
CAPÍTULO 01
Marina Toledo
"HEY, XUXU! A BANDA S.I.N.N.E.R. ESTÁ DE VOLTA À CIDADE NESTE SÁBADO E CONTAMOS COM SUA PRESENÇA PARA BOTAR PARA QUEBRAR!"
Li na legenda de um evento que recebi pouco antes de desligar meu notebook para ir dormir. Deletei a mensagem de spam e bocejei ao apagar o abajur para me deitar, não demorando a entrar em sono profundo.
Estava há semanas focada nos estudos para passar no vestibular e não esperaria nenhum sinal de insônia depois de ficar até quase o sol nascer com a cara enfiada nos livros de química, tentando colocar um pouco disso na minha cabeça de humanas.
Diiiiiing Dooooong... A mórbida campainha da minha casa tocou me tirando do aconchego dos meus sonhos.
DIIIING DOOONG... O barulho irritante repetia sem parar. Esfreguei os olhos com os dedos e encarei o relógio na mesa de cabeceira. Não eram nem oito da manhã. Quem diabos poderia ser tão cedo?
— TEM ALGUÉM MORRENDO POR ACASO? – Bradei enquanto calçava as pantufas e fui tropeçando em algumas almofadas espalhadas no caminho até porta.
Olhei pelo olho mágico da porta e pude ver o topo de uma cabeça loira, que certamente estaria na ponta dos pés para bater com o punho no grande portão de madeira da minha casa.
— Marinaaaa! – Reconheci a voz fina de minha melhor amiga e apertei para destravar o portão e permitir que Melanie entrasse pela garagem. – Desistiu daquela sessão de autógrafos do lançamento do livro do Bianqualquercoisa por acaso?
Estava tão preocupada com as provas finais e a proximidade com o vestibular que esqueci que havia praticamente subornado Melanie para me fazer companhia no lançamento do novo romance policial de Bianchi na Bienal do livro de São Paulo.
— Bom dia, Nina! – Minha melhor amiga se jogou em um abraço apertado assim que chegou até mim.
— Entra que eu preciso tomar banho, Mel. – Murmurei esfregando o ninho de mafagafos que havia se formado no meu cabelo, enquanto a loira ia saltitando até meu quarto.
Como pode ser tão animada essa hora da manhã? Deveria ser crime! Eu ainda estava tentando ligar meu cérebro na mesma realidade exacerbada de Mel, que parecia disposta a correr uma maratona.
— Você é uma gracinha quando acorda! – Brincou mantendo seu sorriso estampado. – Posso usar seu computador enquanto você se arruma? – Não sei por que se deu ao trabalho de perguntar, já que pegou meu notebook de cima da escrivaninha e foi até minha cama.
— Você sabe a senha, certo? – Respondi separando minhas tralhas de banho.
— Como se fosse possível esquecer seu aniversário, miga! – Completou com uma piscada, enquanto eu equilibrava a pilha de coisas nas mãos indo em direção ao meu pequeno banheiro.
Não estava tendo os melhores dias da minha vida, mas esperava que um pouco de água gelada me trouxesse alguma energia, já que os estudos estavam me sugando e sendo minha tábua de salvação desde que...
— Chega de melancolia, Marina! – Dei alguns tapinhas no meu próprio rosto enquanto me ensaboava, me forçando a acreditar que o dia seria incrível.
Finalmente teria o livro autografado, direto das mãos de Cláudio Bianchi, um dos melhores escritores de suspense dos últimos tempos e uma grande inspiração para mim.
— Que tal, Mel? – Voltei para o quarto vestindo um jeans preto rasgado nos joelhos e uma camiseta folgada. Girei uma vez balançando o rabo de cavalo alto e deixei à mostra a caveira bordada nas costas.
— Está linda! – Seu sorriso sincero mostrava o alívio que sentia em me ver tentando sair do poço do qual havia me escondido nos últimos meses.
— Obrigada! – Retribuí com um sorriso amigável.
Posso dizer sem receios que meu estilo combinava mais com algo parecido com "arrumadinha o suficiente" para uma garota pequena, quase sempre pálida e mais magra do que gostaria - mesmo com o apetite insaciável por hambúrguer e Coca-Cola. Não tinha muito do que reclamar quando meus grandes olhos escuros como jabuticabas maduras, emoldurados pelos meus cabelos pretos e escorridos sobre o meu quadril largo, destacavam-se do restante monótono e sem graça.
