06 - DINNER
Possíveis gatilhos para: Pensamentos suicidas (Nada gráfico, mas ainda está lá)
CAPÍTULO SEIS
❛jantar❜
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Tanto June quanto Evie odiavam completamente os jantares que seus pais organizavam. Mas Cora Belcon e Benício Wright sempre foram grandes nomes em Outer Banks, então obviamente, eles sempre deram grandes jantares, era quase inevitável. Desde pequena, Evie odiava tudo: os preparativos, as roupas, o exagero. June sabia disso muito bem.
Por outro lado, a mais velha apreciava apenas uma coisa: se arrumar e decorar. Era uma forma de se conectar com a mãe e preservar essa lembrança. Fora isso, todo o resto era um verdadeiro tormento.
Os lugares sempre ficavam claustrofóbicos depois de algum tempo. As pessoas eram muito chatas e só sabiam falar de assuntos fúteis e repetitivos, até mesmo June, que era conhecida principalmente por sua extroversão, sempre tinha a bateria social zerada em 1 ou 2 horas.
Ela não sabia exatamente pelo que era o jantar de hoje, mas não era como se os kooks realmente precisassem de um motivo para organizar esses grandes eventos. Muitas vezes eles queriam apenas se gabar de suas conquistas uns pros outros, fosse uma casa nova ou um fechamento de contrato importante. Parecia que eles estavam em constante competição, sempre sorrindo alegres nesses eventos, mas internamente pensando no que de maior eles poderiam fazer para superar uns aos outros.
É como dizem: Quanto mais se tem, mais se quer.
June segurou o copo de vinho, observando Evie sentada no chão, alheia ao ambiente. Enquanto os convidados conversavam animadamente aguardando o jantar, ela não pôde deixar de notar como sua irmã parecia um quadro deslocado. O vestido que ela usava era envolto em um tecido preto transparente que abraçava o corpo como uma segunda pele. O decote ombro a ombro coroado por uma delicada camada de plumas brancas. O tecido fluía até os pés, conferindo-lhe um ar de sofisticação que não combinava com o desleixo atual, sentada de pernas cruzadas, rindo baixinho enquanto Apolo tentava abocanhar um brinquedo.
Evie tecnicamente não devia estar alí, já que, por causa da tornozeleira, o espaço em que ela podia transitar se limitava a casa delas. Mas Benício era um homem influente, alguns favores cobrados e ele conseguiu uma exceção por uma noite. Ele podia usar esses favores pra tirar a tornozeleira dela também, ele só não quis.
Evie claramente não queria estar alí. Ela é o pai gritaram por horas até Benício convencer — Lê-se obrigar — a filha a comparecer no evento. Ela teve que pegar um vestido emprestado de June, já que não tinha nenhum. Era um esforço desnecessário, mas por algum motivo, Benício insistia em investir nessa fachada de "família perfeita", com sua esposa jovem e linda que claramente não o amava e suas duas filhas perfeitas que ele queria controlar a todo custo.
As coisas estavam muito tensas dentro da casa. Não que ela não fosse antes, mas no último mês, as coisas estavam piores. Jenna e Benício pareciam em uma guerra fria — que June tinha quase certeza que tinha a ver com a volta de Adam —, Evie quase literalmente presa em casa e June puta da vida por Benício ter parado de pagar sua faculdade. Era um milagre que nenhum deles tivesse se matado ou matado uns aos outros naquela última semana.
June deu mais um gole no vinho, observando a cena com uma mistura de exasperação e ternura. Era quase cômico como Evie, mesmo obrigada a estar ali, conseguia transformar tudo em uma declaração de rebeldia silenciosa. Ela claramente não se importava com a elegância do vestido, o que fazia com que sua postura relaxada e descompromissada se destacasse ainda mais em meio ao ambiente rígido e sofisticado. As pessoas olhavam pra ela, cochichavam e julgavam, a "Garota perdida" sempre chamando a atenção mesmo sem querer.
Ela suspirou, desviando o olhar para os convidados. Eles fingiam sorrisos educados, mas suas vozes baixas eram tão audíveis quanto os cochichos maldosos do colégio.
— Tão bonita, mas tão problemática. — uma mulher comentou com outra, as taças de champanhe entre os dedos.
A mais velha virou o restante do vinho com um gesto impaciente. Ela sabia que Evie tinha razão em odiar esses jantares; eram insuportáveis para qualquer um que não estivesse interessado em aparências ou status. Ainda assim, havia algo incômodo em vê-la tão alheia, quase desafiadora, em um vestido emprestado que a fazia parecer uma boneca deslocada em uma vitrine.
