10. Afinal somos amigos, certo?
O tempo passou rápido demais. A quantidade de trabalhos e provas estava grande e eu estava tentando não entrar em curto-circuito com tanta preocupação em minha mente. Sr. Henke ainda passou um trabalho que eu achei extremamente chato: escolher uma cidade qualquer, que não seja turística, e fazer um guia turístico dela, visando as principais atrações de lazer, gastronomia, lojas, todas essas coisas. O objetivo era atrair pessoas àquela cidade. Eu não estava com a menor vontade de fazer isso, mas valia muito na nota, já que era o trabalho final. Ele queria testar nosso poder de persuasão e eu sabia que o meu era nulo.
Na quarta-feira, quando voltava do trabalho, exausta e com os pés machucados do patins, passei pela rua de carro e vi Charlie do lado de fora, colocando o lixo na lixeira de sua casa. Eu parei meu carro e o chamei. Eu estava adiando essa conversa há muito tempo já.
- Olá, Montreal - ele falou, ao me ver sair do carro
- Boa noite, Charlie. Será que a gente pode ter uma conversa rápida?
- Claro, não quer entrar?
- Não, é melhor aqui fora mesmo.
- Tudo bem, qual o assunto? Precisa carregar algum móvel, cortar grama?
- Não é nada disso. Quero perguntar como está Daniel. Eu encontrei com ele semanas atrás e ele ainda parecia estar bem chateado comigo.
- Ah - ele hesitou - Ele não fala muito sobre isso. Está centrado nos estudos agora. Está quase sendo aceito numa universidade.
- Que ótimo! Fico feliz em ouvir isso!
- É, ele não queria fazer faculdade, mas agora parece que resolveu sair da cidade.
- Que boas notícias, sério. Eu só queria mesmo checar se está tudo bem com ele. Da última vez que nos encontramos ele acusou uma pessoa de algo que eu acho que ela não fez e foi grosso comigo, espero que ele esteja melhor.
- Essa pessoa que ele acusou... Por acaso é o seu vizinho? Enzo Scopelli?
- Sim, por quê? - eu o olhei desconfiada
- Porque eu sei do que Daniel possa ter acusado ele. E não é de todo mentira...
- O quê? - me espantei
- Sabe, quando a mulher dele engravidou, ouvimos brigas vindas da casa deles. Ele dizia que não teriam condições de criar uma criança, que era inviável. E depois a esposa dele morreu assim, meses antes do parto... A vizinhança toda pensa que ele realmente a obrigou a abortar, só que acabou dando errado.
Eu não conseguia falar nenhuma palavra depois daquilo. Balbuciei algumas coisas sem sentido, para depois me recompor.
- Não, vocês estão enganados - falei - Ele nunca faria uma coisa dessas.
- Já faz quatro anos e ele nunca superou. Talvez seja a culpa.
- Eu mal posso acreditar que estou ouvindo isso. De Daniel eu já esperava, mas de você, Charlie? Sinceramente!
Eu voltei ao meu carro, sem ouvir mais explicações. A indignação tomou conta de mim. Não entrava na minha cabeça como alguém poderia pensar isso do Enzo. Ele amava tanto sua esposa, ainda a ama. Com raiva e dor no pé, eu cheguei em casa e me enfiei debaixo do banho, tentando me acalmar. Eu não conseguia entender como acreditavam naquela história de aborto. Era absurdo. Talvez devessem conversar com ele, porque, qualquer um que o ouvisse falando sobre o ocorrido se convenceria que aqueles boatos eram ridículos. Com a mente atordoada, eu dormi depois de uma boa xícara de chá.
◆
A sexta feira tinha chegado, para a alegria de todos. Assim que cheguei em casa, me joguei no sofá e coloquei os pés para cima. Meu mindinho esquerdo estava machucado por estar de patins praticamente o dia inteiro e eu não tinha vontade nem de subir e tomar um banho para lavar o cabelo.
Joguei meu pescoço para trás, ligando a TV em qualquer canal que me impedisse de pensar por um pouco. Só que esse pouco durou muito pouco. A campainha tocou e eu resmunguei.