Estava definitivamente fora de qualquer padrão das garotas da minha idade, mas me agradou ouvir o elogio de minha amiga. Minha melhor e única amiga. Não era difícil sorrir para Mel. Nada era difícil com ela por perto.
Caminhei até a cozinha para preparar algo para comermos antes de sair. Servi-me um copo de Coca-Cola gelada que bebi em um gole só, ofegando levemente. Abri o congelador em busca de uma das maiores invenções da humanidade: Hambúrguer! A pessoa que descobriu que carne moída compactada em pequenos disquinhos poderia ser uma refeição merecia um prêmio Nobel, uma cadeira na ONU, um lugar especial no céu.
Espalhei um pouco de azeite na frigideira e a encarei como se fosse enfrentar um demônio de três cabeças, porém, no instante em que eu ia colocar os hambúrgueres congelados para fritar, ouvi o grito agudo de Mel vindo do meu quarto.
— Marina, quem diabo é Romeu? – Perguntou com uma careta de preocupação, virando o notebook para mim.
— QUE PORRA É ESSA?! – Perguntei desacreditando no que via na tela do computador.
"Vai ignorar o futuro rei do rock mundial mesmo?"
"HEY! Diz que vai nos ver?"
"Não me abandone sem uma resposta, xuxu!"
— Ah! É um lunático que me adicionou em um "spam" para um evento dessa tal de Sinner ontem. Nada de importante... – Respondi dando de ombros e, ignorando o incômodo pelas mensagens, voltei para terminar nossos lanches antes que minha pressão baixasse e tivesse problemas reais para lidar.
No rádio da cozinha reconheci as notas de Bohemian Rhapsody e, rodopiando em volta do fogão, fiz dois cheeseburgers caprichados. O cheiro da comida feita invadindo a casa e as endorfinas geradas pela dança me fizeram sorrir sozinha. Essa certamente era a melhor música do século.
Enchi outro copo com Coca-Cola para Mel e a chamei para saborear minha única especialidade culinária e o alimento que eu comeria para o resto da vida sem nenhum pesar. Comemos jogando conversa fora sobre a nossa viagem de formatura que estava prestes a acontecer.
Não estava animada para passar uma semana rodeada pelas pessoas mais populares do colégio, esfregando seus corpos perfeitos em roupas de banho, mas estava contando os dias para ter folga do Sr. Álvaro Toledo, também conhecido como meu pai.
Com a proximidade do vestibular, meu pai achou que era a hora de me convencer a cursar a faculdade de direito e seguir seus passos na AT Advogados Associados, mesmo sabendo que meus planos para a graduação eram bem diferentes disso.
— Vamos que não quero correr o risco de não conseguir meu livro! – Disse para Mel enquanto secava a mão no pano de pratos na cozinha após guardar a louça que sujamos.
— Já chamei o Uber e faltam três minutos pra chegar, Nina. – Respondeu indo em direção ao portão.
Peguei minha jaqueta pendurada no mancebo da entrada de casa e joguei na mochila. Morar em São Paulo é encarar as quatro estações do ano em um mesmo dia. Tranquei a porta e corri até Mel, que já me esperava no Uber que tínhamos chamados.
Chegamos ao parque depois de quase uma hora devido ao trânsito caótico. Um dos acessos principais estava fechado por conta de uma exposição de cachorros que estava acontecendo, deixando tudo ainda pior do que o comum.
Corremos para a fila assim que saltamos do carro, pois logo começariam a distribuir as senhas para a compra do livro "Perigos da noite". Já roía o talo das unhas em ansiedade e assim que peguei meu exemplar, passei os dedos pelos relevos da capa, observando os detalhes. Era uma das mais lindas que tinha visto nos últimos tempos. Um caminho de pedras que finalizava em um céu com acabamento holográfico e um corvo pousado em um dos galhos de uma árvore estrondosa que parecia estar saindo do papel. Capas bem feitas sempre me deixaram mais curiosa pela história. Por mais que não devesse "julgar o livro pela capa", eu não conseguia deixar de julgar – Me julgue!
Abri-o com cuidado e levei-o ao nariz, dando uma fungada profunda naquela belezura ainda virgem; sem marcas e sem vícios.
— Nossa, Nina, você ainda vai se intoxicar com esses livros! – Exclamou a loira boquiaberta.
— Vou nada, miga. Cheirinho de livro novo faz-me sentir viva! – Respondi com um sorriso largo, levando o livro ao nariz novamente. – Cheiro de livro novo, café recém-coado e barriga de filhote, claro! – Conclui caminhando para a mesa de autógrafos.
