Parte 7
Depois das duas da manhã, apenas vá dormir.
As decisões tomadas depois desse horário são as decisões erradas.
Ted Mosby (How I Met Your Mother)
Narração: Henrique
Em uma noite chuvosa, um grupo de jovens segue em direção a floresta. As nuvens carregadas fazem com que o céu pareça assombrado por um tom púrpura e o vento uiva por entre as árvores. Dentro do carro, no entanto, o som da música e das risadas mascara o clima de terror que permeia a estrada.
É nesse momento do filme de terror que você pensa "Por que raios esses idiotas acharam que seria uma boa ideia ir para uma festa no meio do mato, na semana do Halloween?".
Como um dos idiotas dentro do carro, posso afirmar que nem todos nós achávamos aquela uma grande ideia. Além disso, já era um tanto perturbador que um de nós estivesse agindo como se estivesse possuído. Quero dizer, eu podia estar sofrendo algum tipo de alucinação, mas posso jurar que eu havia visto Carina ser legal com Petrus.
Havia sido assustador.
- Só para constar... - Petrus, que dirigia ao meu lado, aproveitou a distração de Carina e Bianca, que haviam iniciado uma animada conversa sobre o filme que acabáramos de ver, e chamou a minha atenção com um sussurro - Ela realmente me agradeceu pela ração?
Petrus parecia completamente atônito e, pelo seu tom, eu pude perceber que ele ainda não acreditava nas próprias palavras.
- Ela realmente te agradeceu pela ração. - eu o assegurei.
Petrus semicerrou os olhos, confuso.
- Isso é algo bom, certo? - perguntei, tentando seguir um raciocínio lógico - Você fez uma gentileza, ela agradeceu. Como pessoas normais.
Normais. Eu nunca achei que usaria tal termo para descrever Petrus e Carina.
O meu amigo parecia ainda mais incomodado com aquilo.
- Eu não sei. - Petrus franziu o cenho, sem desviar o olhar da direção - Ela me tratando normalmente, isso parece apenas... errado.
Estava escuro dentro do carro então eu não podia ter uma boa visão de sua expressão, mas eu poderia jurar que Petrus soava angustiado diante de tal perspectiva. E, aparentemente, eu estava certo pois, desde o primeiro segundo que chegamos a festa, ele pareceu disposto a restaurar a ordem natural das coisas.
- Vocês dois. - falou, apontando para mim e Bianca assim que saímos do carro - Tentem ficar sóbrios. - pediu, apontando para as sacolas de bebida que tínhamos aproveitado para comprar quando visitamos o mercado em busca de pipoca.
Em seguida, virou para Carina com um sorriso presunçoso.
- E você, tente não quebrar a janela de nenhum carro. - provocou ele - Ao menos durante as primeiras horas de festa.
Pude sentir Bianca segurar o ar em seus pulmões, antecipando a explosão da irmã. Carina, no entanto, apenas sorriu levemente.
- Farei o meu melhor. - respondeu, passando direto pelo garoto - Embora não possa prometer nada.
Petrus permaneceu congelado em seu lugar, boquiaberto. Quando finalmente pareceu se recuperar do choque, seguiu no encalço de Carina, indo na direção por onde uma batida animada eclodia por entre as árvores.
- Ele não parece feliz. - comentei com Bianca, observando os dois desaparecerem na mata.
Bianca sorriu para mim e seus olhos brilharam com uma felicidade incontida.
- Petrus está com medo. - ela respondeu e havia animação em sua voz - Porque o fato de Carina estar o tratando normalmente, ou ao menos o mais normalmente que a minha irmã consegue tratar qualquer pessoa, pode significar que ela está superando todo o passado entre os dois.
Não tentei esconder a curiosidade na minha expressão. Era claro que havia um passado nebuloso, eu sempre imaginara isso. No entanto, era interessante ter minhas teorias confirmadas. Tive de me conter para não perguntar detalhes, pois estava claro nas feições de Bianca que ela não trairia a confiança da irmã me contando o que exatamente ocorrera entre os dois.