Apolo, como sempre, parecia ser o único ali que não julgava nada. Ele finalmente capturou o brinquedo, arrancando uma risada baixa de Evie, que o acariciou distraidamente atrás das orelhas. June ficou tão focada na cena que não percebeu Sarah se aproximando até que ela estivesse sentada ao lado dela.
— Isso é um show à parte, não é? — Sarah comentou, sorrindo de canto enquanto observava Evie e Apolo. — Ela não parece desconfortável como você acha que estaria. É quase... uma declaração artística.
June soltou um riso fraco, girando a taça vazia entre os dedos.
— Declaração artística? Foda. É só a forma dela de mostrar que odeia tudo isso sem precisar dizer uma palavra.
— E funciona. — Sarah deu de ombros. — A quantidade de olhares para ela prova isso.
June arqueou uma sobrancelha, lançando um olhar curioso para a amiga.
— Pensei que você não fosse de reparar nesses detalhes... Não odeia tanto quanto eu essa divisão entre pogues e kooks?
— Odeio. — Sarah enfatizou, com um tom bem-humorado. — Mas isso não significa que eu não reconheça quando alguém sabe roubar a cena. E, convenhamos, sua irmã é ótima nisso.
June revirou os olhos, mas não conseguiu conter um pequeno sorriso.
— Ela rouba a cena porque não tenta. — June deu de ombros, colocando a taça vazia em uma mesa próxima. — Se tentasse, perderia a graça.
— Talvez. — Sarah inclinou a cabeça, observando o ambiente ao redor. — Mas, mudando de assunto, você viu o vestido de Charlene? Parece que ela saiu de um catálogo de anos 80.
June soltou uma gargalhada baixa.
— Vi, sim. É praticamente um ataque visual. Não sei como ela ainda acha que está arrasando.
— Porque ninguém tem coragem de dizer o contrário. — Sarah sorriu, cruzando as pernas e apoiando o queixo na mão. — E você? Está sobrevivendo ou só fingindo?
— Sobrevivendo, eu acho. — June suspirou. — Mas por pouco. Esses eventos sempre sugam a energia de qualquer pessoa normal.
Antes que Sarah pudesse responder, um burburinho discreto começou a se formar perto da entrada principal. Ambas seguiram o som com o olhar, curiosas, e então os viram: Kiara Carrera, acompanhada de seus pais. Enquanto os adultos davam sorrisos simpáticos, a adolescente parecia querer procurar o buraco mais próximo pra se enfiar.
— Kiara? — June franziu a testa ao reconhecer a garota.
— Não acredito... — Sarah murmurou, surpresa. — Kiara com os pais? E ainda por cima em um evento assim? Que tipo de chantagem foi necessária pra isso?
— Ou um milagre. — June tentou brincar, mas seu olhar permaneceu fixo na garota de cabelos cacheados.
Os Carrera eram um nome conhecido pela ilha, eram um caso raro de um pogue se casando com uma kook, então eles constantemente também davam o que falar, principalmente porque eles tentavam ao máximo se enturmar entre a tribo dos kooks, mesmo que todos falassem mal deles pelas costas e fizessem apostas ridículas sobre Anna Carrera se cansar do marido e querer voltar a vida de luxo, ou sobre a Kiara, que muitos se perguntavam de que lado da ilha iria acabar.
Ela usava um vestido bonito, preto e fluido, com um caimento assimétrico que dá um ar leve e despojado, a saia descendo em pontas irregulares. A parte superior tinha detalhes bordados, rendas e um toque de transparência, alças finas cobertas pelos cachos da garota, completamente soltos. No pé dela havia um tênis, um all-star branco — ou que um dia foi branco —. Não era o tipo de roupa que June estava acostumada a ver Kiara usando, mas não pôde deixar de notar o quão linda ela estava.
Kiara parecia completamente fora do lugar, mas ainda assim exalava uma confiança despretensiosa que contrastava com o ambiente engomado. June a observou atentamente, cada detalhe da garota captando sua atenção. Ela era como uma tempestade silenciosa, capaz de causar impacto sem sequer tentar.
Por um breve momento, Kiara virou a cabeça e seus olhos encontraram os de June. O coração de June deu um salto involuntário, e ela sentiu o sangue subir ao rosto. Havia algo quase magnético na maneira como Kiara sustentou o olhar, mas logo a expressão dela mudou. A raiva nos olhos de Kiara era inconfundível, e a forma como ela desviou o olhar de imediato, quase como se estivesse machucada, fez o estômago de June afundar.
Ok, ela merecia isso.
