Parte 1
Escrever é fácil.
Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final.
No meio, você coloca idéias.
Pablo Neruda
Narração: Carina
Há algo extremamente libertador em uma folha em branco. Ou em um novo documento Word se eu tiver que ser mais exata, ainda que isso meio que acabe com parte da poesia. O fato é que, ao iniciar um novo texto, há tantos rumos, tantas possibilidades, palavras e enredos, que toda a experiência se torna quase entorpecente. A não ser que você tenha que discursar sobre os "7 Erros Mais Comuns Que As Mulheres Cometem Ao Se Vestir".
Nesse caso, escrever é simplesmente um saco.
Eu deveria saber que não havia sido talhada para ser legal com as pessoas. Quero dizer, foi assim que eu consegui essa incrível honra. Honra. Foi como chamaram quando decidiram que eu deveria presentear o mundo com mais algumas palavras potencialmente machistas para fazer com que algumas centenas de mulheres se sintam inadequadas.
Que grande honra.
Deixem-me explicar como tudo começou.
- Carina, precisamos da sua ajuda. - eu estava relativamente relaxada em minha baia quando Marissa chegou ofegante naquela manhã, dirigindo a mim palavras que eu não costumava ouvir com muita frequência - A amante do senador Strandberg chegou, mas está se recusando a nos fornecer a exclusiva. - ela ofegava, suas bochechas estavam muito coradas e os olhos arregalados - Precisamos de você.
- E o governo precisa de menos políticos corruptos. - comentei dando de ombros - É um mundo cheio de frustrações.
Vamos parar um pouco antes que você ache que sou uma pessoa terrível.
Eu confesso que tenho um temperamento instável mas, na maior parte do tempo, consigo ser quase doce. Bem, talvez não doce, mas tenho certeza que eu conseguiria ser perfeitamente agradável se eu não fosse obrigada a ficar presa por seis horas do meu dia com um ser tão desprezível.
Oh, me desculpem pela confusão, não estava falando sobre a Marissa. Meu problema residia no jovem parado logo atrás dela, com os braços cruzados sobre o peito e cara de poucos amigos.
- Eu disse que ela não ajudaria. - Petrus, aquele desastroso projeto de ser humano, segurou Marissa pelo braço tentando demovê-la da ideia.
Suspirei, encarando os dois de forma irritada.
- Não é que eu não queira ajudar. - bem, na verdade, era exatamente isso - Só não vejo como poderia convencê-la a nos fornecer a entrevista.
- Você é boa em situações de conflito! - a jovem parecia desesperada.
Naquele momento, Petrus e eu compartilhamos um raro momento de concordância, rindo diante de tamanho absurdo.
- Para criá-las, talvez. - ele comentou e eu refreei meu instinto de contradizê-lo, uma vez que isso provavelmente acabaria por confirmar seu argumento.
- Vocês lembram do entregador tarado? - Marissa não estava pronta para se dar por vencida - Carina resolveu o problema.
Petrus ergueu uma sobrancelha, parecendo divertir-se com a lembrança.
- Resolveu. - concordou ele, irônico - Acertando um chute em suas partes mais sensíveis. - pontuou.
- E a briga entre Daniel e Arthur? - ela tentou - A respeito daquela revistinha idiota. Vocês se lembram?
Eu suspirei, resignada.
- Eles só haviam encontrado um exemplar para vender e não conseguiam decidir quem deveria ficar com ela, estavam brigando por horas. - lembrei.
- E deixando todos nós loucos. - Marissa concordou - Você resolveu a briga.
Petrus balançou a cabeça, incrédulo.
- Ela rasgou a revista em duas, Marissa. - ele argumentou, cansado.
- Funcionou para o Rei Salomão. - me defendi relembrando a história que meu pai contava, sobre o rei que ameaçou cortar um bebê em dois pois duas mulheres disputavam sua guarda.
- Era uma edição de colecionador. - Petrus respondeu revoltado.
Ao contrário do ocorrido com o entregador, dessa vez eu me sentira culpada. E havia sido terrivelmente difícil - e caro - encontrar uma nova revista. Duas delas, na realidade. A conta do meu cartão de crédito não me deixaria esquecer tão cedo daquela história.
- A questão aqui é que os dois pararam de brigar. - Marissa continuava a defender sua tese, o que me fez ponderar se ela não teria sido mais bem sucedida no ramo da advocacia - Eu sei que os métodos podem ser... incomuns. - ela pausou por alguns instantes tentando escolher o termo menos ofensivo, acredito eu - Mas são eficazes.
- Os métodos dela envolvem destruir algo ou machucar alguém. - Petrus olhou para mim com raiva, provavelmente relembrando as milhares de vezes em que ele havia sido vítima dos tais métodos - Não é disso que nós precisamos para resolver o problema com a Simone.