- Mas isso não seria algo bom? - eu perguntei enfim.
Bianca negou com um aceno. Havia certa sabedoria naquele gesto.
- Seria algo bom. - seu tom de voz era leve - A não ser que ele não esteja disposto a superar nada.
**
Tudo com Bianca fluía de uma forma tão natural que mal parecia verdade. Baseado na minha - limitada e fictícia - experiência com romances, isso tudo não deveria ser assim tão fácil. Quero dizer, você já assistiu a um filme onde os personagens se conhecem, se apaixonam e apenas vivem felizes para sempre? Eu duvido muito.
Então eu provavelmente estava apenas imaginando coisas.
Não que Bianca não fosse uma garota incrível, porque ela era. E, novamente, não que eu não estivesse cada vez mais envolvido com ela, porque eu definitivamente estava. O que estou dizendo é que simplesmente não fazia sentido ela estar correspondendo a qualquer um dos meus sentimentos.
- Você quer dançar? - ela perguntou interrompendo meus devaneios, enquanto estávamos sentados ao redor de uma fogueira no meio da clareira.
Porque é claro que havia uma fogueira. E uma clareira. E provavelmente um assassino psicótico vagando com uma serra elétrica para completar o clichê.
Nossa faculdade ficava a poucos minutos de uma reserva militar, onde a mata era densa e fechada, exceto pela trilha que nos trouxera até a clareira onde ocorria a suposta festa. Talvez pelo espaço limitado do lugar, ou porque o restante dos convidados tinha um senso de discernimento melhor do que o nosso, havia poucas pessoas presentes. O que fazia com que o calor do fogo e o ritmo da música provocasse uma atmosfera íntima e acolhedora. Isso se você conseguisse esquecer que estava no meio de uma floresta enquanto uma tempestade se formava no céu, é claro.
Ah, e que, eu podia apostar nisso, nós não tínhamos permissão para estar ali.
- Tudo bem se não quiser... - Bianca pareceu entender meu silêncio contemplativo como recusa e se afastou alguns centímetros do lugar onde estava sentada ao meu lado.
Em um movimento quase involuntário, capturei sua mão na minha. E meio que perdi o ar ao perceber o quão corretamente nossas mãos se encaixavam.
Talvez, apenas talvez, eu pudesse estar errado.
Talvez alguns romances pudessem ser simples e descomplicados.
- Eu quero. - respondi, ainda que tardiamente - Eu adoraria dançar com você.
**
É de conhecimento geral que as árvores, devido a sua altura, frequentemente acabam atingidas por raios. O que poucos sabem, no entanto, é que a altura não é o único fator que proporciona essas ocorrências. A composição das árvores, que contém água e sais minerais - elementos condutores de eletricidade -, também faz com que o raio seja atraído por elas. Eu li em algum lugar que se, por exemplo, você posicionar no chão durante uma tempestade uma vara enorme de madeira, mais alta do que uma árvore, ainda assim o raio recairá sobre a árvore uma vez que a madeira sozinha é um material isolante.
Por mais interessante que isso possa soar, esse não é o melhor fato a se relembrar quando se está cercado por árvores e um trovão ecoa no céu. No entanto, por incrível que pareça, aquele não era o assunto mais assustador com o qual tínhamos que lidar naquela noite.
- Ei, Bianca, você sabe o que deu na sua irmã? - Gael e Lena se aproximaram sentando-se no chão a nossa frente - Eu juro que ouvi ela pedir licença para Petrus.
Naquela altura da noite, já havíamos parado de dançar - acontece que, ainda que as coisas com Bianca ocorressem de forma natural e descomplicada, isso ainda não fazia de mim um bom dançarino - e estávamos sentados conversando amenidades.