Sarah, June e Kiara eram muito amigas no 9º ano, quando Kie foi estudar na Academia Kook. Entretanto, quando Carrera e Cameron brigaram, assim como a loira, June também parou de falar com Kiara. Sim, era babaquisse, principalmente considerando que ela sabia exatamente o que tinha acontecido para Kiara e Sarah brigarem. Bom, June nunca teve muita coragem ou voz para nada, e também nunca soube o que fazer com os próprios sentimentos, então ela só ignorava e seguia em frente.
Sarah cruzou os braços, inclinando-se levemente na cadeira enquanto observava a cena. Completamente alheia à confusão de sentimentos da amiga ao lado.
— Bem, se Evie é a peça deslocada nesse jantar, Kiara é a artista rebelde que acabou de invadir a exposição.
June riu, mas seus olhos não deixaram de acompanhar os movimentos da garota, tentando entender o que ela estava fazendo alí. Mas então o jantar foi anunciado, e ela se obrigou a ignorar aquilo.
[•••]
As conversas na sala de jantar começaram formais e polidas, com risadas forçadas e comentários sobre negócios ou viagens recentes. Evie estava sentada entre Kiara e o pai dela, claramente contrariada. Enquanto June se encontrava ao lado do pai. A mais nova remexia a comida no prato, ignorando os olhares insistentes de alguns convidados. June apenas suspirou, apenas tentando ignorar isso como sempre fazia. Vai acabar logo, sempre acaba.
— Evie, querida, ouvi dizer que você está fazendo terapia. — A voz aguda de uma mulher, sentada mais próxima de Jenna, cortou o ambiente com um tom falsamente interessado. — Como está sendo? A terapia realmente ajuda?
O ar pareceu ficar mais pesado. O garfo parou a meio caminho do prato, e Evie ergueu o olhar com uma expressão de tédio evidente. June congelou no lugar, Sarah parou de cortar sua carne, e até Jenna pareceu desconfortável, direcionando seu olhar para a mulher que, claramente, só queria começar uma conversa para alimentar as fofocas.
— Tá sendo ótimo. — Evie respondeu com um sorriso vazio. — Especialmente quando as pessoas não fazem perguntas estúpidas.
Um silêncio constrangedor se seguiu à resposta, June disfarçou com uma tosse. Mas antes que alguém pudesse mudar de assunto, um homem do outro lado da mesa resolveu se intrometer.
— Mas é verdade que você está... como posso dizer... em condicional? — Ele sorriu, como se estivesse apenas curioso. — Ouvi falar da tornozeleira.
Benício largou o copo de vinho com um estalo audível, a mandíbula travada enquanto tentava conter a raiva. Mas Evie foi mais rápida.
— É, 'tô em condicional. — Ela respondeu, a voz carregada de ironia. — Quer saber mais? Posso mostrar a tornozeleira se quiser. Combina super com esse vestido.
A mesa explodiu em risadas nervosas e tosses forçadas, mas o constrangimento era palpável. June não sabia se ria ou se chorava. Benício finalmente decidiu intervir, seu tom carregado de sarcasmo.
— Não se preocupe, Evie está em reabilitação completa. — Ele lançou um olhar severo para a filha, um sorriso falso estampado no rosto. — Tenho certeza de que esse pequeno obstáculo vai ser superado. Afinal, ela só precisa aprender a... respeitar as regras.
Evie soltou uma risada curta, incrédula, apoiando o cotovelo na mesa e descansando o queixo na mão, olhando para o pai com um brilho desafiador nos olhos.
— Respeitar as regras, né? — Ela repetiu, quase degustando as palavras. — Engraçado você falar disso.
Benício franziu o cenho, mas manteve o sorriso educado, claramente tentando não perder a compostura na frente dos convidados. Jenna tocou levemente no braço dele, em um gesto que parecia mais um aviso do que uma tentativa de acalmá-lo.
O sorriso educado de Benício se manteve, mas havia algo perigoso no brilho de seus olhos quando ele se inclinou ligeiramente para frente, mirando diretamente em Evie.
— Engraçado é você falar de regras, Evie. — Ele começou, a voz baixa, mas afiada como uma faca. — Porque, se tem uma coisa que você faz com maestria, é quebrá-las. Desde pequena, sempre foi assim, não é? Desafiadora, cabeça dura... incapaz de seguir algo que não seja sua própria vontade.
Evie apertou os lábios, mas não desviou o olhar. June sentiu o estômago revirar. O silêncio ao redor da mesa era ensurdecedor.
— Benício... — Jenna tentou intervir, mas ele levantou uma mão, pedindo silêncio sem sequer olhar para ela.