- Montreal! - o ouvi me chamar e reconheci a voz
- Ah não, Enzo. Você não vai me fazer levantar para abrir a porta agora. Por que você não ligou?
- Eu moro a 20 passos daqui, você acha que eu iria gastar com telefone?
- Mão de vaca - falei e ele riu do outro lado da porta
Era comum ele aparecer à minha porta de noite. Às vezes eu achava que ele estava com saudades de sua casa antiga, às vezes eu achava que ele só precisava de uma companhia, de falar com alguém que não fosse seu cliente durante o dia. De todo modo, eu gostava dessa amizade sendo construída de forma natural. Era raro para mim.
Levantei, sentindo meus pés formigarem, e abri a porta para ele.
- Você não tem nenhuma chave antiga da casa ainda com você? Pode usá-la, eu não me importo - falei, me jogando no sofá de novo
- Isso tudo é preguiça de abrir a porta? - ele disse, se sentando ao meu lado
- Eu estou exausta, se você não notou ainda. Sexta feiras e patins e aulas chatas acabam comigo.
- Por que você não larga esse emprego? - disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo
- Porque papel fotográfico é caro - eu disse e ele riu
- Falando nisso, tudo pronto para amanhã?
- Eu já separei um vestido, se é o que você quer saber. E pode deixar, eu vou de sapato fechado para não expor o horror que estão meus pés.
- Escolha um vestido rodado e você pode falar para todo mundo que é bailarina. Todo mundo sabe o que acontece com pés de bailarina.
Eu ri de sua ideia.
- Com essa minha postura? Nunca que alguém acreditaria.
- Na verdade, eu nunca te vi de vestido. E não, esse uniforme azul horroroso aí não conta como vestido só porque tem uma saia embaixo.
- Você verá a versão feminina de mim amanhã, pode deixar - rolei meus olhos
- É bom mesmo, porque a versão garçonete tem cabelo com cheiro de gordura.
Eu abri a boca e joguei uma almofada com força em seu ombro.
- Desde quando você pensa que tem toda essa intimidade comigo?
- Desde que você sabe mais coisas de mim do que os outros sabem. E vice-versa.
Na hora que ele falou isso, o boato que rondava a vizinhança veio à minha mente. E eu sorri porque, ouvindo aquilo dele, soube que era só um boato.
- Bom, mas eu só vim aqui dizer que saio daqui às oito da manhã. Esteja pronta - ele se levantou
- Oito? Mas o casamento não é só às dez?
- Sim, mas temos uma hora de viagem pela frente.
- O quê?! - exclamei
- Eu te falei que o casamento era fora da cidade.
- Não! Você não disse!
- Tudo bem, vai tomar um banho e dormir. Te vejo amanhã!
- Enzo! - eu gritei e depois resmunguei, mas ele já tinha saído ou, no caso, fugido
Que saco. Eu não estava esperando uma viagem amanhã. Uma hora dentro de um carro com ele aflita por estar indo a um casamento de um desconhecido, que ainda espera que eu tire boas fotos, ia ser no mínimo desconfortável.
◆
Eram seis horas da manhã e eu já estava de pé. Tomei um banho e passei perfume até no cabelo. Eu não ia arriscar ficar cheirando a gordura. Coloquei o vestido que havia separado. Era um modelo não muito sofisticado, já que o casamento era de manhã, e não muito curto, justo ou decotado, já que eu iria precisar de mobilidade para as fotos. As alças grossas se cruzavam sobre o decote nas costas e ele marcava minha cintura. Era levemente rodado, mas não armado, e coral claro, nada que chamasse muito a atenção. Geralmente gosto de vestidos pretos, mas já ouvi falar que não é muito elegante ir a casamentos vestindo preto, ainda mais de dia. Apesar da dor, coloquei um band-aid em meus dedinhos e coloquei meu sapato, com salto não muito alto ou fino e as pontas arredondadas. Prendi meu cabelo sem dar muita atenção em um coque, deixando alguns fios ondulados escaparem. Estava terminando a maquiagem discreta quando ouvi a buzina lá fora.
