Além da Dor, Ainda Há Nós
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Meses se passaram desde a última vez que vi Jungkook, mas cada detalhe daquele dia ainda estava impresso em minha mente, como uma ferida que se recusa a cicatrizar. Meu apartamento, silencioso e sombrio, parecia guardar as memórias como se fossem parte de suas paredes, sussurrando lembranças sempre que o silêncio se tornava insuportável.
Eu ainda podia ver Jungkook, mesmo quando fechava os olhos. Seu cabelo desgrenhado ao acordar, os fios caindo suavemente sobre a testa, bagunçados de um jeito que me fazia querer passar os dedos por eles. Seu olhar assustado ao perceber os remédios sobre a mesa, os olhos grandes e brilhantes se enchendo de um medo que eu nunca quis causar. Sua voz trêmula, fraca, carregada de preocupação – uma preocupação que, ironicamente, era comigo, quando deveria ser ao contrário.
Lembro-me da forma como seu corpo ficou tenso ao sentir meus lábios tocarem os seus. Um instante congelado no tempo, onde pude sentir sua respiração presa na garganta, como se estivesse dividido entre ceder ou fugir. E então, suas lágrimas. As gotas silenciosas que escorreram por suas bochechas quentes quando ele disse, com a voz embargada, que não voltaria mais. Palavras que soaram como uma sentença de morte, cravando-se em meu peito com uma dor que eu não sabia ser possível sentir.
Desde aquele dia, tudo ao meu redor perdeu a cor. O mundo se tornou uma imensa escuridão, sufocante e interminável. Parece exagero? Talvez para quem nunca sentiu o peso de ser insuficiente. Para quem nunca passou anos tentando ser bom o bastante, apenas para perceber que nunca seria. Isso não era drama. Era a constatação cruel da minha própria falha.
Agora, o espelho refletia o que eu havia me tornado. Cabelos desgrenhados, sem o menor vestígio de cuidado. A pele, antes quente e viva sob o toque de Jungkook, agora parecia fria, pálida, quase translúcida. As roupas largas pendiam sobre meu corpo como um lembrete silencioso do peso que eu já não tinha forças para carregar.
O quarto, sempre mergulhado na escuridão, era um reflexo do que eu sentia por dentro. As cortinas fechadas impediam a luz de entrar, como se qualquer vestígio de vida fosse uma afronta ao que eu sentia. O colchão afundado sob meu corpo, as cobertas emboladas ao redor, impregnadas com o cheiro de noites sem fim.
Meus olhos, inchados e pesados, carregavam o testemunho de todas as lágrimas que derramei. Olheiras escuras marcavam minha pele como sombras persistentes, resultado de noites sem sono e do cansaço que parecia não ter fim.
Eu estava ali, mas não estava. Apenas existia. Apenas respirava. E a cada dia que passava, a ausência de Jungkook se tornava um buraco cada vez maior dentro de mim.
Alguns dias depois, o som da campainha ecoava pela casa como um trovão ensurdecedor, seguido por batidas insistentes na porta e vozes chamando meu nome. Eu sabia quem eram. Conhecia aquelas vozes bem demais. Mas meu corpo simplesmente não reagia. Não porque eu não pudesse me levantar, mas porque não queria. Não queria sermões, não queria olhares de pena, não queria ninguém me dizendo o que fazer.
— Abre essa porta, Yoongi! — Han gritou do lado de fora, a voz já embargada pela frustração e pela preocupação.
— Yoon, por favor... Estamos preocupados com você, abre! — Seokjin tentou soar calmo, mas falhou miseravelmente. Sua voz tremia, carregada de angústia.
Fechei os olhos, esperando que eles desistissem, mas então veio o barulho. Um estrondo seco, brutal, que fez todo o apartamento estremecer. Lee, marido de Han, havia perdido a paciência. Ele não era do tipo que apelava para conversas quando via que algo precisava ser feito. E, naquele momento, para ele, a solução era clara: força bruta.
A porta cedeu como se fosse feita de papel, caindo ao chão com um baque surdo. O som ecoou dentro de mim como um alerta, um puxão de volta à realidade. Suspirei pesadamente, sentindo cada músculo protestar quando me forcei a sair da cama. Meus pés descalços encontraram o chão frio, e a sensação quase me fez hesitar. Mas, sem muita escolha, caminhei pelo corredor escuro, encontrando os três parados na sala, estáticos diante da bagunça que haviam causado.
— Você vai consertar. — Minha voz saiu baixa, rouca, enquanto olhava diretamente para Lee.
Mas eles não responderam de imediato. Estavam me encarando, e o que vi em seus rostos me irritou. Incredulidade. Choque. Preocupação. Han foi o primeiro a fraquejar. Seus olhos brilharam com lágrimas não derramadas, e sua boca se abriu em um suspiro trêmulo.
— Meu irmão… Você está tão… — Sua voz falhou, quebrando-se no meio da frase. Ele engoliu em seco antes de tentar novamente. — Yoongi, há quanto tempo você não come nada?
Revirei os olhos, sentindo uma irritação amarga crescer dentro de mim.