— E olha onde isso te levou. — Ele continuou, implacável. — Uma tornozeleira no lugar de uma medalha, um histórico criminal ao invés de um diploma. Enquanto outras filhas dão orgulho, você nos dá manchetes de fofocas.
Evie riu baixinho, mas era uma risada sem humor, carregada de mágoa. June apertou o garfo com tanta força que seus dedos ficaram brancos. As irmãs sabiam que ele era bom nisso — ferir sem parecer que estava tentando. Benício ergueu sua taça de vinho, fingindo desviar o foco da filha, mas sua voz carregava a mesma intenção cortante.
— Vocês sabem como é. — Ele começou, encarando os convidados como se estivesse compartilhando uma história trivial. — Sempre existe aquela ovelha negra na família, não é? Aquele alguém que... digamos, testa nossos limites.
Algumas pessoas riram, claramente desconfortáveis, mas ninguém ousou interromper. June sentiu o peso de cada palavra, mesmo que ele não olhasse diretamente para ela ou falasse diretamente pra ela. Ela quis dizer algo, quis muito, mas sua garganta simplesmente se fechou, a sufocando. Aquilo não ia terminar bem.
— Claro, todos nós fazemos o nosso melhor. — Benício continuou, girando a taça nos dedos com um sorriso ensaiado. — Mas nem sempre o esforço é suficiente. Alguns filhos simplesmente... escolhem o caminho mais difícil. E cabe a nós, como pais, tentar guiá-los, mesmo que eles insistam em tropeçar a cada passo.
— Benício. — Jenna tentou novamente, sua voz mais firme desta vez, mas ele apenas ignorou.
— É frustrante, é claro. — Ele disse, com um suspiro teatral. — Quando você dá tudo, investe tanto, e o retorno é... bem, o oposto do que esperava. Mas, no fim, é assim que aprendemos a ter paciência. É uma lição, não é?
Os olhos de Evie estavam fixos na toalha de linho à sua frente, mas sua mandíbula estava cerrada. Ela também sabia que, para todos ali, parecia que ele estava apenas compartilhando um desabafo educado. June trocou olhares com Jenna, um olhar que implorava. Fala alguma coisa! Mas as duas ficaram quietas.
— E a paciência, meus amigos, é uma virtude. — Ele concluiu, levantando a taça em um brinde casual. — Especialmente quando se tem filhos tão... peculiares.
A sala ecoou com risadas educadas, June fechou os olhos, mas os abriu novamente quando escutou o rangido da cadeira, o som alto chamou a atenção de todos. Evie apenas se levantou sem dizer nada, seus passos rápidos ecoando pelo piso de mármore, enquanto ela saia da sala de jantar, acompanhados pelo som das unhas de Apolo, que prontamente a seguiu.
Merda!
— Existe algo tão desestruturante como uma filha? — June desviou o olhar da porta por onde Evie tinha saído para encarar o pai. Apenas para encontrá-lo já a encarando. Ah, então agora isso é sobre mim também?
A raiva surgiu no peito de June ao ver a expressão tão suave no rosto de Benício, o tom tão neutro, como se estivesse falando sobre o tempo. E ela desejou poder fazer mais do que simplesmente encarar o pai agora. Como talvez torcer seu pescoço, ou bater em sua cabeça, enfiar um garfo em seu olho, ou jogá-lo ao mar e deixá-lo sozinho para se afogar lentamente. Qualquer uma dessas coisas serviria.
— Nós entendemos totalmente, não se preocupe. — Anna Carrera disse, com um gesto displicente. O marido ao lado dela apenas acenou, se mantendo em silêncio.
— Vocês 'tão de sacanagem, né? — Kiara se virou para os país, a indignação bem clara em sua feição. Não que ela fizesse exatamente um esforço pra esconder.
— Kiara... — Mike Carrera provavelmente tentou impedir a filha de causar uma cena, mas ela o ignorou totalmente, se levantando e saindo pela mesmo direção que Evie.
June largou os talheres com força sobre a mesa, o som seco quebrando o silêncio que Kiara deixou para trás. Ela viu Sarah tentar abrir a boca pra dizer algo, mas Ward Cameron a encarou, fazendo com que ela apenas se escolhesse na cadeira. Cansada daquilo, June se colocou de pé, se virando na direção em que a irmã e a ex-amiga seguiram.
— Eu conheço algo mais desestruturante do que uma filha. — June ainda pôde ouvir a voz da madrasta enquanto cruzava a porta. — Um pai.