Desci as escadas, pegando a bolsa com a câmera, minhas lentes e três rolos de filme e colocando sua alça em meu ombro. Fechei a porta de casa e entrei em seu carro.
- Bom dia, versão feminina da minha vizinha com nome canadense - ele falou, divertido, ao volante
- Bom dia - eu respondi com um sorriso, mas rolei os olhos
- Pode deixar suas coisas no banco traseiro.
Virei meu corpo, colocando minha bolsa no chão, atrás de meu banco, para que ela não corresse risco de cair. Vi seu paletó do terno pendurado em uma das portas. Voltei meu corpo para frente, vendo que ele estava com uma camisa branca, simples, de manga comprida, porém esta estava em seus cotovelos. Uma calça social preta e uma gravata aberta em volta do pescoço. Eu secretamente desejei que o tempo que eu analisara seu corpo não tivesse sido reparado por ele.
- Dormiu bem? - ele perguntou, já acelerando o carro
- Bem pouco, você quer dizer.
- Não reclama, eu já tive que fazer essa viagem uma vez hoje e voltei para te buscar.
- Por que você foi lá?
- Para ajudar no buffet. Eu te falei que eles encomendaram meu serviço?
- Você fez tudo? - eu perguntei, entendendo agora porque eu mal tinha o visto essa semana
- Tudo doce que tiver lá - ele falou, num sorriso orgulhoso
- Pelo menos você sabe o que está fazendo.
- Não fique nervosa - ele disse, reparando minha apreensão - Você vai se sair bem. Eu também me senti assim quando tive minha primeira encomenda.
- Mas pelo menos você pode provar antes o que faz. Eu só tenho uma chance.
- Fica calma - ele disse isso tirando a mão direita do volante e colocando-a sobre minha coxa rapidamente
Aquilo só me deixou mais nervosa. Ele, percebendo meu desconforto, ligou o rádio e procurou por alguma estação. Eu relaxei um pouco, já que ele tinha escolhido uma rádio boa.
Durante o caminho, ele me contou um pouco sobre esse seu amigo que iria casar. Ele e Enzo eram bem próximos anos atrás. E pelo visto esse amigo foi o amigo em comum pelo qual ele e Catherine se conheceram. "Só que ele mudou para essa cidade a uma hora de distância por causa do trabalho e conheceu sua noiva lá. Não a conheço muito bem", Enzo disse. A história de seu círculo de amizades fluiu com facilidade naquela hora, até que ele resolveu fazer uma pergunta.
- E seus amigos? Como são? Nunca vi nenhum te visitar.
Ele havia cutucado uma ferida antiga.
- Ah... Eu não tenho muitos amigos - não sei o por quê, mas não consegui mentir para ele
Ele ficou calado. Com certeza tinha entendido que eu era nada mais que uma solitária na vida, que nunca conseguiu manter intimidade com ninguém. E era exatamente isso que eu era. Sempre invejei grupo de amigos de longa datas, porque era algo que eu nunca tive. Eu nunca soube me relacionar bem com alguém ao ponto de que ligações na madrugada para pedir conselhos fossem consideradas normais.
- E aquela garçonete amiga sua?
- O que tem ela? - perguntei, com medo de que ele afirmasse que eu tinha pelo menos uma amiga, já que Karina era apenas uma colega de trabalho que falava demais
- Ela continua afim de mim? - ele riu e eu senti alívio com aquela brincadeira
- Acho que ela desistiu - eu ri - Mas a única coisa que Karina quer é não ficar "para titia". Ela atira para todos os lados. Nada pessoal.
- Minha auto-confiança foi ralo abaixo agora, obrigado.
- Você tem mesmo que parar de ser tão convencido - eu brinquei
Ele passou a mão pelo cabelo, rindo. Olhei para a janela, pensando em como era deprimente que ele soubesse que não tenho amigos próximos e que Karina era a única pessoa com a qual eu mais falava, mas só porque ela gostava mais de fofocar do que realmente trabalhar.
