DÉCIMO QUINTO
Carlisle estava tão perto, e ainda assim parecia distante, como se já tivesse aceitado o que estava por vir. Eu podia ter me levantado, virado as costas e deixado tudo aquilo para trás, mas algo mais forte me mantinha presa ali, ao lado dele. Talvez fosse a sensação de que, de alguma forma, éramos parte do mesmo caos.
Meus olhos se fixaram no chão, incapaz de encará-lo enquanto processava tudo o que ele havia feito. Carlisle, o homem que passou séculos sendo o pilar de sua família, agora estava desmoronando diante de mim, disposto a enfrentar um inimigo que não teria misericórdia.
— Você jogou tudo fora... — murmurei, quase para mim mesma, o peso daquelas palavras me atingindo lentamente.
Ele não respondeu de imediato. A tensão no ar parecia aumentar, como se ambos soubéssemos que as palavras certas não existiam para aquela situação. Ele havia cavado sua própria cova, e eu estava ali, testemunhando o fim de algo que jamais deveria ter chegado a esse ponto.
— Algumas coisas... simplesmente acabam assim — ele finalmente disse, a voz baixa e amarga. — Não importa o quanto tente, você não pode escapar de quem você é.
Eu me virei para encará-lo, tentando entender se ele realmente acreditava nisso. Mas talvez fosse isso que o levava a aceitar seu destino, a vontade de não lutar mais contra o que ele considerava inevitável.
— Ainda há tempo — murmurei. — Você ainda tem todo o tempo do mundo.
Carlisle apenas balançou a cabeça, seu olhar perdido nas sombras da noite.
Eu não sabia se estava ali para ajudá-lo ou apenas para dizer adeus.
A falsidade no sorriso de Carlisle era tão nítida quanto o peso que ele carregava nos ombros. Ele parecia zombar de si mesmo, como se a versão dele que eu havia conhecido fosse apenas uma ilusão passageira.
— Não há tempo para o Carlisle insano ao qual você conheceu — ele repetiu, cada palavra carregada de um amargo desespero. — Havia tempo para o Carlisle antigo, misericordioso, que amava sua família o suficiente para não colocar nenhum deles em perigo.
— E por que você acha que essa versão já não existe mais? — rebati, sentindo uma frustração crescente. — Você ainda é capaz de fazer a escolha certa. Não importa o quanto tenha se perdido, sempre há um caminho de volta.
Ele balançou a cabeça lentamente, o sorriso desaparecendo de seus lábios.
— A questão não é se eu posso... — Ele fez uma pausa, como se procurasse as palavras. — A questão é se eu quero. Aquele Carlisle se perdeu quando permiti que algo maior... algo mais sombrio tomasse conta de mim. Algo que eu nunca senti antes, como se meu corpo fosse feito apenas para viver esse sentimento louco.
Eu sentia o peso das palavras de Carlisle, cada sílaba impregnada de uma aceitação que me aterrorizava. Agora parecia alguém completamente diferente, alguém que havia aceitado o caos, a própria ruína.
Ele estava ali, ao meu lado, sentado com a serenidade de quem tinha decidido não lutar mais. Seus olhos fixos em mim, observando cada movimento meu, como se estivesse me gravando em sua memória para os últimos momentos.
— Você nem ao menos tentou — eu rebati, minha voz saindo mais áspera do que planejava, tentando cutucar algo dentro dele, qualquer coisa que o fizesse reagir, despertar daquela letargia perigosa.
Ele ergueu uma sobrancelha, e um sorriso carregado de ironia apareceu em seu rosto.
— O que conversamos sobre o silêncio, querida? — Sua voz suave demais, como se estivesse me lembrando de uma piada interna que só ele parecia entender.
Eu balancei a cabeça, minha raiva e frustração crescendo. Como ele podia estar tão tranquilo enquanto caminhava para sua própria destruição?
— O homem que vai te matar está vindo, e você está aí... Calmo, sereno! — Eu explodi, minha voz mais alta agora, como se quisesse sacudi-lo e tirá-lo daquela apatia insuportável.
Ele não desviou o olhar de mim. Não houve surpresa, nem arrependimento em seus olhos. Apenas uma paz inquietante, um tipo de aceitação que beirava o desprezo por si mesmo.
— Estou calmo e sereno porque tudo que preciso, está aqui — ele disse.