Segui pelo labirinto de contenção e, chegando ao final, apoiei meu exemplar na linda mesa de madeira oferecendo-o para que o autor pudesse assiná-lo.
— A quem devo a honra de dedicar meu mais novo filho? – Perguntou Bianchi com sua voz serena.
— Marina. Marina Toledo! – Respondi com a maior firmeza que consegui.
— Obrigado, Marina! Que a senhorita consiga desvendar os "perigos da noite" antes que seja tarde demais! – Brincou com o título do livro, abaixando seus óculos enquanto dava uma piscada arteira.
— Sou eu quem te agradeço por suas maravilhosas histórias, senhor Bianchi. Seus livros vêm me ajudando muito. Estou estudando pro vestibular em letras e sonho ser escritora. Me inspiro no seu trabalho para correr atrás desse sonho. – Expliquei ainda tímida.
— Muito bom! Marina, então quando estiver com algum livro pronto me mande; eu adorarei conhecer. – Disse serenamente ao me oferecer um cartão, tirado do porta-cartões de metal prateado, com as iniciais C.B gravados em algo brilhante, parecido com ouro.
Estendi minha mão para alcançar o pedaço de papel preto, tentando esconder a tremulação perante o meu maior ídolo desde que aprendi a ler romances policiais e agradeci gentilmente.
— Ah! Me chame apenas de Cláudio. Essas formalidades fazem pesar os anos nos meus ombros. – Soltei uma gargalhada sem nem tentar conter a alegria e retornei ao encontro de Mel que me aguardava do lado de fora da fila.
— Cláudio Bianchi quer eu envie minha história quando estiver pronta... – Sussurrei para minha amiga, me segurando para não gritar e demos alguns pulinhos no lugar antes de decidirmos pegar algo para beber e aproveitar o restante da tarde gostosa no parque.
— Sabe Mel, preciso encontrar minha inspiração novamente. Já faz tantos meses que não consigo escrever nada decente... – Perdi meu olhar no infinito, sentindo uma angústia crescer em meu peito.
— Marina, o que você precisa é esquecer aquele babaca e tudo o que aconteceu para que qualquer bloqueio de criatividade acabe. Não é o fim do mundo. Somos jovens e quem quer um namorado na facul? – Melanie deu uma cotovelada em meu braço.
— Ouch! – Exclamei, esfregando a mão no local onde fui golpeada, fazendo-a revirar os olhos com exagero.
— Eu sei, Mel! Eu sei, mas é difícil. Não é pelo término, você sabe, mas ele feriu minha honra, traiu minha confiança, quebrou algo importante dentro de mim! – Respondi exaltada, sentindo meu coração acelerar só de lembrar-me daquele ser que eu chamava de namorado até o início do semestre.
— Alooou, somos jovens. Pra que mais serve essa tal de honra se não para ser ferida? – A careta de Melanie me fez rir copiosamente. – Além do mais, você não faz mais nada a não ser estudar para o vestibular.
— Você tem razão, Mel. Vamos pedalar um pouco e parar de falar naquele filhote de cruz-credo? – Sugeri enlaçando o braço de minha amiga e seguimos para o local aonde alugavam bicicletas.
Não queria pensar no que estava fazendo e no porque estava fazendo. Não tinha outra opção a não ser passar na universidade com uma pontuação boa e rezar para meu pai respeitar minha escolha, já que aceitar era um passo muito grande para sua teimosia.
Ficamos a tarde toda pedalando, fofocando sobre as coisas da vida, curtindo o domingo ensolarado e no fim do dia sentamos no gramado em frente ao lago e apreciamos o dia acabar.
Precisava colocar um pouco de vida nos meus dias, que vinham sendo cinzentos há tempo suficiente.
Passava das nove da noite quando cheguei em casa e fui recebida pelo cheiro da comida da minha mãe, que dominava todo o lugar, fazendo meu estômago roncar na hora.
— Huuuum! Que delícia... – Dei um beijo em seu cabelo preso em um coque e lavei as mãos ao seu lado na pia da cozinha.
— Oi filha, chegou tarde. Como estão as aulas? Alguma novidade? Tem andado tão calada. – Dona Evelyn perguntou enquanto colocava a travessa com queijo borbulhando sobre a mesa de jantar.
— Estou bem, mãe. – Menti, não estava tudo bem, mas certamente era melhor fingir do que seguir na minha autocomiseração.
— Boa noite, bonequinha. Como foi o seu dia? – Meu pai chegou à cozinha com os cabelos molhados e seu cheiro aconchegante de pós-barba e suéter guardado.