Eu começava a ficar irritada com aquela conversa. E havia sido assim que todas as situação recentemente narradas tinham se iniciado. Com uma ligeira irritação.
Respirei fundo, contando até dez. O Dr. Spinelli havia me mandado fazer isso caso a raiva tentasse assumir o controle. Aliás, a Raiva. Isso mesmo, em maiúsculo. É assim que o psicólogo da faculdade se refere aos meus momentos mais, digamos, intensos. Eu havia concordado em me consultar com ele depois de uma sequência de acontecimentos onde, segundo o Dr. Spinelli, a Raiva havia assumido o controle das minhas ações. Eu odiava a terapia, mas era isso ou ser expulsa.
Desde então, meu temperamento realmente estava menos inflamável. Para mim, os créditos de tal feito estavam em minhas aulas de boxe e não nas consultas com o psicólogo. Por outro lado, havia sido ele quem indicara as aulas.
Abri os olhos ao final da minha contagem e percebi que Petrus e Marissa me encaravam incertos, quase como se estivessem diante de uma bomba relógio. Só que, ao menos daquela vez, eu havia contido a explosão.
- Certo. - falei, clareando os pensamentos - Eu tive uma ideia. - comuniquei, levantando-me da mesa - Em que sala a amante está?
Marissa apontou para a sala, mas Petrus segurou meu cotovelo impedindo-me de seguir.
- Apenas lembre-se, ela precisa estar viva para dar a entrevista. - disse ele em um falso tom solene.
- Cale a boca. - rosnei, puxando meu braço para longe do seu toque.
**
Simone possuía longas unhas vermelhas. Essa foi a primeira coisa que notei ao entrar na sala onde ela aguardava.
A amante do senador as batia contra a mesa, parecendo impaciente e um tanto insegura. Assim que cruzei a porta, ela ergueu o queixo em uma postura desafiadora e jogou os cabelos por cima do ombro de forma altiva.
Cabelos loiros, unhas vermelhas. Não havia como ser mais clichê.
- Bom dia. - desejei em um tom ríspido, me inclinando em sua direção e espalmando as mãos sobre a mesa - Deixe-me entender, você desistiu de fornecer a entrevista, é isso mesmo?
A postura de Simone esmoreceu ligeiramente quando seus olhos encontraram os meus.
- Eu não posso fazer isso com o meu Pãozinho. - sua voz era firme ainda que suas palavras fossem claramente insanas.
Franzi o cenho.
- Pãozinho? - questionei, sem tentar esconder o horror que tomava minhas feições ao perceber que ela se referia a Strandberg.
Em um canto da sala, vi um sorriso involuntário erguer os lábios de Petrus. Marissa sufocou a risada transformando-a em um pigarro.
- Certo. - falei, prolongando a primeira vogal em um tom que deixava claro que nada estava realmente certo, afinal, ela havia destruído para mim a imagem de um alimento perfeitamente saboroso - A senhora dorme com um homem casado, vaza fotos íntimas dos dois e denuncia todo um esquema de corrupção do qual você, inclusive, fez parte. - enumerei cada ocorrência nos dedos da minha mão - Mas fornecer uma entrevista está além do seu limite moral, é isso?
Confusa, Simone mordeu os lábios e depois confirmou, balançando a cabeça em um breve aceno afirmativo. Ela claramente não captara o sarcasmo em meu discurso.
- Ok. - declarei, por fim.
- Ok? - Marissa, Petrus e Simone exclamaram em uníssono.
- Você pode ir. - me dirigi apenas a Simone para, depois, encarar meus colegas de trabalho - A outra ficará melhor na capa, é mais fotogênica.
Os olhos da mulher sentada à minha frente se arregalaram quando um misto de pavor e compreensão tomou suas expressões. Ao contrário do que havia acontecido com o sarcasmo, dessa vez ela entendera o significado implícito nas minhas palavras.
- Outra? - sua voz era um sussurro raivoso - Existe outra?
Sorri de forma plácida para ela, tentando aparentar alguma compaixão.
- Você não sabia... - selei os lábios, como se estivesse arrependida do que havia dito - Sinto muito. - dito isso, dei meia volta e deixei a sala.
Eu não havia conseguido dar cinco passos para longe da sala quando mãos fortes prenderam meus braços. De novo.
- Você tem uma necessidade anormal de contato físico, sabia? - virei para Petrus, puxando meu braço para longe dele.
- E você é a primeira a reclamar disso. - ele respondeu, sorrindo de maneira irritante.