O silêncio caiu entre nós. O que Carlisle precisava, o que ele queria... era realmente eu? A ideia me fez estremecer. Eu estava ali para salvá-lo, ou apenas para testemunhar sua queda?
Cada segundo que passava sem ele reagir, sem ele lutar, me fazia sentir mais impotente.
Eu senti meu coração acelerar no momento em que as palavras saíram da minha boca.
— Então lute por mim — pedi, com a voz mais firme do que eu imaginava que fosse capaz.
O olhar de Carlisle, antes vazio e distante, pareceu mudar. Algo se quebrou dentro dele, ou talvez se consertou. Não era um brilho completo, mas uma centelha de algo que eu ainda não sabia nomear. Seus olhos me analisavam, percorrendo cada detalhe do meu rosto, como se buscassem uma razão para me obedecer, para acreditar que o que eu estava dizendo fazia sentido. E ali, naquele instante, parecia que o mundo havia parado. Como se o próprio tempo estivesse nos observando, esperando por sua decisão.
— Não lute por você, Carlisle — acrescentei, quase num sussurro. — Lute por mim. Por sua família...
Ele permaneceu em silêncio, mas eu pude ver o efeito que minhas palavras tiveram. Ele não era mais o homem derrotado que se sentou naquela escada. Não era mais aquele que havia desistido. Havia um conflito dentro dele, um que eu sabia que ele estava tentando resolver.
Ele continuou a me encarar, e por um momento, pensei que ele iria rejeitar meu pedido, que tudo o que dissemos até ali não tinha feito diferença. Mas então, lentamente, Carlisle se levantou.
Quando ele estendeu a mão para mim, meus olhos acompanharam o movimento, e sem pensar duas vezes, aceitei o gesto. Sua mão estava firme, gelada.
— Vamos — disse ele, sua voz mais suave, mas carregada de significado. — Você me deu um motivo para usar a cozinha.
Por um segundo, fiquei confusa. Cozinha?
E, pela primeira vez, senti que talvez, só talvez, houvesse uma chance de reverter o que estava prestes a acontecer.
Carlisle abriu a porta da cozinha, e as luzes acesas imediatamente trouxeram uma sensação de familiaridade. Ele puxou um pequeno banco que ficava no balcão, gesticulando para que eu me sentasse, enquanto seus olhos faziam questão de me observar com uma gentileza silenciosa. Obedeci, sem questionar, e me sentei.
De onde estava, eu o assistia se mover com precisão, indo direto aos legumes dispostos sobre a bancada. Pareciam frescos, recém-comprados. Isso me pegou de surpresa. Ele havia reabastecido o lugar? Por quê? A resposta veio como um golpe certeiro: ele estava esperando por mim. Desde o início.
Meu peito apertou ao perceber o quanto Carlisle havia planejado esse momento. Mesmo envolto em sua própria tempestade interna, ele havia se preparado para o meu retorno, como se soubesse, de alguma maneira, que eu voltaria. Isso me abalou mais do que eu estava disposta a admitir.
Ele começou a cortar os legumes com uma agilidade que só um vampiro poderia ter, os movimentos suaves, mas rápidos, quase automáticos, como se fosse algo natural para ele. Eu o observava, imersa em pensamentos.
— O que está fazendo? — perguntei, quebrando o silêncio.
Ele me lançou um olhar rápido e sorriu.
— Cozinhando — respondeu como se fosse óbvio, voltando sua atenção à tábua de corte.
— Vampiros não comem — retruquei, cruzando os braços.
Carlisle parou por um momento, a faca suspensa no ar, e então olhou para mim, seu sorriso suave ainda nos lábios.
— É para você.
Aquela resposta me deixou sem palavras.
— Sua sorte que eu gosto de legumes — brinquei, apoiando meus braços no balcão, tentando aliviar a tensão crescente.
Carlisle sorriu para mim, aquele sorriso contido, que sempre parecia carregar muito mais do que palavras poderiam expressar.
— Vou te ajudar — declarei, saindo do banco com determinação. Peguei uma das facas que estava à mão e me aproximei dele, começando a cortar os legumes ao seu lado. — Chega pra lá — brinquei novamente, empurrando-o levemente com meu corpo, marcando meu espaço na bancada.