–– Foi bom! Hoje conheci o Cláudio Bianchi na Bienal. Sabe aquele escritor que sempre falo? Ele me deu um cartão e disse que quando estiver com meu livro pronto quer que eu o envie.
— Ai, ai, ai, Marina! Você e essa besteira de ser escritora... Precisa de algo de verdade, bonequinha. – O senhor Álvaro começou o seu sermão de sempre.
Assenti com a cabeça e me servi em silêncio. Depois de tantos anos aprendi que nunca poderia vencer uma discussão com o Sr. Toledo em toda sua sabedoria. Um dia talvez descobrissem o porquê de os pais acharem que podem planejar todo o futuro dos filhos sem ao menos consultar a vontade da pessoa mais interessada nele.
Saboreei meu pedaço de lasanha, respondendo ao interrogatório sobre a minha vida acadêmica e deixando-os felizes por saberem de minhas boas notas nas provas da semana anterior e evitando ao máximo qualquer assunto mais pessoal que certamente acabaria com minha mão sendo prometida a um herdeiro de algum investidor da sua empresa ou com algum cargo de confiança. E eu não saberia dizer qual das duas coisas me desagradava mais.
— Obrigada mãe, estava uma delícia. – Elogiei com verdade a comida deliciosa de minha mãe, que sorriu orgulhosa de seus dotes culinários. – Vou tomar um banho e preparar meu material para a aula de amanhã, pois estou exausta. Boa noite! – Dei um leve aperto nos ombros de meu pai ao passar por trás dele na mesa.
— Durma bem e nada de internet até tarde, mocinha! – Fui advertida como se tivesse doze anos, mas sorri carinhosamente para a imagem serena de minha mãe lavando a pilha de louças do jantar antes de sair da presença deles rumo ao meu desejado descanso.
Poderia acatar as ordens do meu pai e não ficar na internet até tarde, mas precisava fazer uma coisa antes de dormir. Algo que não saia da minha cabeça durante o dia todo. Tomei meu banho sem chegar a um acordo sobre o que escrever e fiquei encarando a tela do computador por algum tempo até que, reticente, comecei.
"Senhor Santarelli". – Muito formal.
"Romeu". – Muito simples.
"Vossa majestade". – Certamente ele iria gostar, mas eu ainda não havia perdido o juízo.
"Oi Romeu, boa noite! Obrigada pelo convite para conhecer sua banda, mas gostaria de dizer que não tenho interesse em assisti-lo e tão pouco acredito que seja o futuro rei do rock. Por gentileza não me inclua mais nesses seus eventos e nem encha minha caixa de mensagens, tenho mais o que fazer!"
Aaaah! Que seja!
Apertei em enviar e soltei uma lufada longa quando percebi que segurava o ar há tempo demais. Em menos de um minuto meu notebook soou com a notificação de mensagem, agitando minha barriga com alguma ansiedade.
Romeu: "Ora, ora! Quer dizer que você não acredita que eu serei o rei do rock? Que tal ir ver meu show e ficar com a cara no chão com toda minha maravilhosidade?
A resposta de Romeu continha um tom bem sarcástico e presunçoso como só esse "tipo" sabe ter.
Marina: "Não, obrigada! Prefiro ser pisoteada por mamutes!!!"
Respondi um pouco mais alterada do que devia, tentando finalizar o assunto.
Romeu: "NOSSA! PEGOU PESADO, HEIN, XUXU?"
Sua exclamação veio em caixa alta e com alguns emojis de espanto e eu senti o ardor da irritação subir pela minha garganta.
Marina: "Não se sinta mal, "majestade". Com certeza haverá "xuxus" de todos os tipos ansiando por toda a sua maravilhosidade, mas eu realmente não serei uma dessas. Tenha uma boa noite e faça o favor de esquecer que eu existo, pois eu farei o mesmo!"
Enviei tentando conter o nó no meu estômago, como nunca tinha experimentado. Acho que comi lasanha demais. Pensei fechando o notebook e apagando a luminária para me enrolar na coberta e dormir.
notas de rodapé:
"BOHEMIAN RHAPSODY" é uma canção da banda britânica de rock e foi escrita por para o álbum de 1975.
A UBER é uma plataforma que conecta usuários a motoristas de carros particulares parceiros. É uma opção de mobilidade a preços acessíveis.
EMOJIS são representações gráficas usadas em conversas online, nas redes sociais e em aplicativos como o WhatsApp.
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