Não que ele conseguisse alguma vez sorrir de outra forma. Ou, se querem saber, fazer qualquer coisa que não fosse intrisecamente irritante.
- Então esse era o seu plano? - o sorriso sumiu de seu rosto quando ele apontou para a sala, onde Simone começava a levantar para ir embora - Nós não temos outra pessoa para entrevistar, Carina.
- Eu sei. - respondi a ele - Minha ideia era acabar com qualquer senso de lealdade de Simone em relação ao senador. Achei que pudesse fazê-la mudar de opinião em relação a entrevista.
Petrus deu um passo para longe de mim e seu rosto demonstrava que ele não sabia o que achar daquela declaração. Suas feições alternavam entre admiração e aversão.
- Faz sentido. - ele concluiu, por fim - E se não der certo? Ela está indo embora. - observou.
Dei de ombros.
- Aposto que ela realmente não é a única amante. - declarei com pouco caso - Tenho certeza de que você consegue encontrar outra. Achar mulheres carentes e de personalidade contestável é meio que o seu talento natural.
Petrus cerrou os dentes diante da minha declaração ofensiva - ainda que inteiramente sincera - e pude ver os músculos de seu maxilar contraídos de raiva. Era bom perceber que eu não era a única com dificuldades para gerenciar minhas emoções.
- Tem razão. - disse ele entredentes - Afinal, por mais que eu me esforce para o contrário, você sempre acaba no meu caminho.
A declaração me atingiu como um soco.
Fechei os punhos e engoli em seco. Eu tinha que lembrar que estava no trabalho, local pouco indicado para agredir pessoas.
Fiz então o que o Dr. Spinelli havia indicado: pensar em imagens relaxantes.
Imagens relaxantes...
Petrus sendo atropelado por um ônibus.
Ou se afogando em um tanque cheio de piranhas.
E sabem o que também seria super relaxante? A sensação da minha mão batendo contra o rosto de Petrus.
Inspiro, expiro.
E não dá certo. A vontade de lhe acertar um tapa continuou ali. Firme e forte.
- Com licença. - meus devaneios violentos foram interrompidos pela voz de Simone.
Quando eu e Petrus nos viramos para encará-la, tive certeza que o resquício do ódio que sentíamos um pelo outro continuou em nossas feições, pois, percebendo o clima carregado, Simone cruzou os braços sobre o peito de maneira defensiva.
- Eu mudei de ideia. - declarou ela, decidida - Quero dar a entrevista.
Sorri de forma altiva para Petrus, vendo que meu plano havia dado certo.
- Ótimo. - disse, sorrindo.
- E eu sou muito fotogênica. - completou a mulher, de forma quase infantil.
O que quase fez com que eu me sentisse mal por tê-la manipulado.
Quase.
**
Há dois anos atrás, quando passei para faculdade de jornalismo, eu imaginava que meus dias de colégio estavam acabados. Não precisaria mais lidar com atletas imbecis, nerds, meninas malvadas ou qualquer outro adorável grupo típico da fauna escolar.
E eu estava certa.
Não que isso seja uma grande surpresa, conforme vocês perceberão em breve, eu normalmente tenho razão.
De fato, a faculdade possui uma gama menor das desagradáveis panelinhas vistas em colégios. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer do trabalho.
Então, como estou me sentindo uma boa samaritana, vou informá-los a verdade nua e crua. Trabalhar é muito semelhante a ir a escola. Agora, pensando bem, percebo que o colégio provavelmente era apenas uma preparação para o que viria.
No caso do Primeira Linha, jornal onde trabalho, nós temos as seguintes composições: de forma bastante previsível, os técnicos de TI ocupam o posto dos nerds; colunistas de esporte são o análogo aos atletas do colégio; as meninas populares são representadas pela equipe de marketing. Não vou aborrecê-los enumerando cada tribo social, basta entenderem que temos o pacote completo.
Você agora deve estar se perguntando onde eu me encaixo em tudo isso. A questão é, assim como no colégio, eu não faço a menor ideia. No entanto, não foi para reclamar da minha clara inadaptabilidade que falei tudo isso. Afinal, é para resolver tais questionamentos existenciais que tenho o Dr. Spinelli. Essa - não tão breve - introdução serve para explicar como fiquei presa com os "7 Erros Mais Comuns Que As Mulheres Cometem Ao Se Vestir".
A questão é que, assim como aconteciam com os projetos escolares, no trabalho não temos muita opção quando somos designados a determinada tarefa.
O que não quer dizer que eu não tenha tentado.
- Abel, qualquer um desse jornal é mais indicado para escrever essa matéria do que eu. - eu exclamei, indignada, para o editor- Exceto, talvez, a equipe de TI. - completei, meio incerta.
Abel descartou minhas palavras com um gesto de desleixo.
