02. MAIS CATASTRÓFICO QUE SORVETE SEM CALDA
─── MAIS CATASTRÓFICO QUE
SORVETE SEM CALDA... ────
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SARAH VIVIA EM UMA CIDADE GRANDE. E como em toda cidade grande, existem vários problemas. E de todos esses problemas, existem aqueles que vão para os noticiários. Mas existe uma diferença entre o telejornal da manhã e o da noite, por exemplo. Também existe uma diferença entre o resultado de um jogo de loteria e um roubo. Principalmente quando o roubo envolve magia, um nome conhecido na cidade e uma identidade. A Keeper se encaixava na escala máxima de importância para um jornal televisivo e para um problema da cidade grande. E ela tinha a completa ciência disso.
─ Vamos nos concentrar. ─ Zaia dizia, do outro lado da tela de um enorme tablet de cor branca.
─ Eles estão mexendo com magia. É óbvio que é um processo demorado. Até lá, você pode...
─ Fugir da cidade? ─ Sarah sugere, olhando para a tela.
─ Isso só deixaria evidente que você roubou aquele dinheiro todo.
─ Posso mudar de país. Tenho uma propriedade na França. Ou posso falar com o Magnus e morar em Asgard e...
─ Nenhuma alternativa que envolva fuga deve ser cogitada. ─ A mais nova massageia as têmporas, e Sarah passa a andar de um lado para o outro dentro do salão em sua casa.
Não era bem um salão, apesar de ter as medidas de um. Era o conectivo entre o interior e exterior de sua mansão, em um dos mais chiques bairros residenciais, e um dos mais caros. Ele tinha os tons mais apagados possíveis de salmão, e alguns vasos de caráter greco-romano estavam espalhados nas pequenas mesas de mármore branco do local. As flores estavam intactas dentro dos recipientes, como se fossem semanalmente ─ se não menos ─ trocadas, as mesmas tulipas amarelas e margaridas brancas que Sarah gostava de pintar de azul-bebê.
Louise segurava o tablet em suas mãos pálidas, virando Zaia pelo cômodo para que a pequena gênia pudesse acompanhar os movimentos da amiga.
─ Você não tem alguma tecnologia que possa me proteger de julgamentos?
─ Primeiro: essa ideia é ridícula. E segundo: as Indústrias Stark quem mexe com tecnologia alienígena, não as Indústrias Julliard.
─ Está me chamando de alienígena? ─ Sarah para, inclinando a cabeça até a tela acesa. Zaia deu de ombros.
─ O governo vai considerar isso.
─ O governo! ─ A loira leva as mãos ao rosto. ─ Não acredito que vão envolver o governo nisso. Roubos acontecem direto. É uma tempestade em copo d'água!
─ Você mexeu com magia. Pode ser uma deusa nórdica...
─ Em termos estéticos, eu tenho certeza que sou uma divindade ─ Ela cortou a Julliard, mexendo rapidamente em seu cabelo liso.
─ Ou uma alienígena...
─ Estou longe de me assemelhar com aquelas criaturas bizarras que os Vingadores detiveram no passado.
─ Ou uma mutação genética...
Sarah ficou quieta, como se não soubesse responder àquela pergunta.
─ Você é uma mutação genética!? ─ Zaia quase caiu da cadeira, os olhos arregalados em surpresa.
─ Claro que não! ─ Sarah diz, cruzando os braços em teimosia. ─ Quer dizer, eu acho que não.
─ Ei! Você também pode ser uma maga. Sabe, como o Doutor Estranho.
─ Eu não tenho que usar aquelas cobertas como roupa e muito menos preciso de objetos para invocar meus feitiços. Não sou uma maga.
─ Não é possível que você não saiba o que é.
Sarah ficou quieta, olhando fixamente para as suas botas de bico fino no chão.
─ Magnus disse que não existem muitos de mim na Terra. Então provavelmente eu seria uma novidade para o governo.
─ Talvez haja algo na internet.
─ Zizi, francamente ─ Ela levanta os braços no ar, em protesto. ─ Eu já tive dezesseis anos, já procurei por "homo magi" no Google. Não tem nada.