Ele riu baixo, cedendo espaço, mas sem se afastar muito, como se gostasse da proximidade. Naquele momento, cortando legumes em silêncio, parecia que, por um breve instante, o peso de tudo desaparecia, e éramos apenas duas pessoas em uma cozinha, tentando esquecer o mundo lá fora.
— Por que fez isso? — perguntei, cortando o último legume, enquanto aquela dúvida, que vinha me corroendo por dentro, finalmente escapava. — Eu sei que você disse que não se encontrou, mas...
— Sim — Carlisle me interrompeu, com sua voz baixa e firme. — É exatamente por isso.
Assenti, sentindo um peso se acumular no ar.
— Sua família, sua esposa... Estão te esperando quando tudo isso terminar — falei, tentando resgatar algum fio de esperança para ele.
Carlisle parou por um momento, seus olhos escuros se voltaram para mim, sem o menor traço de emoção aparente.
— Esme não é mais minha esposa — ele confessou, sem o menor traço de tristeza, como se aquela fosse apenas mais uma constatação de sua longa vida. — Não existe amor entre nós há séculos. Apenas a convivência amigável que cultivamos com o tempo. Nada mais.
Olhei para a comida que estávamos preparando, tentando processar suas palavras. Ele havia se separado por minha causa? Não, não podia ser. Poderia ser por qualquer outra razão. Como ele mesmo disse, o amor entre eles havia desaparecido há séculos. A realidade do que ele estava me dizendo era como um peso na minha garganta.
— Enfim, ao menos seus filhos estão te esperando — sorri, tentando trazer algum alívio àquela conversa pesada.
Carlisle, que estava concentrado nos legumes à sua frente, parou de repente. Seus olhos, normalmente tão serenos e compassivos, agora estavam fixos em mim, intensos e cheios de uma expectativa silenciosa.
— E você? — ele perguntou, sua voz mais suave do que antes, quase um sussurro. — Vai estar me esperando quando tudo isso acabar?
Fiquei em silêncio. O que ele realmente estava perguntando? Não esperava aquela pergunta, e mais do que isso, não sabia se tinha uma resposta.
Pensei na nossa conexão, na intensidade dos momentos que compartilhamos, na vulnerabilidade que ele havia mostrado. Eu queria dizer que sim, que estaria ali, esperando, mas havia uma parte de mim que hesitava, presa ao medo do desconhecido e das complicações que isso implicaria.
Carlisle continuou a me olhar, a expectativa nos seus olhos se transformando em uma espécie de esperança.
— Você vai estar esperando para conhecer a versão ao qual queria ter te mostrado desde o início? — ele perguntou, a voz carregada de uma sinceridade que fazia meu coração acelerar. — O Carlisle que te daria o mundo, sem machucar ninguém no percurso.
Suas palavras me tocaram profundamente.
Ele ficou tão próximo do meu rosto que a única coisa que conseguia sentir era a intensidade da sua presença. Os olhos escuros de Carlisle pareciam ter uma profundidade infinita, e, por um momento, tudo ao nosso redor desapareceu. Era apenas nós dois, perdidos em um espaço onde as palavras eram desnecessárias, onde o silêncio falava mais do que qualquer conversa poderia.
— C-Carlisle... — a voz saiu arrastada, um sussurro quase hesitante, mas o calor da sua proximidade me deixava sem ar. — Os legumes..
— O que tem eles... — ele murmurou, sua voz baixa e envolvente, como se cada palavra fosse um convite para ficar ali, para esquecer do mundo.
— E-estão queimando! — respondi rapidamente, o pânico e a urgência agora misturados com a risada que se formava em meu peito.
No mesmo instante, ele se afastou com uma agilidade sobrenatural, dirigindo-se ao fogão com a mesma determinação que havia mostrado antes. Carlisle retirou os legumes do fogo, sua expressão agora focada, mas logo um sorriso brincou em seus lábios. Ele se virou para mim, seus olhos brilhando com uma mistura de alívio e divertimento.
— Isso é o que você chama de "queimar"? — ele perguntou, rindo enquanto observava os legumes levemente chamuscados. Havia uma leveza em seu tom, como se ele estivesse se divertindo com a situação.