[•••]
Evie chegou ao cais com passos pesados, as lágrimas ameaçando escorrer, mas sua expressão permanecia rígida. Apolo trotava ao seu lado, o som de suas patas sobre a madeira acompanhando o ritmo da respiração irregular da garota. Assim que alcançou o fim da estrutura, Evie se sentou abruptamente, enterrando o rosto nas mãos.
Apolo parou ao seu lado, arfando levemente, e se acomodou próximo, apoiando a cabeça pesada em sua perna. A presença do cachorro era reconfortante, mas não suficiente para afastar o turbilhão de emoções que a consumia.
Ela respirou fundo, levantando o rosto para encarar o mar escuro e calmo à sua frente. O som das ondas batendo suavemente contra os pilares do cais parecia zombar de sua inquietação. A raiva fervia em seu peito como uma tempestade. Cada palavra dita por Benício estava gravada em sua mente, como lâminas afiadas que a cortavam por dentro. "Ovelha negra", "fracasso", "tropeçar". Ela sentiu a garganta apertar, mas se recusava a deixar as lágrimas rolarem. Não aqui, não agora.
Não era a primeira vez que ele dizia coisas assim, ela não devia ficar surpresa nem tão magoada com aquilo. Mas esse era o ponto, ela sempre ficava, e Benício sabia que ela ficava. Parecia que ele dizia essas coisas de propósito, apenas para testar os limites e ver quanto tempo ela aguentaria.
Apolo sentou-se ao lado dela, inclinando a cabeça como se entendesse sua dor. Evie finalmente se permitiu desabar, os soluços rasgando o silêncio da noite. Ela abraçou o pescoço do cachorro, que não reclamou nem se afastou, apenas permaneceu ali, uma presença constante em meio ao caos.
— Você é o único que me entende, sabia? — Ela murmurou, sua voz trêmula. — Só você não espera nada de mim.
O cachorro lambeu sua mão, como se concordasse. Evie riu baixinho, mas o som logo se transformou em um novo soluço. Ela fitou a água abaixo do cais, hipnotizada pelo reflexo das luzes tremeluzentes que dançavam na superfície negra e inquieta. O pensamento veio como um sussurro, sutil e persistente: "E se eu simplesmente pulasse?"
Ela apertou os braços ao redor de Apolo, como se pudesse afastar a ideia com o calor do cachorro. Mas o peso daquele pensamento não se dissipava. Pelo contrário, parecia se enraizar. Era tentador, tão tentador. Era só isso, ela pulava, e tudo acabava.
"Seria rápido?" Evie se perguntou. A água gelada tomaria seu corpo antes que pudesse sentir qualquer dor? Ela podia imaginar o silêncio absoluto que viria, uma pausa definitiva de toda aquela angústia. Era tentador, mas ao mesmo tempo assustador. Havia algo cruel na tranquilidade que o mar oferecia; uma promessa de paz, mas com o custo mais alto.
Ela fechou os olhos, respirando fundo. O cheiro de sal e madeira molhada encheu seus pulmões, misturado com o aroma familiar de Apolo. "Mas e se eu falhasse? O que restaria de mim?" Uma parte de si sabia que não queria desaparecer, mas sim encontrar uma maneira de ser vista. Não pela lente distorcida de Benício, ou pelo julgamento silencioso do Dr. Daniel, ou mesmo pelo olhar compassivo do Jenna. Ela queria ser vista como algo mais do que o peso de seus erros.
— Você acha que alguém sentiria minha falta? — Evie perguntou a Apolo, sua voz um sussurro rouco, como se o cachorro pudesse responder.
Ela sabia que Apolo ficaria. Sabia que, de alguma forma, ele sentiria a ausência dela como ninguém mais. Era uma responsabilidade injusta para um animal, mas naquele momento, parecia ser a única coisa segurando-a ali. A ideia de que, sem ela, ele estaria sozinho.
June sentiria minha falta? Jenna sentiria minha falta? JJ sentiria minha falta? Ela não tinha certeza, ela devia ter, mas não tinha, e isso a matava mais do que as palavras de Benício as vezes.
— Eu podia simplesmente... — Ela sussurrou, balançando os pés sobre o vazio.
Apolo latiu, chamando sua atenção. Evie suspirou, enxugando as lágrimas com o dorso da mão.
— Não se preocupe, grandão. Não vou fazer nada estúpido. Já te deixei preocupado demais antes.
Evie respirou fundo novamente, os soluços se tornando um murmúrio abafado. Olhando para o mar, ela percebeu algo estranho: não era o mar que a atraía, mas o silêncio que ele prometia. E isso era o que mais a assustava.
Sua mente era constantemente barulhenta, até mais do que sua casa. Ela queria que o barulho parasse, seria essa a única forma?