- Você é ideal para essa matéria. E não apenas para a matéria, mas para todo o blog. - ele declarou, animado - Apenas aproveite a sua recompensa por salvar nossa entrevista com Simone Adellar.
Acredito que esqueci de comentar sobre isso. Minha grande honra não se constitui apenas de uma matéria de gosto duvidoso. Não. Eu ganhei todo um blog para gerenciar. O que teria sido incrível, realmente estonteante, se o blog não se chamasse "Primeira Linha Para Elas".
Porque, é claro, nós precisamos de uma coluna explicitamente feminina para abordar temas como moda, dietas e fofocas de celebridade. A criação dessa coluna só reforçaria a ideia de que o restante do jornal é direcionado apenas ao público masculino. Além disso, agrupar todo um conjunto de temas terrivelmente fúteis e classificá-los como material de leitura feminina é, no mínimo, revoltante.
- Carina, você leu os resultados das pesquisas sobre o perfil de nossos consumidores. Nós precisamos conquistar jovens leitoras e o blog é o caminho perfeito para isso. - Abel argumentou - E você é exatamente do que precisamos: uma jovem mulher.
Bufei, irritada.
- E você é um gay com bigode. - pontuei, sem parar para medir minhas palavras - Isso não quer dizer que tenha que fazer parte do Village People.
No minuto em que as palavras saíram da minha boca, percebi que eu acabara de falar isso para um dos editores do jornal. Ou seja, um dos meus chefes. Prendi o ar por alguns segundos, esperando sua reação.
Para a minha surpresa, Abel apenas riu.
- O que é uma pena. - ele brincou, piscando para mim - Acredite, eu seria uma grande adição ao grupo.
Meus ombros relaxaram, mas o nó de irritação continuava a arder em meu estômago.
- Por que eu? - confesso que choraminguei essa frase - Não posso ser a única jovem mulher de todo o jornal.
A expressão de divertimento de Abel se metamorfoseou em um sorriso carinhoso.
- Carina, você está há dois anos no Primeira Linha. Não é possível que queira continuar apenas a servir café e revisar textos. Isso seria um desperdício. - o editor ergueu uma sobrancelha de forma sarcástica - Além disso, não é como se você fosse muito boa em servir cafés. Eles vivem caindo em cima dos outros. - Abel riu - Não propositalmente, claro. - completou, piscando para mim.
Ele tinha razão.
Não sobre o café, obviamente. Aquilo era totalmente proposital.
A razão de eu ter me inscrito em jornalismo, razão pela qual eu havia entrado no Primeira Linha, era escrever. E estava na hora de, finalmente, começar a fazê-lo. Ainda que não fizesse a menor ideia de como conseguiria descobrir quais são os "7 Erros Mais Comuns Que As Mulheres Cometem Ao Se Vestir". Mas não vamos desanimar, eu era capaz de fazer aquilo.
Acho.
- Então, respondendo a sua pergunta: não, você não é a única jovem mulher neste jornal, mas é uma das mais talentosas. - Abel seguiu com o seu discurso motivacional sem perceber que já havia me conquistado - E, por isso, eu só pude concordar quando Petrus a indicou para o blog. Você é perfeita para isso.
Meus lábios entreabriram involuntariamente devido ao choque.
Certo, estava decidido. Eu seria a colunista do "Primeira Linha Para Elas".
Logo depois de matar Petrus.
x-x-x-x-x-x-x-x-x
N/A: Oiii, pessoal! Não sei se sentiram minha falta, mas eu posso dizer que estou morrendo de saudade de todos! \o/
Como devem ter percebido, estamos em Agosto e, conforme o combinado, aqui está o primeiro capítulo da nossa nova história.
Eu estou em uma daquelas fases bem conhecidas daqueles que gostam de escrever, onde você odeia quase tudo que escreve. Essa fase é quase uma constante, na verdade. No entanto, espero que tenham gostado! ;)
Para aqueles que ainda não sabem, "100 Coisas Que Eu Odeio Em Você" é o terceiro conto da coletânea "Amores de Cinema", vindo logo depois de "Ela Não Está Tão A Fim de Você" e "Namorado de Aluguel". Não é necessário ter lido os contos anteriores para entender a história, mas pode ser divertido entender o passado de alguns dos personagens secundários.
E, sim, Lena e Gael de "Namorado de Aluguel" terão o seu espaço nessa nova história! Assim como Ana e Lucca. :D
Por fim, aviso que pretendo responder a todos os comentários em "Namorado de Aluguel", ainda que eu esteja um pouco atrasada nisso, rs.
Espero realmente que se divirtam com a nova história.
Beijão,
Giulia Cavalcanti
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