05. O QUE DEVERIA SER UMA CASA
─── O QUE DEVERIA SER
UMA CASA... ───────
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SARAH ABRE OS OLHOS com uma preguiça incomum. Algo em sua mente lhe dava a certeza sobre como seria o seu dia, mas ela ainda assim se questionava sobre. Levantando-se devagar, ela pisca os olhos conforme percebe a luz solar invadindo o seu quarto, e as orbes azuladas vagueiam o cômodo em busca de alguma coisa que remetesse à sua casa.
Não havia nada.
Um dos quartos do Sanctum Sanctorum de Nova York, cedido à ela por Wong e Stephen, tinha os mesmos tons terrosos da entrada do local, e ela deduziu que esse design perseguia a casa toda. A aparência de tábuas de madeira de tonalidade média percorriam as paredes do quarto, e o chão parecia ter o material semelhante, apesar de tons mais escuros. Os móveis pareciam antigos e limitados ao básico e necessário, como mesas de cabeceira, cama, armário e um pequeno assento estofado próximo de cada janela. E, como uma característica peculiar do lugar, haviam mais janelas do que se considerava normal, espaçosas e acompanhadas de cortinas de pouca espessura.
Sarah levantou, os pés descalços colidindo com o chão frio antes de calçar suas pantufas, e ela saiu por entre os corredores nem tão estreitos de seu mais novo lar, observando a mesma decoração antiquada que cercava cada centímetro do Sanctum.
A casa estava silenciosa, mas ela não saberia dizer se estava sozinha. Quando chegou ali, na noite anterior, Wong fez questão de lhe informar que estaria sob a vigília de Stephen, já que o mais velho constantemente saía para verificar os treinamentos dos novos magos em Kamar-Taj e para reforçar os escudos protetores que cobriam a Terra, além de reuniões com outros representantes dos outros sanctus. E Strange, por sua vez, não parecia tão entusiasmado em conhecer a Keeper, ao menos que contribuísse para sua sentença deplorável.
Além disso, o Sanctum de Nova York não parecia um lugar pequeno. Tinha uma variedade admirável de portas espalhadas pelos corredores, e ela não se surpreenderia se alguma dessas portas fosse um portal para outra dimensão ou região terrestre. Tentaria descobrir sobre aquele lugar mais tarde, mas, antes, iria atender ao chamado de seu estômago, que implorava por alimento.
Andou até um ambiente que poderia ser interpretado como uma cozinha, a julgar pelos grandes armários suspensos nas paredes de tons escuros, e a mesa no centro. Não havia cadeiras, mas talvez eles só não gostassem de conversas rasas entre as refeições. Ela não julgaria se Stephen e Wong tivessem essa intolerância um com o outro.
Sarah alcançou os armários. Era escassos e todos iguais, e ela torcia ─ não, rezava ─ por cereais adocicados ao abrir uma das portas.
Para a sua surpresa, o item no interior da dispensa era maior, e, a julgar pela definição de alimento, nem um pouco comestível. Um pequeno portal permitia o acesso de um tentáculo na cozinha, que tateava o pequeno armazém em busca de algo. Talvez comida. De toda forma, não era significante, principalmente pelo modo como a coisa reagiu ao perceber que era observada. Sarah arregalou os olhos, saltando para trás e estendendo as mãos.
─ PUTA MERDA! ─ Ela observou o tentáculo parado, curioso, mas ainda assim, ameaçador. Se tivesse um rosto, estaria julgando a loira naquele exato momento. ─ Mas o que diabos eles comem nessa casa!?
A mulher suspirou, recuperando a calmaria de seus batimentos cardíacos e repousando a mão no peito nesse processo. Encarou a criatura com atenção, aproximando o rosto com sutileza.
Não era apenas um tentáculo, ela podia garantir. Se pudesse chutar, diria que era a ponta de um tremendo iceberg. Como tinha uma mente criativa, imaginava o pior e o melhor ao mesmo tempo.
─ Talvez seja um companheiro dos magos? Não... Talvez um criado.
O bicho "a encarou", e a forma suave e serena de antes se tornou rígida e seca. Como se tivesse se ofendido. E então, um frio percorreu a espinha da Keeper, como sinal de alerta.
Ela havia ofendido a coisa.
De repente, o tentáculo se estica um pouco mais entre o portal, como se lutasse para sair de dentro dele. Era pequeno, e o ser tentava incansavelmente se livrar das amarras místicas quando Sarah esticou as mãos no ar, recordando-se de um feitiço.
Mas parou. Ela podia anular magia com a sua própria?
O tentáculo cresce, o portal se alarga, e o que quer que ela tenha provocado com inocentes palavras, avança na loira, que leva os braços ao rosto em uma fútil e mal pensada alternativa de defesa... E nada acontece.
Primeiro, ela achou que o animal havia entalado no portal. Depois, que havia conseguido interromper o ataque e, por fim, apenas abriu os olhos. O armário estava fechado, e o único tentáculo que com muito desdém interagiu com ela, havia desaparecido.
─ O que faz aqui? ─ Ela se virou, as mãos erguidas e brilhantes em defesa, ainda sem reconhecer a voz máscula atrás de si. Ela logo abaixou os braços.
─ Vim comer alguma coisa. Bom dia para você, também, Strange.
─ Não é uma cozinha.
─ Mas parece. Essa casa é estranha, com a mesma decoração para cada mísero cômodo. Aqui tem armários e bancadas, como eu não iria me confundir?
─ Está vendo cadeiras? Um fogão? Um microondas, pelo menos?
Ela fica quieta. Havia algo tão zombeteiro na voz do homem que ela o socaria ali mesmo. Mas talvez isso aumentasse a sua maldita pena mística de cadeira. Era melhor ficar calma.
─ Não me conformo que tenha sido considerada uma ameaça, se mal consegue identificar um ambiente.
A calmaria que se foda.
─ Eu não tenho culpa se o design de interiores desse local é horrível! Eu poderia confundir um banheiro com o estacionamento, se quisesse.
Ele ri. Um riso curto e seco, como se fosse melhor que ela.
─ Certo, e onde fica a cozinha?
─ Achei que soubesse lidar com esse tipo de situação sozinha, Keeper.
─ Essa é a minha sentença, então? Ter que lidar com um centenário como você por sabe lá Odin quantos anos?
─ Na verdade, Wong é o seu principal acompanhante nesse processo. Ele está chegando, então deveria tomar o seu café. ─ E sai, no mesmo momento no qual Sarah abre a boca para se manifestar sobre a cozinha, e o homem apenas aponta para trás, deixando-a só.
Ela vira a cabeça, o cenho franzido enquanto encarava o balcão principal que ali estava. E, na superfície lisa e maciça do mesmo, havia um único pote que transbordava cereais e leite.
─ Stephen, eu... ─ Ela encara, e ele não está mais no seu ponto de vista.
Era como se fizesse de propósito, esbanjando os seus poderes e ridicularizando a falta de informação da Keeper. Ela queria esfregar seu dedo do meio bem na cara do infeliz.
Ao invés disso, pega o que seria o seu café da manhã, e funga o prato algumas vezes apenas para verificar a possibilidade de veneno no mesmo. Obviamente era um gesto inútil, e ela não demorou para abocanhar o alimento adocicado, ignorando completamente a própria postura enquanto saboreava sua refeição ─ a certos três metros de distância do armário do tentáculo, e sempre verificando se a porta se mexia por dentro.
─ Está aí. ─ Ela vira a cabeça, as íris azuladas buscando pelo dono da voz.
Nas vestes características de um mago, Wong a encarava com uma seriedade típica, a postura impecável e as mãos escondidas atrás de suas costas. Ele não parecia ter reação à mulher que comia no canto de um cômodo que ela ainda não sabia a finalidade. Talvez eles mexessem com poções e ali era a sala adequada para práticas seguras.
─ Venha. Irei lhe apresentar a casa.
─ Agora? ─ Ela perguntou, levando uma colher de cereal à boca. Wong não respondeu. Apenas se movimentou tranquilamente para fora do ambiente, deduzindo que ela faria o mesmo.
Não era como se tivesse alguma escolha. Ou lidaria com o mago supremo que tinha um pingo de humildade com a Keeper, ou com Strange, que se exibia demais com os títulos que possuía.
Mago, vingador, antigo neurocirurgião de sucesso. Sarah revirou os olhos, seguindo Wong pelos corredores estreitos. Grande merda, pensou. Ela era praticamente sobrinha de um deus nórdico, e mesmo assim não saía espalhando a notícia por aí. Era muita arrogância da parte de Stephen, se ela ousasse dizer. Não que ela fosse diferente, mas era essencialmente insuportável lidar com alguém com tanta falta de humildade quanto ela. Não que Sarah fosse assumir isso em público.
─ E aqui, é a cozinha. Imagino que Strange não tenha tido tempo o suficiente para te mostrar ela. ─ O mago se vira, encarando o pote quase vazio que a mulher levava nas mãos.
─ Que grosseria! Eu nem mesmo te ofereci um pouco... Quer? ─ Ela estende o pote na direção do homem, mas ele recusa educadamente. ─ Não gosta de cereal?
─ Apenas não estou com fome.
─ Hum... Okay. ─ Ela dá de ombros, analisando a cozinha enquanto partiam para o próximo cômodo.
Era bem semelhante ao lugar onde esteve, com exceção da presença de alguns eletrodomésticos característicos do cômodo em si. Fogão, pia e uma trituradora preenchiam o ambiente, mas com as cores ideias para não estragar a estética rústica e antiquária da casa.
─ O andar de cima, onde você fica, é repleto de alguns quartos e também de salas de estudos e bibliotecas.
─ Mais de uma? ─ A loira perguntou, com interesse.
─ Gosta de ler?
─ Meu pai, se é que posso chamá-lo assim, passava muito tempo fora. Eu tinha que me distrair de alguma forma, e ele é um apreciador nato da literatura universal. Eu passei muito tempo da minha vida lendo.
─ Seu pai sabe dos seus poderes? ─ Wong se virou, parando no caminho com alguma curiosidade nos olhos escuros. Provavelmente, seria uma informação importante para entender a natureza de Sarah e se aprofundar na sua personalidade e julgamento.
─ Ele me treinou. ─ Ela diz, sem mais especificar qualquer coisa.
De repente, Wong vira a cabeça novamente, não procurando se aprofundar. Ou ele era muito educado em relação à vida alheia, ou não tinha um real interesse pela existência de Sarah. Ela preferiu acreditar na primeira opção.
─ Como eu disse, passará mais tempo com o Strange do que comigo. Ainda assim, eu estarei ciente de tudo o que fizerem por aqui. É uma forma de analisar o seu próprio comportamento e... Onde está?
Ela parou no meio do caminho, olhando para os lados a fim de se certificar de que ele falava com ela.
─ "Onde está" o que?
─ O seu pote?
─ Dos cereais?
─ Sim.
─ Oh! Eu terminei de comer. Devo ter enviado ele para a pia de louça. Mas eu ainda irei lavar, é só porque não tenho a certeza da dimensão dos armários, e não quero evitar quebrar nada que não é meu. ─ Ela solta uma risada sem graça, como se sentisse que sofreria um julgamento. Foram poucos os momentos de sua vida onde lidou com pessoas tão centradas e sérias quanto Wong.
─ Não tem certeza quanto ao uso de seu próprio poder?
─ Às vezes é involuntário. Eu só penso em algo e aquilo acontece.
─ Achei que invocava magia através da fala.
─ Sim, sim, na maioria das vezes. É como uma estética, facilita a prática. Mas não é algo obrigatório para usar magia.
─ Hum... ─ Responde, simplesmente, e a mulher acredita que a informação que acabou de dar a ele era como uma novidade.
─ Posso perguntar uma coisa?
─ Diga.
─ Vocês já lidaram com... você sabe... a minha espécie, antes?
Ele parece pensar, os olhos divagando por um momento curto e crucial. E então, a encara.
─ Não. É a primeira.
De alguma maneira, aquela simples frase foi como um soco na face de Sarah. A primeira, sua mente repetiu, em eco. Não era o tipo de exclusividade que jamais sonhou ter em sua vida. Ser a única com os dons que tem e, consequentemente, não ter as respostas que precisava para as centenas perguntas que formulou durante os seus anos de vida.
Ela queria que Wong tivesse feito uma piada. Não se importaria de ser uma brincadeira de mau gosto.
Mas, a julgar pela seriedade típica do homem, ao soar as palavras com tanta firmeza e precisão, provavelmente não era uma mentira.
─ Senhorita Keeper, você vem? ─ Ela olha para cima, e o homem já está mais afastado, como se tivesse andado e percebido que ela não o acompanhou. A pergunta que fez deveria ser retórica, já que ela não tinha qualquer escolha.
─ Claro, eu só... ─ Sarah parou de falar. Sentia um terceiro indivíduo na conversa, um intruso que a observava com cautela. Quando olha para a sala ao lado, que se assemelhava a uma biblioteca, viu Stephen a encarando. Ela não sabia identificar a expressão no seu rosto, pois mal o conhecia, mas julgou ser pena.
Rapidamente, ela virou a cabeça, apressando os passos até alcançar o mago supremo.
─ Estou indo.
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