Ela olhou para o céu, onde as estrelas brilhavam intensamente, ignorando seu sofrimento. O vento trouxe o som distante das ondas, e por um momento, ela se permitiu imaginar que estava em outro lugar. Longe dos olhares julgadores, longe das palavras cortantes de Benício, longe de tudo.
— Você tem um gosto peculiar pra lugares. — A voz veio de trás, firme, mas sem ser agressiva. Evie girou a cabeça para encarar Kiara, que estava a poucos passos de distância, com as mãos nos bolsos do moletom. Apolo rosnou baixinho, mas logo voltou a deitar, percebendo que ela não representava ameaça.
— E você tem um gosto peculiar pra momentos. — Evie rebateu, enxugando discretamente os resquícios de lágrimas antes de cruzar os braços. — O que tá fazendo aqui?
— Poderia perguntar o mesmo pra você. — Kiara deu mais um passo, parando ao lado dela, mas mantendo uma distância segura. Seus olhos foram do rosto de Evie para o mar, analisando a cena. — Mas acho que já sei a resposta.
Evie não respondeu de imediato, apenas voltou a olhar para a água. A presença de Kiara a incomodava, mas, ao mesmo tempo, era melhor do que estar sozinha com seus pensamentos. Mesmo que JJ falasse bastante dela, e até June falasse sobre ela quando as duas ainda eram amigas, Kiara Carrera ainda era uma completa estranha.
Kiara se sentou lentamente na beira do cais, cruzando as pernas enquanto mantinha os olhos no mar. Não parecia apressada para falar, e Evie não sabia se isso era irritante ou reconfortante.
— Então... — Kiara começou depois de um momento, sua voz suave. — Gritos internos ou só precisa de ar fresco?
Evie arqueou uma sobrancelha, lançando um olhar cansado para a outra garota.
— Isso é sua tentativa de ser engraçada?
— Não. — Kiara deu de ombros, mas havia um meio sorriso em seus lábios. — Só tentando decifrar se você quer que eu vá embora ou se tá aliviada por alguém ter vindo. — Evie bufou, balançando a cabeça enquanto olhava de volta para o mar.
— Você acha que me conhece ou algo assim?
— Não. — Kiara respondeu prontamente, a firmeza em sua voz pegando Evie de surpresa. — Mas isso não me impede de tentar.
Houve um silêncio tenso. Evie odiava como a honestidade de Kiara fazia parecer que ela estava ganhando. Mas, ao mesmo tempo, não tinha forças para mandar a garota embora.
— Não devia ter vindo atrás de mim. — Ela murmurou finalmente. — Isso aqui não tem nada a ver com você.
— Talvez não. — Kiara inclinou a cabeça, observando Evie de lado. — Mas acho que ninguém merece ficar sozinha quando claramente precisa de alguém.
— Eu não preciso de ninguém. — Evie rebateu, a raiva em sua voz mais uma proteção do que uma verdade.
— Certo. — Kiara respondeu, sem sarcasmo, apenas aceitação. — Então não precisa de mim. Mas isso não significa que eu vá embora.
Evie a encarou, confusa. Kiara parecia séria, e havia algo irritantemente tranquilo nela, como se não se importasse de esperar. Depois de um tempo, Evie bufou novamente, balançando a cabeça em descrença.
— Você é teimosa.
— Aprendi com os melhores. — Kiara sorriu, mas o sorriso era suave, quase solidário.
Evie desviou o olhar, voltando ao mar, sem saber o que responder. Ambas ficaram em silêncio, e a Wright não sabia se era desconfortável ou não. De todas as pessoas, Kiara era a última que ela imaginaria vindo atrás dela, e ainda assim, ela não conseguia entender o porquê ela estava alí.
— O que 'tá fazendo aqui, Kiara?
A cacheada suspirou, muito tranquila pra situação, apenas mexendo nas unhas, como se estivesse escolhendo palavras.
— Eu lembro de quando June falava de você. — Ela começou, desviando o olhar para o horizonte. — A irmãzinha corajosa dela. Que não levava desaforo de ninguém, com a opinião forte, e que ela invejava por não ter medo de nada.
Evie franziu o cenho. Ela não tinha ideia que June falava essas coisas dela. Que ela era uma estranha problemática tudo bem, agora que ela a invejava? Era esquisito. Já era estranho qualquer pessoa ter inveja dela, principalmente June.