Não fiquem com pena de mim, eu nunca fui uma isolada, sem amigos, e ninguém me ama, ninguém me quer, nada disso. Eu apenas não conseguia me abrir, não conseguia manter uma amizade porque, para mim, eu sempre estava incomodando alguém com a minha chatisse. Eu também tinha medo de ser julgada pelas minhas decisões caso eu me abrisse. Eu não queria que ninguém me convencesse do contrário.
- Chegamos! - ele disse
Eu olhei pela janela, era um sítio, com um gramado bem cuidado, flores e uma piscina. Logo que saímos do carro, pude ver as fileiras de cadeiras brancas e um púlpito, que estava bem abaixo de um arco branco coberto de flores amarelas. Era de extremo bom gosto.
Enzo pegou seu paletó e me entregou a bolsa da minha câmera.
- Vamos, ainda são nove e meia. Quero te apresentar para algumas pessoas.
Eu concordei com a cabeça, o seguindo. Nós nos aproximamos de dois homens, também de terno, segurando um coquetel nas mãos.
- Já bebendo? São nove da manhã! - Enzo falou e os fez rir
Eu fiquei esperando ser apresentada, até que um deles olhou para mim e cobrou a apresentação com os olhos.
- Ah, essa é a Montreal, a minha vizinha fotógrafa de quem eu falei.
Eu fiquei imaginando o que ele havia falado de mim para esses dois.
- Montreal, esses são Bernardo e Nathan.
- Olá - um deles disse e eu estava prestes a acenar com a mão quando ele veio para um abraço
Fiquei sem jeito, mas retribuí. O outro fez o mesmo.
- Montreal? Nome diferente! - um deles, acho que Bernardo, disse
- Estou acostumada a ter essa reação das pessoas quando digo meu nome - eu comentei
- Fred já chegou? - Enzo perguntou
- Não, espero que ele tenha se recuperado da despedida de solteiro, senão não vai ter casamento. Você devia ter ido, cara!
Com essa frase eu concluí que Fred era o noivo. E concluí também que Enzo dispensara a despedida de solteiro do amigo.
- Vocês sabem que eu tive que trabalhar. Falando nisso, preciso ver se está tudo certo. Montreal, me acompanha?
- Claro! - falei, me despedindo dos outros com um sorriso e o seguindo
Estávamos indo à uma parte coberta na qual estava uma grande mesa decorada.
- Eles parecem legais - eu comentei
- Sim, são gente boa. Só não fique sozinha perto deles, ainda mais quando estão bebendo.
- O quê? - eu realmente me assustei
- É brincadeira. É que eu percebi que eles estavam te olhando.
- Eu não vi nada. Foi super normal.
- Vocês mulheres nunca vêem - ele riu e eu o repreendi, também rindo
Chegamos à mesa e Enzo conferiu se estava tudo em ordem. Achei tudo muito bonito e bem feito, como tudo o que ele faz.
- Você fez o bolo principal também? Esse com o novinho e a noivinha? - perguntei
- Sim. E esse me deu trabalho. Três andares, massa de baunilha com recheio cremoso e cobertura açucarada com direito a chantilly.
Eu amava o jeito com o qual ele falava das coisas que fazia. As palavras adquiriam uma emoção nova.
- Está muito bonito!
- Espere para prová-lo! - ele sorriu - Eu vou ter que ir ali dentro na cozinha, tem problema te deixar sozinha aqui por um momento?
- Não, pode ir. Eu aproveito e vou tirando umas fotos.
Ele saiu, apressado e preocupado com cada detalhe, era óbvio em seu semblante. Eu saquei minha câmera, rodando o filme e ajustando o foco para uma foto do bolo. Quando tirei a foto, uma moça do meu lado me chamou.
- Você poderia tirar uma foto nossa? - ela disse, ao lado de outras
Eu concordei, apesar do fato de estar ali para fotos mais artísticas. Eu estava nervosa e tive que controlar minha mão para que ela parasse de tremer, já que a foto ia sair horrível se eu continuasse daquele jeito.
Assim que tirei, elas vieram até mim, me pedindo para ver a foto. Senti um pouco de decepção por parte delas quando disse que a câmera era analógica e isso me deixou muito mais apreensiva.
Enzo voltou e eu fiquei aliviada.
