado me surpreendeu. Eu mal lembrava que a havia tirado. Era Enzo, no dia em que eu o fiz fazer coisas que ele nunca havia feito. Foi a foto que tirei dele na paisagem nunca percebida por mim antes. Não sei quanto tempo fiquei olhando o negativo contra a luz, analisando cada detalhe, sem ao menos ampliá-la no papel e revelá-la. Minha curiosidade falou mais alto e eu peguei o papel fotográfico, ajustando o negativo e a exposição. Assim que joguei o papel no revelador, um sorriso também veio ao meu rosto. Tinha ficado ainda melhor do que no negativo.
Quando percebi que havia gastado tempo demais com uma foto só, comecei a me dedicar às outras. Eu havia gostado das fotos que tirara. Não tinham muita coisa especial, mas achei que refletiram a simplicidade e a beleza que foi o casamento, ainda mais porque o segundo filme era preto e branco. Fiquei analisando também a foto da tal Susan, que havia pego o buquê, ou quem sabe, havia sido pega por ele. Qualquer um que visse minha foto, nunca falaria que ela não acreditava em amor. Lembrei então do comentário de Enzo. Será que eu estava equivocada em pensar que meus pais se encontrarem do jeito que se encontraram foi apenas sorte? E eu acreditava no amor, afinal de contas?
Deixei essas perguntas para lá e fui para o terceiro rolo. Meu papel fotográfico já estava no fim e eu tive que ser bem cuidadosa. As fotos do trabalho ficaram boas. Normais, mas boas. Agora só faltava escrever sobre os lugares.
Quando acabei e olhei ao meu redor, me vi cercada de fotos penduradas para todos os lados. Eu já estava com dor de cabeça por causa do cheiro da química, então resolvi sair. Eu precisava de um laboratório maior.
Naquele mesmo dia, à noite, separei as fotos do trabalho e as coloquei sobre a mesa. Peguei um caderno e uma folha e tentei escrever sobre cada lugar da foto. Como a cidade não era turística, tive a ideia de ir além de somente descrever o lugar ou elogiá-lo. Eu olhava para foto, lembrava do lugar e descrevia, além do geral, o que aquele lugar havia me feito sentir ou pensar. Achei aquele jeito de persuadir alguém a visitar um lugar um pouco mais humano, mais poético, e esperava que o Sr. Henke gostasse.
Quando cheguei na última foto que tirei, de uma estátua no meio da praça, lembrei do momento. Lembrei de Enzo me agradecendo e lembrei dele confessando que tinha medo de esquecer detalhes de Catherine. Foi aí que tive uma ideia. E então decidi chegar um pouco mais tarde na aula de segunda feira para antes passar no centro da cidade e comprar o que eu precisava.
◆
- Onde esteve sábado? - Karina perguntou, enquanto patinávamos entregando os pedidos
Já havíamos nos acostumado aos patins. Quedas eram raridade agora, mas as bolhas no pé só aumentaram.
- Eu fui a um casamento - eu disse
- Perdeu um dia de gorjeta por um casamento? Era o casamento real? - ela riu
Eu rolei os olhos.
- Eu fui paga para ir - foi tudo o que eu disse
- O quê? Como assim? Espera. Alguém te pagou para ir como acompanhante? Se for isso, eu também quero. Onde que eu entrego meu currículo? - ela brincou
- Não é nada disso, Karina.
- Então o que é? Não, espera, foi aquele seu vizinho, né? O cara da piscina? Ele foi quem te pagou para acompanhar ele? Ou foi o garoto que estava apaixonado por você? - ela parou sobre os patins por um tempo para falar aquilo
- Não diga bobagem. Faz tempo que eu não vejo o garoto, ainda bem. E sim, eu fui com Enzo, mas ele não me pagou para acompanhá-lo.
- Espera, você foi ser garçonete no buffet do casamento? Poxa, poderia ter me chamado!
Eu pensei por um momento, decidindo se contava ou não.
- Foi exatamente isso. Desculpa, não tinha mais vaga - eu menti, limpando uma mesa
Ela se conformou e não perguntou mais. Eu me perguntei qual a razão desse meu medo ridículo de falar para as pessoas sobre o que eu realmente gosto de fazer. Não tinha sentido.
E, naquele dia, já de noite e depois de ter lavado o cabelo e embrulhado em papel de presente o que eu havia comprado de manhã, lá estava eu, na porta de Enzo, esperando-o me atender. Os segundos entre o toque da campainha e a porta se abrir fizeram meu batimento cardíaco aumentar drasticamente.
- E aí? - ele falou, me deixando entrar, como se já me esperasse
- Oi - eu disse, entrando
- O que é esse pacote na sua mão? Não me diga que é outro presente. Montreal!
Eu sorri, envergonhada.
- Esse é o segundo presente que você me dá e eu não tenho nenhum para te dar em troca. Isso não é justo.
- Que bobagem, nem sempre uma pessoa dá presente esperando outro em troca! - eu sorri - Abra!
Sentei-me no sofá e o vi desembrulhar o pacote. Ele segurou o presente e o analisou.