— Na época eu achava exagerado. — Kiara continuou. — E então JJ comentou que você era amiga dele. E sabe, no início, eu fiquei preocupada. Afinal, você sempre foi falada. E o JJ parecia estar realmente preocupado com você, eu nunca vi ele tão preocupado assim. — A Carrera a encarou, como se quisesse que ela entendesse a magnitude disso.
Ela não entendia, no entanto. Quer dizer, obviamente JJ se preocupava, eles tinham se conhecido em circunstâncias certamente preocupantes, e agora eles tecnicamente eram amigos, mas ele não era assim com todo mundo? Parecia que era.
— Eu decidi confiar, mesmo que eu não entendesse o que uma kook como você iria querer com um pogue como ele. Mas então eu entendi... — Ela parou, a voz mais baixa, como se estivesse testando até onde podia ir. — No jantar, eu vi você. Eu realmente vi você, e então eu entendi.
Evie engoliu em seco, o desconforto evidente. Ela era um desastre, mas outra pessoa notar isso fazia a ferida parecer ainda mais exposta
— Você fala como se me conhecesse. — Evie disse, forçando um tom
desinteressado.
— Não conheço. — Kiara admitiu, cruzando os braços. — Mas conheço esse olhar. Já vi antes.
Evie estreitou os olhos, estudando a expressão da outra garota. Kiara parecia sincera, o que a irritava ainda mais. Ela odiava sinceridade. Era diffcil lutar contra algo que não era uma mentira. Desviou o olhar, sua mandíbula travada. Não queria ter essa conversa, não com Kiara, não com ninguém. Mas a garota estava ali, sentada, paciente, sem nenhuma intenção de ir embora. Isso a irritava e, ao mesmo tempo, fazia algo dentro dela vacilar.
— E o que você acha que viu? — Sua voz saiu mais desafiadora do que pretendia, mas era a única defesa que ainda tinha.
Kiara suspirou, pensativa. Não parecia com medo de responder, apenas considerando a melhor maneira de fazê-lo.
— JJ tem o olhar igual. — Evie prendeu a respiração. — Aquele olhar de quem 'tá cansado, mas que sempre aguenta tudo. Aquele olhar perdido, como se estivesse preso em um lugar onde ninguém realmente o enxerga. Onde todo mundo vê só o que quer ver.
Evie sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ela não queria admitir, mas as palavras de Kiara acertaram em cheio. Ela odiava isso. Odiava que alguém, especialmente alguém como Kiara, conseguisse enxergar algo que ela tentava esconder até de si mesma.
— Mais alguma anotação pra sua análise?
— Seu pai é um babaca. — Evie soltou uma risada curta, sem humor.
— Uau. E eu achando que precisava de anos de terapia pra descobrir isso.
— Não tô tentando te analisar, Evie. Só tô falando o óbvio. — Kiara deu de ombros o jeito como ele fala com você, o jeito como você reage... não precisa ser um gênio pra ver que ele te ferra toda vez.
Evie apertou os punhos sobre o tecido da calça. Ela queria rebater, dizer que Kiara não sabia de nada, mas a verdade era que ela sabia. Não pelos detalhes, mas porque aquele tipo de merda era visível. As pessoas só escolhiam ignorar porque era mais conveniente.
— E daí? — Evie soltou, a voz afiada. — Vai me dizer que eu devo ignorar? Que eu devo provar que ele 'tá errado?
— Vou dizer que ele não merece o poder que tem sobre você. — Evie piscou, surpresa pela simplicidade da resposta.
— E quem disse que eu deixo?
Kiara arqueou uma sobrancelha, como se soubesse que aquilo era uma mentira descarada.
— Ninguém chora no cais por alguém que não importa.
O silêncio se instalou novamente, apenas som das ondas preenchendo o espaço entre elas. Evie odiava como aquilo fazia sentido. Odiava que Kiara parecia enxergar através dela sem esforço nenhum.
— Você devia me odiar. — Ela murmurou quase sem perceber.
— Por quê?
— Porque eu sou o tipo de pessoa que faz merda. O tipo de pessoa que as pessoas odeiam. — Kiara bufou, balançando a cabeça.
— Eu não odeio o JJ.
Evie arregalou os olhos, pegando o
subentendido imediatamente. Ela analisou a cacheada por uns dois segundos. Ela desviou o olhar, encarando o mar, seu peito apertando. Era estranho. Ela achava que JJ era único nesse sentido, nessa forma específica de existir ao lado dela sem empurrá-la para longe ou tentar puxá-la para perto. O jeito como ele a enxergava sem esforço, sem precisar que ela dissesse nada. Mas Kiara… Kiara parecia ter o mesmo instinto. E o mais bizarro era que, pela primeira vez, ela se pegou questionando se era por isso que JJ gostava tanto da garota.