- Já te pediram fotos, é? - ele brincou
- Que bom que você chegou, eu não queria gastar mais uma pose do filme com aquelas meninas.
- Relaxa, tira foto do que você achar interessante - ele falou, colocando suas mãos sobre meu ombro
Eu respirei fundo. Não estava aguentando o nervosismo.
- Enzo! - ouvi uma voz feminina o cumprimentar - Como vai, meu filho? Há quanto tempo!
Era uma mulher mais velha, muito bem vestida.
- Está tudo bem, Carmen. E você? Está emocionada em ver seu filho casando? - ele falou no meio do abraço dos dois
- Estou é feliz! Não achava que Fred casaria um dia, você sabe como ele é! Mas parece que essa mulher realmente conseguiu prender o coração dele! - ela disse, com humor, e olhou para mim - E vejo que você está acompanhado.
- Ah sim, Montreal, Carmen. Carmen, Montreal. Ela veio tirar algumas fotos.
Eu a cumprimentei.
- Ah, Montreal! Tenho saudades de lá! Foi uma das melhores viagens que já fiz - ela sorriu a mim - Vocês estão juntos?
Aquela pergunta nos pegou de surpresa e ela esperava uma resposta.
- Somos amigos - ele respondeu, sorrindo a mim
- Você precisa achar alguém que te faça tão feliz quanto Catherine, rapaz.
- Por favor, não vamos falar sobre isso. É o casamento do seu filho, que pelo visto está atrasado.
- Típico! Vou lá dentro acalmar a noiva. Estou torcendo por vocês.
Acho que eu devo ter ficado vermelha depois da última frase que ela disse. Carmen sorriu a nós e saiu. Enzo parecia envergonhado também.
- Não ligue, ela é uma segunda mãe para mim, é o jeito dela - ele disse a mim, mas olhando ao chão
- Tudo bem, Enzo. Não tem problema. Mas eu também acho que você merece ser feliz. Por que não foi na despedida de solteiro se divertir ontem?
- Eu tinha que trabalhar nas encomendas. E eu já estou muito velho para a programação que eles fizeram.
- Eu mal vou perguntar qual era a programação - eu disse rindo, mas ele ainda estava sem jeito - Bernardo e Nathan também são amigos de infância?
- Nathan sim. Bernardo de faculdade. Acabou entrando para a turma também.
- Faculdade? Ele também é confeiteiro?
Enzo chacoalhou a cabeça.
- Você não é a única que escolheu de primeira uma faculdade que odeia.
Ele piscou, eu fiquei curiosa.
- O noivo chegou! - ouvimos alguém gritar, acho que Nathan
Depois disso, as pessoas começaram a se sentar nas cadeiras brancas. Enzo pelo visto ia ser padrinho então me deixou sozinha mais uma vez enquanto se preparava. Peguei minha câmera de novo e comecei a tirar algumas fotos discretas. Eu agradeci por ter algo para fazer e assim disfarçar que eu estava completamente deslocada naquele lugar, já que não conhecia ninguém. A marcha nupcial começou a tocar e eu me sentei. Não estava me sentindo confortável para ficar em pé ou ficar em uma posição boa para fotos, afinal, já havia outro fotógrafo ali e eu sentia que iria incomodá-lo com meu amadorismo. Então eu me sentei do lado do corredor por onde a noiva entraria, mas praticamente na última fileira de cadeiras.
Eu conseguia ver Enzo lá na frente, perto do noivo, que parecia apreensivo. Uma menininha de uns cinco anos estreiou o corredor, deixando pétalas de rosas caírem pelo caminho. Depois disso, todos se levantaram para ver a noiva passar. Ela usava um vestido simples, nada com muito brilho por ser de manhã, mas com uma cauda imensa. Seus cabelos loiros estavam presos e ela segurava um buque que combinava com a decoração. Eu, discretamente, esperei um meio sorriso sair da boca dela e tirei uma foto. Ela parecia extremamente nervosa com todos os olharem voltados a si. Quando ela passou por mim, ficando de costas, aproveitei e tirei outra foto.
Porém, algo engraçado aconteceu durante os votos. Ouvi o nome de Enzo sendo pronunciado pelas garotas à minha frente.