- Isso não foi nada. - Lena retrucou, rindo do comentário do namorado - Hoje Petrus trouxe ração para o gato. E a Carina agradeceu.
- Se estamos listando ocorrências estranhas. - eu entrei na brincadeira - Ontem ela buscou café para ele enquanto trabalhávamos. E sequer derramou em seu colo.
- O que quer que tenha dado na minha irmã, Petrus está odiando cada momento. - Bianca por fim se pronunciou, observando os dois que pareciam discutir enquanto pegavam bebidas - Ele está fazendo um esforço extra para tirá-la do sério.
Gael riu, puxando a namorada para mais perto de si.
- Quem sabe ela não notou finalmente que tem sentimentos por ele? - Lena sugeriu, com um brilho romântico no olhar.
- Por que ele lhe comprou ração de gato? - Gael ergueu uma das sobrancelhas, olhando para a ruiva em seus braços com uma careta debochada - Quem dera tivesse sido fácil assim com você.
- Do que você está falando? Eu tive que, literalmente, pagar você para sair comigo. - ela ergueu o corpo para longe do abraço, indignada.
Ao meu lado, vi Bianca esfregar as mãos em uma tentativa de aquecê-las. Já se aproximava das duas da manhã e a temperatura havia caído drasticamente. Em um impulso protetor, envolvi suas mãos nas minhas e admirei a forma como seus dedos, pequenos e delicados, desapareciam quando em comparação aos meus.
- Mas o que eu vi... - Gael continuava a implicar com Lena - E o que eu ouvi durante aqueles jantares com os seus pais. - ele balançou a cabeça, como se estivesse vivenciando tudo novamente - Só o amor faz com que alguém sobreviva àquilo.
Lena empurrou Gael com os ombros.
- Você levou quase todos os meus cupons de descontos da livraria. - acusou ela.
Por fim, Gael deu de ombros enquanto ria.
- Um homem tem que se dar ao valor. - respondeu presunçoso.
O piercing em sua sobrancelha brilhava em vermelho diante da fogueira e as tatuagens em seus braços pareciam se mover expostas a iluminação das chamas. Se realmente houvesse algum maníaco escondido nas matas, ao menos nós tínhamos o aspecto ameaçador de Gael ao nosso favor.
- Escutem só, eu tenho uma teoria. - Petrus voltou para perto de nós, na companhia de Carina e de uma cerveja long neck - Onde está o Douglas? Ele adoraria ouvir minha teoria sobre o súbito bom humor de Carina.
Pelo que eu ouvira as meninas comentando algumas horas antes, Douglas tivera que sair mais cedo pois ainda teria que pegar a estrada para chegar em casa. Mas Petrus não esperou o tempo necessário para que alguém lhe explicasse isso.
- Acho que isso tudo tem a ver com aquele estudante de medicina. - ele usava a garrafa para gesticular na direção de Carina - Alan, não é isso?
Carina fechou as mãos em punho e eu podia praticamente ouvir sua voz em minha mente, respondendo o quão absurdo era atrelar inexoravelmente a alegria de uma mulher a presença de um homem em sua vida. Sua voz na vida real, entretanto, soou bem mais calma do que em minha imaginação.
- Ele faz medicina? - perguntou ela, parecendo apenas um pouco curiosa sobre como Petrus conhecia aquele fato - Não sabia.
- É claro que não. - o sorriso de Petrus era de escárnio - Não é como se vocês tivessem tido tempo de se conhecer durante os cinco minutos que se passaram entre você quebrar o carro dele e ele convidá-la para sair.
Certo. Carina podia estar conseguindo manter toda essa vibe Gandhi até o momento, mas eu não estava disposto a estar por perto quando a verdadeira personalidade da garota - que agora parecia estar entrando em ebulição - decidisse vir a tona. Todos ao redor pareceram pensar o mesmo pois, assim como eu, começaram a se afastar discretamente.