Não, não só por isso. Era porque Kiara era boa. Diferente de Evie, que só afundava em si mesma e puxava os outros junto, Kiara parecia ter um talento para perceber quando alguém estava se afogando e simplesmente se jogar na água também. Era estúpido. Mas também era… familiar.
Porque, por mais que odiasse admitir, Evie sabia que faria o mesmo. Ela se jogaria no caos por quem importasse, mesmo que isso significasse se machucar no processo. E talvez fosse por isso que ela e JJ se entendiam de um jeito que Evie nunca conseguiu entender com mais ninguém. Porque, no fundo, eram iguais. E Kiara também era.
Ela soltou o ar lentamente, desviando o olhar para o mar. A noite estava silenciosa, mas sua mente continuava barulhenta.
— Isso é irritante. — Ela murmurou, mais para si mesma do que para Kiara.
— O quê? — Kiara perguntou, genuinamente curiosa.
Evie balançou a cabeça, soltando um riso curto e cansado.
— Você. O JJ. Essa coisa de me olharem como se entendessem alguma coisa que eu nem consigo entender direito.
Kiara sorriu, um sorriso pequeno, mas não de escárnio. Ela soltou um suspiro longo e ficou em silêncio por um momento. Então, sem aviso, pegou uma pedra pequena ao lado e a lançou no mar. Plop.
— O que foi isso? — Evie perguntou, confusa.
— Joguei fora uma opinião de merda.
Evie piscou.
— O quê?
— É isso que a gente faz com coisas inúteis. — Kiara pegou outra pedra e entregou na mão de Evie. — Agora sua vez.
Evie olhou para a pedra e depois para Kiara.
— Você tá falando sério?
— Vai, joga. Isso não presta pra nada.
Evie hesitou, mas então apertou a pedra nos dedos e a lançou no mar com força. Plop. Kiara sorriu de canto.
— Viu? Agora tem uma coisa a menos na sua cabeça. — Evie balançou a cabeça, rindo baixo.
— Você é muito esquisita.
— Eu sei. — Kiara sorriu, satisfeita. — Mas funcionou, né?
Evie respirou fundo. O peito ainda pesava, mas… um pouco menos. Talvez Kiara não fosse tão insuportável assim.
Elas ficaram algum tempo em silêncio, mas que foi interrompido pelo que pareciam passos correndo. Ambas se viraram para trás, dando de cara com uma June ofegante.
— Finalmente achei você! — Ela exclamou. — Eu 'tô te procurar a um tempo. Eu até voltei pra dentro da casa umas 3 vezes. Você tava aqui o tempo todo?
June olhou para Kiara, que retribuiu o olhar, as duas se encararam por alguns segundos. Tinha uma intensidade esquisita no olhar delas de Evie não pôde deixar de notar, uma mistura de raiva, culpa e... alguma coisa a mais. Uma tensão diferente.
— Tava. — A mais nova se colocou de pé, sendo acompanhada por Apolo. Que caminhou até June, tentando se apoiar as patas em seu vestido azul, a tirando de seu possível transe.
— Precisamos voltar. — Ela acariciou a cabeça do cão, então voltou a olhar para Kiara. — Seus pais querem te matar.
— Que novidade. — Carrera murmurou, enquanto também se colocava de pé. — Bom, nos vemos por aí, Wright. — Ela acenou e saiu andando, Evie não soube se ela tinha falado com ela ou com June, mas de qualquer forma não se importou.
— Você nem sabe. Jenna acabou com o jantar.
— O quê? — June enganchou seu braço no da irmã, a puxando para que ambas caminhasse até a casa.
— Encontrei a Sarah quando voltei. Aparentemente ela ficou muito puta com as coisas que o papai falou pra você. Fez uma cena enorme. Por pouco não deu uma voadora na cara dele. — Ela começou a explicar enquanto elas andavam, com Apolo em seu encalço. — Ah, eu queria tanto estar lá pra ver, mas eu tinha que procurar você. De qualquer forma, quer apostar quanto que isso vai virar fofoca amanhã? Vai ser o maior bafafa. Papai vai ficar doido.
5626 palavras.
Era pra eu ter postado mais cedo, porém imprevistos surgiram (Tive que ser babá)
Enfim, tivemos interação de Kiara e Evie. Vocês gostaram da dinâmica delas? (Tô muito ansiosa pra ela interagir com todos os pogues, nem minto).
Daddy Issues brabo o dessas meninas, e calma que piora.
Não tenho muito mais o que falar, só espero que vocês tenham gostado. A gente se vê, beijinhos.
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