- Aquele ali não é o Enzo? Ele continua bonito, não? - uma delas disse, olhando-o lá na frente
- Bonito e viúvo - a outra disse
- Isso já faz tempo, né? Dizem que ele nunca se envolveu com mais ninguém.
- Mas e a garota que ele trouxe hoje? Quem é?
- Dizem que é só amiga. Que veio para tirar fotos.
- Estranho. Já tem um fotógrafo. E quem chama alguém para tirar fotos num casamento quando já tem um? Acho que ele queria mesmo era não vir desacompanhado - a outra cochichou
Eu segurei meu riso e minha atenção voltou à cerimônia enquanto elas ainda estavam fofocando. Eu quase havia perdido o momento das alianças. Porém, quando disparei o obturador outra vez, o barulho fez com que elas virassem para trás e me notassem. Eu sorri, como se não tivesse ouvido nada.
A cerimônia foi rápida e bonita. Confesso que nunca gostei muito de casamentos, ainda mais de gente que eu mal conhecia, mas aquele foi agradável. Eu tirei algumas fotos quando achava que deveria então isso me distraiu um pouco.
Depois da famosa frase "pode beijar a noiva", eles saíram em meio a aplausos e assobios e foram direto para a mesa do bolo, cortando-o e conversando com quem ia parabenizá-los. Eu continuava com a câmera na mão, esperando momentos certos e disfarçando estar me sentindo alheia a tudo aquilo.
- Você não para de tirar fotos, não? - ouvi a voz de Enzo atrás de mim
- Já estou na metade do segundo filme - disse, sorrindo
- A noiva vai jogar o buquê daqui a pouco. Se prepare.
- Me preparar? - eu estranhei
- Sim, ué! Para tirar fotos!
- Ah, claro - por um minuto pensei que ele quisesse que eu pegasse o buquê
E, minutos depois, lá estava eu, com o dedo pronto para clicar o momento do buquê voando. Eu estava mais atrás, vendo todas as solteiras desesperadas lá na frente. Depois de um pouco de charme por parte da noiva, fingindo jogar mas não o jogando, o buquê voou pelos ares e eu consegui algumas fotos. Só que o buquê caiu do meu lado, atingindo os pés de uma moça.
Ela pegou o buquê do chão, confusa, e eu aproveitei sua proximidade para fotografá-la. Eu ainda estava tímida com a câmera. Não era algo normal fotografar assim, tão explicitamente, ainda mais fotografar outras pessoas.
- Uau. Isso foi irônico - Enzo comentou, chegando perto de mim, enquanto rodeavam a coitada como se ela tivesse ganhado na loteria
- Por quê?
- Lembra que, no carro, eu falei sobre meus antigos amigos de infância? Essa que pegou o buquê é a Susan. A que sempre diz que não acredita em amor.
Eu ri com aquilo, entendendo naquele momento a expressão dela ao ver o buquê em seus pés. Era extremamente irônico.
- Ela deve pensar que seus pais terem se conhecido foi sorte também - ele me alfinetou
- Há. Muito engraçado.
- Cuidado, um dia pode ser você.
Ele piscou a mim e eu fiquei encabulada, sem entender o que ele disse com isso. Para meu alívio, alguém o chamou e ele me deixou sozinha de novo, fotografando Susan e me convencendo de que não éramos tão parecidas assim, pelo menos não pelas histórias que eu ouvira no carro.
Mais algumas fotos ali e aqui, algumas apresentações e alguns momentos de deslocamento de minha parte e as pessoas estavam começando a ir embora. Nós, na verdade Enzo, nos despedimos dos noivos e fomos em direção ao carro.
- Gostou? Não foi tão chato assim, foi? - ele perguntou, já ao volante
- Não, não foi. O bolo estava ótimo, parabéns.
- Que isso, era um bolo normal - ele ficou sem jeito - Se quiser eu faço uma versão menor para você.
- Eu adoraria.
Enquanto ele saía do sítio, eu voltei à minha realidade. Pensei em todas as minhas responsabilidades que eu havia deixado de lado. E, com isso, tive uma ideia.