- É um scrapbook - eu disse - Você me falou que tem medo de esquecê-la. Desse jeito você pode escrever tudo o que lembrar dela aí, junto com fotos e outras lembranças, caso um dia sua memória falhe. Não sei se você já tem algum diário ou agenda pra isso, mas talvez dê para fazer dele um álbum de fotos qualquer coisa.
Ele ficou sem palavras. Virava as páginas do presente, sem dizer nada.
- Obrigado - foi tudo o que disse, suspirando
Eu não disse nada, tentando entender no que ele estava pensando. Eu havia errado em comprar esse presente?
- Levanta, acho que no mínimo você merece um abraço - ele finalmente sorriu a mim e eu me levantei, indo para seus braços
Ele me abraçou de maneira forte e longa. Aqueles abraços apertados nos quais você fecha os olhos para senti-los melhor.
- Espera, você merece mais uma coisa - ele desfez o abraço e saiu do cômodo, indo à cozinha
Voltou com um bolinho decorado na mão. Eu já sabia que ele iria me presentear com seu maior talento.
- Julie? - eu disse assim que li o que estava escrito com glacê nele
- É uma encomenda. Aniversário de criança - ele sorriu - Mas é a mesma receita do bolo de casamento de sábado.
- Não vai fazer falta na encomenda?
- Eu sempre faço um número maior, caso dê errado.
- Você e essa casa que cheira a bolo. Já devo ter engordado uns cinco quilos desde que mudei - eu brinquei
- Obrigado mesmo - ele disse, pegando o scrapbook - Você está sempre arranjando um jeito de me alegrar.
Eu fiquei envergonhada e decidi continuar concentrada apenas no bolinho.
Ele estava com o scrapbook na mão, sentado na beira do sofá. Olhava a parede e percebi que seus olhos se revezavam entre a foto dela e a foto que eu havia tirado, que agora estava pendurada ao lado.
- Eu não sei se estou pronto - ele disse como se falasse a si mesmo
Eu fiquei em silêncio. Pronto para o quê?
- Pronto para superá-la - ele completou meu pensamento
Não pude negar, aquilo me deixou meio triste. Não queria que ele a esquecesse, mas eu queria ter um espaço reservado em sua mente também. Por que eu sempre quero coisas que eu não posso ter?
- Sabe... O jeito que você a amava. Eu a invejo - confessei e ele sorriu para baixo - É até difícil de acreditar que tem gente que pensa o contrário, que pensa que é culpa.
Seu pescoço se virou ao ouvir minha última frase. Ele me olhou nos olhos com um olhar firme. Foi aí que percebi que falei o que não devia.
- O que te falaram, Montreal? - ele disse quase entre os dentes
- Ah, nada. Deixa pra lá. Não foi nada, eu só comentei por comentar - tentei fugir, mas não funcionou
- Falaram para você que eu a obriguei a desistir da criança, não é? - o tom dele havia mudado
- Sim, mas... Eu não sei, me disseram isso e eu fui questionar e... - eu estava um pouco perdida diante da sua expressão
- Não sabe? Você foi questionar? Depois de tudo o que eu te contei e compartilhei com você, você ainda cogitou que eu tivesse... Que eu tivesse... - Enzo não conseguiu completar a frase, ele estava com os olhos molhados de lágrimas de raiva, de angústia
Eu fiquei sem reação.
- Não foi isso, Enzo, eu não, eu não sei porque eu disse isso, eu só queria entender por que dizem isso e...
- Por favor, saia da minha casa - Enzo me interrompeu
Eu fiquei sem entender se aquilo era sério.
- Como você pôde pensar isso de mim, cogitar essa possibilidade, esse rumor de gente baixa, sem caráter? Eu te contei coisas que muita gente não sabe. De todas as pessoas, Montreal, logo você? - ele levantou-se, me olhando com indignação
- Mas eu não acreditei, eu acabei de dizer que não entendo como tem gente que acha isso - eu tentei argumentar mas eu estava completamente sem palavras diante de sua expressão
- Saia, por favor. Eu preciso ficar sozinho.
Eu atendi seu pedido e saí. Do lado de fora, eu ainda estava em choque. E o choque se transformou em uma tortura pessoal dentro de mim. Por que eu fui falar aquilo? Droga, Montreal. Você em conseguiu se explicar, agora ele deve achar que você acreditou nessa história toda! Por que você sempre estraga tudo?
Isso tudo aconteceu numa segunda feira. Não houve nem um dia durante essa semana que eu não sentisse vontade de bater à sua porta e pedir perdão, mas eu achava que só iriam pioras as coisas. E, convenhamos, eu não queria deixar tudo pior do que já estava. No sábado, eu percebi que não havia falado uma palavra com ele por quase uma semana. Na verdade, eu não tinha nem o visto. Eu ainda queria me desculpar pelo o que eu falei e queria também explicar que eu não havia acreditado naquilo, mas eu estava com receio de que ele não quisesse nem olhar na minha cara. E eu que pensei que finalmente tinha conseguido uma amizade forte, dessas sem precisar pensar muito antes de falar... Acho que eu esqueci de que eu sempre arruino tudo. Acabei esbarrando sem saber em problemas antigos, em memórias que o machucava. Eu não deveria ter me envolvido nisso como me envolvi. E agora eu mal tenho coragem de bater à sua porta. Agora eu mal sei o que ele pensa de mim.
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