— Vão embora daqui. — Minha voz foi cortante, sem espaço para argumentação. Virei as costas para eles, esperando que entendessem o recado.
— Não. — Lee foi firme. — A gente estava preocupado com você.
Soltei uma risada sem humor, um som seco e vazio.
— Preocupados com o quê? — Me virei de volta para eles, o olhar frio. — Não me façam rir. Façam o favor de sair da minha casa agora. Todos vocês.
O silêncio pesou entre nós, mas durou pouco.
— Agora já chega, Yoongi! — A voz de Seokjin explodiu no ambiente, carregada de fúria e desespero. — Você acha mesmo que vamos ficar quietos te vendo se matar? Que tipo de família você acha que somos?!
Aquelas palavras me atingiram como um soco no estômago. Porque, no fundo, eu sabia que eles estavam certos. Mas isso não significava que eu estava pronto para ouvir.
O silêncio que se seguiu foi sufocante. Por um momento, ninguém se moveu. Ninguém sequer respirou.
Os olhos de Han estavam vermelhos, marejados, e seu peito subia e descia em respirações irregulares. Seokjin desviou o olhar, mordendo o lábio, como se estivesse tentando conter algo dentro de si. Lee, por outro lado, me encarava fixamente, os punhos cerrados ao lado do corpo, como se estivesse se segurando para não me sacudir até que eu entendesse o que estavam tentando dizer.
— Você acha que isso é viver? — Han perguntou, sua voz quebrada. — Se trancar aqui, definhar nesse lugar escuro como se já estivesse morto?
Minha mandíbula se contraiu, mas eu não respondi.
— Você não precisa passar por isso sozinho, Yoongi. — Seokjin deu um passo à frente, cauteloso, como se temesse que eu fugisse. — Você sempre esteve ao nosso lado quando precisávamos… Agora é a nossa vez.
Soltei uma risada seca, sem humor.
— E o que vocês vão fazer? Me obrigar a seguir em frente? Me forçar a esquecer?
— Ninguém tá pedindo pra você esquecer. — Lee cruzou os braços, sua expressão endurecendo. — Mas se afundar desse jeito não vai trazer Jungkook de volta.
As palavras atingiram como uma lâmina afiada. Meu peito apertou, e por um instante, senti como se o ar tivesse sido arrancado dos meus pulmões.
— Saiam. — Minha voz saiu baixa, mas firme.
— Não vamos a lugar nenhum. — Han rebateu no mesmo instante.
Minha paciência estava se esgotando. O cansaço, o peso das últimas semanas, a dor incessante no peito… Tudo parecia me consumir de uma vez.
— Eu não quero ajuda! — Gritei, sentindo minha própria voz ecoar pelas paredes do apartamento. — Eu não quero ninguém me dizendo como devo me sentir ou o que devo fazer!
— Mas você precisa! — Seokjin rebateu, a voz embargada. — Porque, se continuar assim, vai acabar se matando!
O silêncio caiu sobre nós novamente. Dessa vez, mais pesado. Mais cruel.
Eu ri. Uma risada fraca, amarga.
— Talvez seja melhor assim.
Han arregalou os olhos, e, antes que eu pudesse reagir, ele cruzou a distância entre nós e me puxou para um abraço apertado.
— Não diz isso… — Sua voz quebrou contra meu ombro, e eu senti seu corpo tremer. — Pelo amor de Deus, não diz isso, Yoongi…
Minhas mãos ficaram suspensas no ar por um momento, sem saber o que fazer. Eu não me lembrava da última vez que alguém me abraçou assim. Forte. Desesperado. Como se estivesse tentando me segurar antes que eu desmoronasse completamente.
Fechei os olhos, sentindo algo dentro de mim se partir.
Eu estava cansado.
Tão cansado.
E, pela primeira vez em semanas, permiti que minhas lágrimas caíssem.
O choro veio como uma avalanche. Primeiro silencioso, apenas lágrimas escorrendo pelo meu rosto sem controle. Depois, como um soluço preso na garganta, doloroso, rasgando meu peito de dentro para fora.
Han não me soltou. Pelo contrário, apertou ainda mais o abraço, como se quisesse me manter inteiro enquanto eu me despedaçava em seus braços. Seokjin e Lee continuavam ali, sem saber o que fazer, mas eu sentia o peso da preocupação em seus olhares.
— Eu não aguento mais… — Minha voz saiu quebrada, engasgada pelo choro. — Eu não aguento mais essa dor…
Meu corpo tremia, e minhas pernas perderam as forças. Se Han não estivesse me segurando, eu teria desabado no chão.
— Eu já perdi antes… — Continuei, a voz embargada. — Eu já perdi alguém que amei, e agora… agora aconteceu de novo.
Meus dedos se fecharam com força no tecido da camisa de Han, como se me agarrar a ele fosse o único jeito de não afundar completamente.
— Eu não sou digno nem da piedade de vocês… — Sussurrei, sentindo a vergonha se misturar à dor. — Eu quase destruí o casamento dele… Eu… Eu fui egoísta.
