Parte III - Reis e faraós
Mesmo com o controle do cavalo retomado, Luís observava os arredores constantemente conforme avançavam, esperando pelo próximo ataque. Ele e Sofia ficaram alguns minutos sem conseguir falar, em uma mistura de incredulidade e medo. O gato caminhou entre eles e Luís chegou a acariciá-lo por poucos segundos. Não conseguiria explicar como era encostar naquilo, ao mesmo tempo físico e algo vazio, como agarrar em fumaça. Luís tirou imediatamente sua mão esquerda do suposto felino e a recolocou na rédea.
- Tem algo de errado com esses objetos - disse - Como aquele inglês conseguiu isso?
A identidade do britânico que ofereceu os ítens ao museu permanecia uma incógnita. Usando cartas anônimas, marcara seu encontro com a dupla no porto para tarde da noite como se tentasse fugir de algo. Veio acompanhado apenas de um empregado para carregar as caixas e traduzir suas falas para o português e nenhum dos dois revelou sue nome. O superintendente prometeu que um representante estaria na frente do museu com o pagamento. Sofia e Luís já trabalhavam no museu há pouco mais de um mês, mas essa era a primeira vez que tinham a missão de transpotar o acervo e foi totalmente diferente da prática que os funcionários mais antigos descreveram. Não fossem as necessidades financeiras e a ameaça da expulsão batendo espreitando como as assombrações que acompanhavam as relíquias, nenhum dos dois aceitaria a negociação. Tudo estava errado desde o início.
Luís tentou não se distrair do caminho. Estavam chegando perto do museu. Quando olhou para trás, viu a imigrante percorrendo os olhos pelas caixas. Haviam inscrições nelas sobre as relíquias e os locais de onde foram retiradas, mas a dupla não havia considerado essas informações importantes até então.
- O que está lendo, Sofia?
- A estátua do gato não é uma estátua normal - ela apontou para as inscrições - Tem uma múmia dentro dela. Foi tirada de uma tumba no Egito.
Luís virou-se para frente arrepiado. O pouco que sabia sobre o Egito enquanto era escravizado vinha da história de Moisés na Bíblia. Foi nos jornais que vendia onde aprendeu sobre os sarcófagos de faraós sendo descobertos em escavações, artefatos milenares vendidos por ladrões de tumbas e a insana egiptomania elite europeia. Haviam chás com cinzas de múmia, louça e mobília com decoração egípcia, festas da realeza para abrir múmias. Uma das matérias que mais marcaram Luís foi sobre a múmia particular de Dom Pedro II que havia sido retirada do palácio imperial com a Proclamação da República. Relatos diziam que o monarca conversava com o sarcófago, como se a sacerdotisa morta há milhares de anos pudesse o respondesse e ninguém mais pudesse ouvir. Também leu sobre o costume dos egípcios de mumificar animais, de gatos a crocodilos.
- Sofia, e a caixa com as... você sabe... mãos?
- Quase nada escrito. Só um nome. "Henry Morton Stanley".
- Esse nome não me é estranho. Acho que li nos jornais.
- Também lembro de ter ouvido isso do Gennaro. Será que é o inglês do porto?
- Talvez. E as outras caixas?
- Na da estátua de ouro está escrito "Camboja". "Buda" também. A trombeta de barro, "Austrália". É a maior caixa. Tem algum nome nela. "Did"... "dije"... O que é isso?
O gato ou seja lá o que fosse aquela coisa deitou-se enrolado à sua direita e Luís tinha vontade de jogá-lo para fora da carroça. Era difícil se concentrar em Sofia, observar os arredores e tentar lembrar de onde lera sobre Stanley, tudo isso com sono e medo. Seus olhos estavam quase fechando quando foi desperto por mais uma presença incomum.
Sob a luz dos postes, sentou-se um adolescente baixo e de cabeça raspada coberto com túnicas vermelhas. De olhos fechados, pernas cruzadas e as mãos sobre os joelhos, trazia paz em seu semblante, mas sua presença repentina perturbou ainda mais Luís, que ficou paralisado o encarando. O garoto Parecia entoar algum cântico baixo o bastante para se confundir com o vento, os barulhos de animais noturnos e dos cascos do cavalo. Se estivesse realmente vocalizando, fazia apenas com a garganta, sem abrir a boca. Quando a carroça já estava se afastando e Luís deu um último olhar de relance para o rapaz, seu corpo gelou. Daquela perspectiva, era possível ver um buraco de bala pingando sangue na lateral da cabeça dele, o vermelho vivo brilhando com a tênue luz do poste.
Luís olhou rapidamente para Sofia. Podia saber pelos seus olhos: ela também viu aquilo. Assim como o jovem entoava mantras sagrados, os dois rezaram baixinho ininterruptamente conforme se afastavam. Eles sabiam que os objetos estavam trazendo pessoas e animais de volta dos mortos. Luís se perguntou novamente até onde iria pelo dinheiro impediria sua a expulsão do cortiço. Não conseguia mais julgar seu colega pelos crimes que cometeu. Os pensamentos foram interrompidos novamente, mas por uma voz bem mais familiar. Era aquele sotaque de novo.
"Devolva!"
- Eles nos alcançaram - disse Sofia.
O gato se levantou com o acelerar da carroça e o jovem baleado se afastava cada vez mais. Ao fazer o cavalo correr, Luís não imaginava que, na verdade, estava se aproximando da ameaça. Numa virada de esquina, em meio às casas com portões e janelas fechadas, uma figura veio correndo em direção à luz, afugentando algumas galinhas e pombos. Dessa vez, ele não era mais feito de sombras. Era como se as assombrações se tornassem mais nítidas com o passar do tempo, começando indefinidas e tomando forma. Seu corpo era muito mais nítido, com a pele negra como a de Luís coberta de cicatrizes e o rosto expressando ao mesmo tempo ódio e tristeza. Na ponta de seus braços unidos por correntes, algo saltou aos olhos de Luís: ele não possuía mãos.
"A caixa do Morton Stanley", pensou.
- Vocês tem algo que nos pertence - disse o homem em português, com aquela mesma voz e sotaque - Aqueles homens invadiram nossa terra e tiraram tudo o que nós tínhamos. Estamos cansados de sofrer até depois da morte. Queremos nossas mãos de volta.
996 palavras
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