─ É, mas faz tempo. Quantos anos você deve ter agora? Cinquenta? ─ Ela sugere de forma debochada, levando a mão ao queixo como se estivesse tentando se recordar.
Próxima das duas, Louise sorri, bem agasalhada em um suéter azul.
─ É capaz de, no final do dia, eu ir para a cadeia por matar você.
─ Uma boa distração não mata ninguém. Por via das dúvidas, eu vou pesquisar. Você não teria como chamar o seu irmão bonitão de consideração?
─ Você ainda não aceitou que ele é gay, não é? ─ Sarah revira os olhos, sorrindo, mas logo perde o brilho nas íris azuis. ─ Não é fácil contatar ele desde o massacre de Thanos. Ele vive pulando de galáxia em galáxia. É como se buscasse algo.
─ Tá, mas ele deve ter um número de emergência ou algum feitiço de invocação.
─ Está chamando o Magnus de demônio? ─ Ela cerra os olhos, já acostumada a defender o homem das alfinetadas mais sutis. ─ De todo modo, não dá. Até que Magnus me alcance, eu já estarei morta.
─ Não é pra tanto. ─ Zaia tenta tranquilizá-la, coçando os olhos. Ainda vestia o pijama de girafas, diferentemente de Sarah, que assim que desligou a televisão, tratou de vestir um terno vermelho e botas de cano curto e bico fino na cor escarlate. Se fosse para ter sua casa escancarada por policiais e levada contra a sua vontade a um tribunal, que pelo menos estivesse bem vestida.
Ela olhou para Louise por pouquíssimos segundos, e percebeu que a mulher também trocou de roupa. Foram poucas as vezes que Sarah a viu de pijama, sem os tradicionais e coloridos suéteres do dia a dia. Em todas essas vezes ela tinha sete ou nove anos, quando pesadelos incompreensíveis ainda faziam parte de sua rotina.
─ Como iremos saber? ─ Ela volta para o presente, piscando algumas vezes. ─ Nenhuma de nós já foi presa!
Ela se virou em uma pirueta dramática, e quando a Julliard levantou a mão em protesto, a Keeper se apressou em apontar o indicador para ela, de forma julgadora:
─ Embriaguez não conta.
─ Mas eu chutei a bunda do babaca do Jared Park naquela noite! Foi memorável.
─ Você não deveria se vangloriar disso, querida. ─ Louise repreende, olhando para a tela abaixo de si, mas sem encontrar o olhar de Zaia de fato.
A negra abaixou a cabeça, como se estivesse envergonhada.
─ Desculpa, senhora D.
─ Chega de mimimi inconveniente. ─ Sarah bate palmas, chamando a atenção das duas. ─ Precisamos de uma solução. Mas é difícil quando não sabemos quando serei levada pelo governo e quando Zaia, que está morrendo de sono, está agindo como uma criança de oito anos.
─ Mal deu uma da manhã, Sasa. Eu tenho certeza de que ninguém vai invadir a sua casa nesse horário.
─ Mais uma vez. Nenhuma de nós foi presa. Não tem como nós saber... ─ Ela para.
─ O que? ─ Zaia estica o pescoço pela tela, e Louise levanta os olhos em direção à porta.
─ Ouviu isso, senhorita Keeper?
A loira assentiu com um breve e distraído movimento de cabeça, logo encarando a entrada de sua casa.
─ Atrás de mim, Louise. ─ Sarah diz, sem tirar os olhos da porta.
Barulhos eram constantes em Nova York. Você nunca poderia dizer que as ruas estavam silenciosas, e que um único som soou suspeito. Mas o som era diferente. Era como algo emergindo, a poucos metros de distância das duas mulheres e do tablet falante presente no interior da casa, um som que Sarah podia afirmar, com total certeza, de que nunca escutou em toda a sua vida.
─ Louise, fique aqui com a Zaia.
─ Tecnicamente eu estou bem segura aqui na minha casa. ─ A Julliard dá de ombros, mas logo os olhos se esticam sobre a tela. ─ Não pode ser só a polícia?
─ A essa hora? ─ Sarah se vira para as duas, e os olhos azuis vacilam em receio para a amiga.
─ A senhorita estava cogitando isso há pouco. ─ Louise defende Zaia, apertando o aparelho eletrônico nas mãos enrugadas.
─ Caso não estejam cientes, eu sou a única aqui com as habilidades necessárias para nos manter vivas. Então não sejam tão...
─ Sensatas? ─ Zaia sugere, os olhos castanhos entregando divertimento mesmo que o rosto mostrasse aflição.
─ Louise, desligue ela.
─ Vocês não podem fazer isso comigo! Eu preciso saber como essa história ter... Preciso ajudar vocês! ─ Zaia exclama, o tom elevado enquanto grudava a cara na tela, desesperada por atualizações.
Louise a olha com pena, como se quisesse a companhia da garota, mas tivesse um compromisso maior com a mulher à sua frente. E então, a Julliard foi silenciada.
─ Senhorita Keeper...
─ Oducse ed oãçetorp an esiuoL. ─ A mais nova conjura com uma única mão estendida na direção da senhora Davidson.
Em passos apressados, ela se aproxima, e os saltos de suas botas fazem um batuque baixo no chão frio. Ela segura as mãos quentes da idosa com força.
─ Se esconda no meu quarto. Há um feitiço de proteção por lá. Se eu não retornar em vinte minutos, saia o mais rápido que puder daqui...
─ Senhorita Keeper! ─ Louise tenta repreender, mas a essa altura Sarah já se afastou da mulher e tirou o terno vermelho de seu corpo, exibindo um cardigã justo e branco que usava por debaixo da peça colorida.
─ Vá. ─ Sarah ordenou, o semblante sério, e encarou as portas.
Soltou um suspiro exasperado, como se estivesse se preparando para uma luta com alguém poderoso, enorme, forte e perigoso. Enquanto caminhava em direção à entrada de sua casa, ela tentava se lembrar de algum inimigo místico que cruzou o seu caminho em algum momento inoportuno de sua vida. Nada veio à sua mente.
Talvez fosse um inimigo de Magnus, ela pensou, erguendo uma sobrancelha. Conhecia o homem há tempo o suficiente para entender que ele nunca levava um desaforo para casa, tampouco evitava brigas intergaláticas em eventos de todas as naturezas. Mas poucas pessoas sabiam de sua conexão com a loira.
As mãos pesaram nas maçanetas de aspecto dourado, e ela puxou os enormes elementos de madeira, recebendo uma rajada sombria de ar frio no rosto pintado.
─ Está bem. Eu vou ser presa em breve, então vamos acabar logo com isso. Soube que não existe sorvete com calda na cadeia, e não há nada mais catastrófico do que sorvete...
Ela se calou.
Não havia nada ali.
Nem um esquilo se quer.
O vento era seu único companheiro, e ele soprava de um jeito como se zombasse da mulher.
Ela estaria enganada? Teria se precipitado quanto ao som? Talvez fosse apenas obra da estação.
─ ... sem calda. ─ Sarah se arrisca, as mãos levantadas à sua frente, mirando no que quer que estivesse ali. ─ Olá?
O silêncio perseverou. Algo dentro dela procurou tranquilizá-la, e ela levou uma das mãos ao peito.
─ Zaia tinha razão. ─ Ela passou a caminhar, o trajeto de volta para o interior de sua casa. ─ Louise vai me achar maluca por todo aquele comportamento e...
Seu pé pisou em falso, e ela sentiu que algo estava errado.
Sarah viveu naquela casa por mais de vinte anos. Conhecia o terreno de cór e salteado. Aquela área, em especial, era coberta de grama verde e seca, independente das estações, o que mais tarde ela descobriu ser obra de Magnus, que queria preservar a natureza da mansão na forma mais primaveril possível apenas para mimar a garota no auge de sua infância.
O solo era reto como uma alvenaria pronta, e não teria como a loira tropeçar em uma pedra, quanto mais em um buraco.
Algo lhe embrulhou o estômago, e suas mãos se estenderam uma última vez em direção à sua casa enquanto um portal a engolia para dentro de si.
─ Euqnart sa satrop! ─ Gritou no vasto breu que a cobria, vendo as portas de sua casa se trancando num último comando para sua magia, e a mulher fechou os olhos enquanto o corpo era levado rumo ao desconhecido.
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