Han se afastou apenas o suficiente para segurar meu rosto entre as mãos, forçando-me a encará-lo. Seus olhos estavam vermelhos, brilhando com lágrimas que ele tentava segurar.
— Não diga isso. — Sua voz era firme, mas cheia de emoção. — Você amou, Yoongi. Isso não faz de você alguém ruim.
Engoli em seco, desviando o olhar.
Seokjin deu um passo à frente, sua expressão carregada de dor.
— Você acha que só você sofreu? Você acha que só você perdeu algo? — Sua voz era baixa, mas cheia de peso. — Jungkook também está sofrendo, ele perdeu o melhor amigo dele... Perdeu você...
Fechei os olhos com força, tentando afastar aquelas palavras.
— Ele foi embora porque precisava… — Murmurei.
— Yoongi… — Lee suspirou, passando a mão pelos cabelos, frustrado. — Você se ouve? Você acha que Jungkook está feliz também?
Eu queria responder. Queria gritar que estavam errados. Mas não conseguia. Porque, no fundo, uma parte de mim queria acreditar.
Minhas mãos tremiam. Meu peito doía como se estivesse sendo esmagado.
— Eu só quero que essa dor pare… — Confessei, minha voz quase inaudível. — Eu só quero… que pare.
Han me puxou para um novo abraço, e dessa vez, Seokjin e Lee se aproximaram também. Eu estava cercado por eles, envolto em calor, em preocupação, em amor.
E, pela primeira vez em muito tempo, eu me permiti ser segurado.
Me permiti sentir.
Me permiti chorar.
O choro foi se tornando mais baixo, os soluços espaçando aos poucos até se transformarem em uma respiração pesada e cansada. Meu corpo, exausto de tanto sentir, simplesmente cedeu. Meus olhos se fecharam sem que eu percebesse, e a última coisa que senti foi o calor do abraço de Han antes de me afundar no sono.
Han permaneceu ali por mais alguns minutos, segurando-me como se pudesse, de alguma forma, aliviar a dor que eu carregava. Quando percebeu que minha respiração havia se tornado mais ritmada, afastou-se devagar, ajeitando meu corpo sobre a cama com cuidado para não me acordar.
Foi quando notou.
Seus olhos caíram sobre meus pulsos, parcialmente cobertos pelas mangas largas da blusa. Mas não o suficiente para esconder as cicatrizes.
Han prendeu a respiração.
Seu coração apertou no peito ao ver as marcas finas e esbranquiçadas cruzando minha pele, algumas mais recentes do que outras. Ele sentiu um nó se formar em sua garganta, um peso esmagador no peito. Engoliu em seco, tentando conter as lágrimas que ameaçavam cair novamente.
Ele queria gritar. Queria me sacudir, perguntar por que eu tinha feito aquilo, por que não pedi ajuda, por que me deixei chegar a esse ponto. Mas sabia que não adiantaria.
Então, ele apenas puxou as cobertas sobre mim, cobrindo meus braços como se pudesse esconder aquela realidade. Como se pudesse apagar o que já tinha sido feito.
Saindo do quarto em silêncio, Han fechou a porta com cuidado e, assim que deu o primeiro passo para fora, sentiu suas forças desmoronarem.
Lee percebeu na mesma hora.
Sem hesitar, puxou Han para um abraço apertado, segurando-o com firmeza enquanto sentia o corpo do marido tremer contra o seu. Han não chorou alto, mas Lee sentiu a umidade das lágrimas molhando seu ombro.
— Ele… — Han tentou falar, mas sua voz falhou.
— Eu sei… — Lee sussurrou, acariciando as costas dele em um gesto reconfortante. — Eu sei.
Seokjin observava a cena em silêncio, sentindo um aperto no peito. Ele desviou o olhar por um instante, respirando fundo antes de se dirigir à cozinha. Precisava fazer algo, qualquer coisa, para ocupar as mãos e a mente.
Enquanto Han e Lee se acalmavam, Seokjin preparou algo para eu comer quando acordasse. Nada muito pesado, apenas um prato de sopa quente e um chá de ervas para ajudar a relaxar. Depois de tanto tempo sem me alimentar direito, ele sabia que eu precisaria começar aos poucos.
Os três se sentaram à mesa da cozinha, o vapor do chá subindo suavemente enquanto o silêncio pairava sobre eles.
— Parece que, pela primeira vez em muito tempo, ele está realmente descansando. — Seokjin quebrou o silêncio, mexendo a colher dentro da xícara. — Como uma criança que finalmente se sente segura.
Han soltou um suspiro pesado, esfregando o rosto com as mãos antes de encarar os dois.
— Mas isso não pode continuar. — Lee disse, firme. — Ele não pode continuar assim, se destruindo aos poucos.
Han assentiu, sua expressão determinada.
— Não vai continuar. — Sua voz era baixa, mas cheia de convicção. — Nós somos a família dele. E, como família, vamos estar ao lado dele. Sempre.
Seokjin e Lee trocaram olhares antes de assentirem.
Eles não sabiam como fariam isso, nem quanto tempo levaria. Mas uma coisa era certa: eu não estaria sozinho. Não mais.
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