- Você tem algo para fazer agora? - perguntei
- Não, por quê?
- Podemos dar uma volta por essa cidade? Eu nunca vim aqui e seria bom para um trabalho que eu tenho que fazer.
- Mas é claro - ele concordou, sorrindo e dirigindo em direção ao centro
- Falando nisso... Me explica melhor essa história de eu não ser a única que escolheu uma faculdade que odeia.
Ele me olhou, segurando um riso.
- Eu não fiz faculdade de gastronomia ou culinária, Montreal. Eu também insisti em algo que eu percebi que odiava, eu também fiquei anos aturando aulas que eu achava completamente tediosas.
- Sério? Qual foi o curso?
- Engenharia Civil - ele mesmo disse estas palavras em tom de deboche
- Não! Sério? - eu acabei rindo
- Me ajudou a calcular a estrutura precisa para um bolo de várias camadas diferentes - disse rindo - Mas, acredite, não dá pra fugir quando você tem um talento... Eu até diria "vocação" se não ficasse muito forçado.
Eu suspirei mais forte. Eu entendi a indireta a mim.
Ficamos passeando pela cidade. Eu pedia a ele para que parasse o carro e deixasse tirar uma foto toda vez que eu via algo interessante. Nós conversávamos sobre tudo e aquilo fez o tempo passar rápido. O sol já estava se pondo quando decidimos parar na praça principal da cidade e comer algo.
- Obrigada por ter vindo - ele disse, enquanto caminhávamos
Eu engoli o sorvete que estava comendo, tirando a colher de minha boca e falando que ele não precisava agradecer.
- Foi bem divertido. E eu ainda não precisei trabalhar - eu brinquei
- É que... Todas essas pessoas e essa situação. Tudo me faz lembrar demais dela. Eu não sei se conseguiria passar por isso tudo sozinho.
- Sempre que precisar, é só me chamar - eu sorri, com medo de ter me oferecido demais com essa frase
Contudo, ele me lembrou nos momentos seguintes que era nada mais que um erro eu estar me apaixonando por ele.
- Eu tenho medo de esquecê-la. Tenho medo de esquecer todos nossos momentos juntos, me esquecer do jeito que ela me olhava, me esquecer de sua voz. Eu quero parar de me torturar lembrando dela todo dia, mas tenho medo de esquecer.
Eu fiquei calada. Eu não tinha o que falar perante àquilo. Eu nunca tinha o que falar quando esse era o assunto.
- Desculpa estar falando isso para você, mas eu me sinto confortável para falar essas coisas ao seu lado.
Eu corei.
- Eu também me sinto confortável com você - admiti - Afinal, somos amigos, certo?
Aquilo arrancou dele um sorriso de lado.
- Não vai tirar foto disso? - ele se referiu a uma escultura que havia no meio da praça
- Boa ideia! - eu disse, sacando a câmera
Voltamos à nossa vizinhança depois de uma viagem um pouco silenciosa e já era noite. Ele parou em frente à minha casa e eu falei que não precisava, que ele poderia ter ido direto à sua garagem e eu daria os vinte passos até minha porta da frente, mas ele insistiu.
- Obrigado mais uma vez - ele disse enquanto eu tirava o cinto de segurança
- Não há de quê - eu sorri, sem perceber que ele estava próximo demais de mim
A ponta de seus dedos foi ao meu queixo e, durante alguns segundos, percebi que ele estava dividido entre fazer ou não algo. Eu esperei alguma ação da parte dele e o que eu recebi depois daqueles segundos foi um beijo no rosto. Sorri e saí do carro. Estava tudo confuso demais.
Eu estava nervosa, meu coração pulava e eu me culpava. Abri a porta brigando comigo mesma. Eu estava apaixonada por ele, era óbvio, mas não queria estar. Talvez porque Catherine vai ser sempre sua primeira opção, talvez porque ele nunca vai se permitir apaixonar por outra pessoa e eu vou sofrer com um sentimento inútil e não correspondido dentro de mim. Ou talvez porque toda vez que eu começava a sentir algo por alguém, eu reprimia esse sentimento por puro medo.
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