Os olhos de Carina faiscavam de ódio, mas ela ainda foi capaz de se conter por mais algumas frases.
- Agora você está sendo apenas desnecessariamente desagradável, Petrus. - ela observou com calma, mas sua voz soava estrangulada.
Para a minha surpresa, foi Petrus o primeiro a perder a paciência.
- Desnecessariamente desagradável? - ele praticamente rosnou aquelas palavras como se, entre todos os absurdos e ofensas que já havia escutado de Carina, aquilo fosse o pior de tudo - O que está acontecendo com você?
Confesso que tive que editar alguns palavrões na última sentença de forma a manter isso aqui um conteúdo apropriado para menores. Carina, no entanto - que não ouvira a versão editada -, olhava para Petrus com os olhos arregalados.
- Você está louco?! - perguntou, exasperada, mas parecendo aliviada por finalmente ter a chance de explodir - Isso aqui... - ela apontou para Petrus e para si própria - Isso aqui não é saudável, Petrus. E é exaustivo. - Carina parecia genuinamente cansada - Eu achei que você ficaria feliz com uma noite de trégua.
Petrus balançou a cabeça em um gesto de negação, como se não conseguisse compreender o discurso plenamente coerente de Carina.
Aqueles dois realmente tinham sérios problemas.
- Por que você pensou que eu ficaria feliz com isso? - ele perguntou ainda com raiva, mas seu tom de voz era mais contido.
Diante do absurdo da pergunta, Carina riu.
- Por que você não ficaria? - ela retrucou, abrindo os braços em um gesto de incredulidade - Por que você faz tanta questão que eu brigue com você?
Tudo ao redor - e note que me refiro a tudo e não a apenas a todos, uma vez que até o crepitar da fogueira pareceu mais silencioso - parecia aguardar por aquela resposta.
A frase que se seguiu foi quase um sussurro, mas pareceu ecoar mata a dentro.
- Porque é a única forma de saber que você ainda se importa. - Petrus finalmente respondeu com sinceridade, a voz rouca e os olhos injetados.
Uau.
Quero dizer, aquilo havia sido intenso. Além de ter sido a primeira vez que em que Petrus pareceu aceitar - em voz alta, pelo menos - que poderia haver algo mais entre ele e Carina do que gritos e ofensas. E eu juro que teria absorvido com mais calma os últimos acontecimentos - provavelmente até teceria teorias sobre para onde os roteiristas pretendiam seguir depois de tamanha revelação - se um vento frio não tivesse percorrido as minhas mãos, fazendo com que eu notasse que os dedos de Bianca já não estavam mais entrelaçados entre os meus.
Olhei em volta e, dessa vez, o frio me desceu a espinha. Eu não conseguia avistá-la em lugar nenhum ao redor da clareira. Percorri com passos largos o limitado espaço entre as árvores, sentindo o medo aumentar na mesma proporção que os meus batimentos cardíacos.
Se eu estivesse correto, se aquele realmente fosse um palco mais do que apropriado para um filme de terror, o sumiço de Bianca fazia todo o sentido.
Afinal, todo o fã de clichês sabe que a patricinha, loira e bela, é sempre a primeira a sumir.
x-x-x-x-x-x-x-x
N/A: Oieeee! Hoje eu estou feliz. E me sentindo um tanto bipolar - provavelmente a insanidade dos personagens está começando a se manifestar também na autora - porque, ao contrário do capítulo anterior, eu finalmente gostei desse daqui.
E eu FINALMENTE consegui cumprir a minha promessa (ainda que com dias de atraso) do capítulo duplo. Yeeey!
Espero que gostem, que curtam, que comentem, que divulguem e que se apaixonem por Henrique - e por Carina e Petrus, obviamente - tanto quanto eu.
Até o próximo fim de semana pessoal!
Espero ter feito a segunda-feira de vocês um pouquinho mais feliz. ;)
Beijão!
Giulia
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