Rir era algo raro para mim nos últimos tempos, mas naquele momento, a tensão que tinha se acumulado nas últimas semanas parecia se dissipar. Era como se a simples presença dele, a forma como ele se movia com tanta graça e confiança, fosse capaz de transformar até mesmo um desastre na cozinha em algo divertido.
— Talvez eu não seja a melhor ajudante de cozinha — brinquei, passando a mão pelo cabelo, sentindo-me mais leve.
Ele se aproximou novamente, um brilho nos olhos que fazia meu coração acelerar.
— Você confia em mim? — ele perguntou, e a sinceridade em sua voz me pegou de surpresa. Queria responder com honestidade, mas a verdade era que, mesmo com todas as dúvidas que tinha, a única coisa que consegui dizer foi:
— Sim.
Ele sorriu, um sorriso que misturava alívio e determinação. Havia algo reconfortante em sua expressão, como se ele estivesse prestes a tomar uma decisão importante.
— Sobe para o quarto, e quando eu mandar, você desce. Tudo bem? — Ele apontou para a escada, e sua voz tinha um tom firme, mas gentil.
Franzi o cenho, a confusão se instalando. O que ele estava planejando? Dividi meu olhar entre ele e a escada, hesitante, mas acabei fazendo o que ele pediu. Caminhei lentamente em direção à escada, um misto de expectativa e ansiedade borbulhando dentro de mim.
Quando cheguei ao quarto, o ambiente me envolveu com uma sensação de intimidade. O lugar era familiar, lembrando-me da última vez que estive ali. Passei meus dedos pelas prateleiras dos livros, sentindo a textura das lombadas sob meu toque. Cada título parecia contar uma história, e a mente de Carlisle era um labirinto de experiências e conhecimentos que eu desejava explorar mais a fundo, talvez um dia.
Enquanto olhava ao redor, lembrei das palavras de Esme: "ele não leva ninguém para lá, é o paraíso dele." Agora, aqui estava eu, em seu quarto, cercada por suas coisas, enquanto ele preparava meu jantar na cozinha. Era irônico pensar que ele tinha criado um espaço sagrado para si, e eu tinha sido permitida a entrar.
O quarto exalava um ar de serenidade, com a luz suave que filtrava pelas janelas, criando sombras dançantes nas paredes. Cada objeto parecia ter sido colocado com cuidado, refletindo não apenas sua personalidade, mas também a vulnerabilidade que ele raramente deixava transparecer.
Sentei-me na cama, meu coração batendo acelerado, mas também com uma sensação de calma. Sabia que ele estava lutando contra seus próprios demônios, sabia que ele tinha escolhido isso por sua família.
Os minutos pareciam se arrastar, mas cada segundo passado ali tornava-se mais significativo.
Finalmente, a voz de Carlisle ecoou do andar de baixo, trazendo-me de volta à realidade.
— Grace, pode descer!
Levantei-me, um frio na barriga, e desci as escadas.
Assim que desci as escadas, logo avistei Carlisle, que estava em pé, com um sorriso nervoso no rosto.
— Feche os olhos. — Ele falou.
A princípio, não entendi o que ele queria, mas a confiança que sentia me fez obedecer. Ele colocou as mãos suaves em meu rosto, cobrindo meus olhos e me guiando com cuidado, como se estivesse me levando a um lugar especial. O toque dele era reconfortante, e eu me perguntei o que ele estava planejando.
Ouvi a porta se abrir, e a brisa fresca da noite acariciou meu rosto, trazendo um leve perfume de flores. Quando ele finalmente retirou suas mãos, abri os olhos devagar, meu coração batendo forte no peito.
O que vi me deixou sem palavras.
Bem no centro da entrada, havia uma mesa na rua, maravilhosamente posta. As luzes das velas tremulavam, lançando um brilho suave que dançava nas superfícies, criando um ambiente mágico. Os pratos estavam montados com uma elegância que parecia contradizer o fato de que ele era um vampiro que não precisava comer. Havia taças que refletiam a luz das velas, e flores frescas no centro da mesa, exalando um aroma doce.
Meu peito parecia ter parado, um misto de surpresa e emoção tomando conta de mim. A cena era tão inesperada e bonita que eu mal conseguia processar. Carlisle havia preparado tudo isso em tão pouco tempo...
— Se é minha última noite, talvez devêssemos eternizar. — Ele sorriu, puxando a cadeira para que eu pudesse sentar. — Me acompanha querida?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro