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1.0 UMA BELEZA INJUSTIFICADA
Astraea estava cheia de fanfarras. Flores e cominhos enfeitavam a rua de Atena, onde no fim da tarde a família real atravessaria em homenagem ao aniversário da princesa Isla, que completava naquele dia 18 anos. Do alto da janela de seu quarto, a moça podia contemplar as pessoas correndo de um lado para o outro com emaranhados de enfeites, louros e outros bocados de coisas. Um suspiro esvaziou o ar dos pulmões. Isla se retirou do parapeito e andou até o espelho, vendo a própria face.
A menina, há muito uma mulher feita, crescera ouvindo louvores a sua aparência e ela realmente se achava bonita, disso nem ela negava. No entanto, às vezes ver toda aquela devoção e a empolgação das pessoas diante dela a assustava, temia que a fúria dos deuses caísse sobre ela tal qual caíra sob Andrômeda… todos sabiam daquela história, um alerta para os mortais. Isla tocou a face e ajeitou o peplos, uma coroa de louros pendia do alto da cabeça e os cabelos caiam em longos cachos dourados como se o próprio Apolo cedesse alguns de seus raios de sol. Descendo até o salão principal, encontrou a mãe de criação envolta de uma algazarra de criados carregando presentes e conversando com um homem. O olhar dele subitamente pousou nela, arregalando-se em seguida.
— Vossa Alteza ! — Exclamou, teria passado diante da Rainha para alcançá-la, mas jamais ousaria tal afronta.
A rainha ignorou tal reação e o apresentou à filha.
— Este é Héracles, um escutista vindo de Atenas. — Explicou com um sorriso fingindo simpatia. — Ele quer fazer uma escultura sua.
— Seria a minha melhor obra. — O escultor piscou os olhos freneticamente, perdido nas palavras. — É como se Vênus ganhasse a forma mortal. Permitam-me que eu realize a peça.
Isla e a rainha se entreolharam, e a mãe concordou com a cabeça.
— Teremos que acertar os dias para que minha filha pose.
— Podemos resol…
— Mas com certeza não discutiremos isso hoje. — Interrompeu a rainha Maertisa que acenou em direção a uma criada.
— Leve nosso ilustre visitante para seus aposentos e deem a ele uma refeição completa.
— Esperaremos ansiosamente pela sua presença no banquete, senhor Héracles. — Isla respondeu educada e o escultor fez uma polida reverência para as duas antes de seguir a criada para fora do Grande Salão.
— A túnica ficou bem em você. — Disse a mãe e Isla deu uma pequena volta, a barra esvoaçou levemente sob os pés.
Ambas caminharam até o pátio. Maertisa estava belíssima para a ocasião, a coroa era de ouro, o peplos, num tom de verde raríssimo de se atingir. As patrulhas naquele dia estavam redobradas, uma que passava por elas, fizera a saudação real e seguiram caminho.
— O que te aflige, minha filha ? — Perguntou a mãe de criação e Isla piscou algumas vezes antes de responder.
— Temos mesmo que fazer uma passeata pela cidade ? — Nesse momento passaram pela sombra de uma passarela que ligava duas torres.
— É tradição, chegou na fase dos cortejos e é importante que os súditos a vejam, suas irmãs também já passaram por isso.
— Eles ficam em cima de mim como se eu fosse uma porção de comida. É agonizante.
Numa tentativa de acalmá-la, a mulher tocou a bochecha transmitindo um sorriso de conforto.
— Será rápido, não faremos paradas. É apenas uma volta, consegue aguentar, não é?
— Não, mas também não possuo escolha.
Enquanto andavam através do pátio exterior, ouviram o matraquear da porta levadiça ser içada. O rei juntamente com suas duas outras filhas e um grupo de pessoas, aguardavam no portão principal. A mais nova das princesas colocara seu melhor sorriso diante do pai e foi instruída a subir na primeira carruagem com 4 cavalos à frente. Uma vez na quadriga, os presentes olharam-na com admiração, uma deusa vestida de branco. O rei e a rainha ocuparam o espaço ao lado de Isla, atrás viriam as irmãs, Ismene e Nasryn, e logo atrás das duas, a comitiva. Sairam do portão a trote rápido. A comitiva se apressou. Desceram a colina e avançaram ao longo da Rua de Atena onde as pessoas já aguardavam. A gritaria começou quando a carruagem da moça virou a esquina. A família real deslocava-se através de homens e mulheres sorridentes, enfrentando uma maré de olhos eufóricos. Lírios, narcisos e jacintos voaram na direção de Isla que sorria em meio a coloração das pétalas, não estavam no período, mas era como se Perséfone estivesse anunciando a sua chegada, enchendo o coração da mãe de alegria.
— Vênus ! — gritara uma voz distante e outras cem seguiram a primeira.
Com metade da viagem percorrida, o alívio atingia ao peito de Isla pois já se aproximavam do final, mas quando iam subindo a rua de volta para a colina do palácio, a alegria se transformou em caos. Um homem forçou o caminho entre dois guardas e correu para a rua, à frente do rei e de seus companheiros, ele tentou subir na quadriga principal agarrando o braço de Isla, a brecha que ele abriu permitiu que muitos outros também avançassem. Hadeon brandiu a espada de maneira que os assustasse, no entanto, de nada surtiu efeito. Isla puxara o braço de volta, mas tamanha foi a força que a fez cambalear para trás, os cavalos relincharam e empinaram em desespero, a quadriga balançou e ela se agarrou na borda como se abaixo dela tivesse o vão de um penhasco.
De ambos os lados da rua, a multidão encapelou-se contra os cabos das lanças enquanto os guardas tentavam manter a fileira. O rei rugia ordens e forçou os cavalos a continuarem na estrada. Suas outras duas filhas foram instruídas a saírem da carruagem e levadas ao palácio na garupa de palafréns livres, deixando a quadriga à sorte das pessoas, aqueles cavalos seriam roubados mais tarde. Um guarda de manto vermelho aproximou-se da princesa mais nova erguendo o braço. Isla chegou a tocá-lo, mas a multidão puxou o pobre homem fazendo-o cair. Mesmo assustada, Isla apoiou o pé na borda e pulou no cavalo, enterrou o calcanhar na carne da égua que saltou entre a multidão. Hadeon fez o mesmo com a rainha.
Enquanto a família seguia rumo ao castelo, Isla seguiu a direção contrária, cavalgou até a estrada de tijolos tornar-se em relva verde e as árvores se tornassem uma companhia mais agradável do que a muralha de carne de outrora. Abriu caminho por entre rochedos e poças d'água, passando por grandes carvalhos, represeiros, árvores-sentinela cinzas-esverdeadas, árvores de pau-ferro e casca negra, que pouco a pouco se aproximaram dela, druidas em sua forma humana. Nuas e mais belas do que retratadas nas pinturas, permitindo a passagem e fazendo companhia a Isla. Elas seguiram o cavalo avermelhado correndo aos risos, mas pararam ao ver as lágrimas caírem como cachoeira dos olhos da moça. O cavalo trotou devagar e ela fungou limpando as bochechas molhadas. Uma das druidas tocou gentilmente a perna dela, com o rosto franzido.
—Eu vou ficar bem, Zoella. — Respondeu Isla fungando.
Desceu do cavalo e seguiu a pé. As mulheres e a égua alazã andaram sob uma trilha com apenas o som dos cascos ecoando. Atravessaram uma cortina de folhas que deu acesso a um jardim escondido. Uma pequena cachoeira erguia-se nele, num barulho suave melhor do que qualquer melodia, os jardins de Deméter eram os mais belos, no entanto proibidos aos olhos mortais, que deviam esperar a ação da natureza para que a primavera acontecesse. Ali haviam todas as flores que existiam no mundo, cresciam rosas, orquídeas de todas as espécies, uma explosão de tulipas, cravos, margaridas, girassóis e tantos outros que nem mesmo os olhos da semimortal poderiam contar. Não obstante, as flores não eram as únicas ali, haviam árvores colossais, pau-brasil e cerejeiras que sempre floresciam, não importava a época do ano, dobrando-se a vontade da deusa local, estas no momento não tinham flores, e ficavam ainda mais bonita quando a rainha do submundo a visitava.
Avançaram pelo tapete rosa das pétalas aproximando-se de um templo pequeno, no centro deste, uma estátua da própria Deméter indicava a quem pertencia aquele território. Havia um banco de mármore onde a deusa estava sentada de costas. Ela ouviu os passos que se aproximavam e virou-se para ver quem entrava em seus domínios, sorrindo ao ver a visitante. Deméter se levantou e acolheu Isla num abraço apertado, confortando-a em seu choro.
— Foi horrível. — Disse a princesa enquanto sentia a mão da mãe verdadeira acariciar os cabelos.
— Eu vi tudo, minha menina.
Quando se afastaram, as mãos da imortal acariciaram as bochechas molhadas, depois agarrou-lhe ambas as mãos e a guiou para que se sentasse no banco.
— Deixe-me vir morar com você. — Pediu. — Posso viver no Olimpo ou aqui mesmo.
As sobrancelhas da mais velha curvaram levemente para cima.
— Isla… para que seja aceita precisa provar que merece abraçar seu lado imortal.
— Eles já me tratam como se eu fosse uma deusa, não é o suficiente? — Disse se referindo aos mortais.
A mulher riu.
— Precisa provar seu valor tal qual Perseu fez ao matar Medusa e salvar Andrômeda do Kraken, Teseu e o labirinto, Hércules e seus doze trabalhos.
— Que monstro poderei enfrentar? — Discutiu a princesa, seus olhos passeando pelo jardim.
— Se quiser viver comigo, terá de arrumar um jeito, e eu sei que vai. O sangue dos deuses corre em você, e eu sempre estarei zelando por ti, minha menina.
Do alto do mais alto dos montes, ultrapassando as nuvens, nos domínios do Olimpo, Afrodite contemplava toda aquela cena com fúria no seu olhar em chamas. Havia visitado todos os seus templos, mas os de Astraea continuavam com o som do silêncio. Seus templos estavam vazios, não haviam canções, corações partidos pedindo por superação, nem amores proibidos lhe pedindo proteção. Não havia nada, apenas silêncio, pois o som das clamações eram direcionados para a rua principal do reino, onde a filha de Hadeon passava.
— O que tanto te fascina nos mortais, meu amor? — A voz de Oneiros soou atrás dela ficando cada vez mais próxima.
— Veja. — Respondeu ela e o senhor dos sonhos posicionou-se ao seu lado, observando a bela princesa de Astraea passar pelos súditos. — Terei eu de ser eclipsada por uma simples mortal ?
Exclamou virando-se bruscamente, as saias balançaram em torno das ancas esguias.
— Esta não é uma simples mortal. — Retrucou ele sem tirar os olhos da moça.
— Não importa, é para mim que eles devem se voltar, não a ela. A garota pode ser uma semideusa, mas ainda sim, um dia encontrará as dores da velhice, cedo ou tarde.
Um riso incrédulo surgiu em sua exuberante face.
— Foi em vão que aquele pastor real deu a mim o título de mais bela perante as minhas rivais, Atena e Hera, sob o julgamento do próprio Jove.
Os passos de Oneiros ecoaram até ela e a mulher agarrou-lhe as mãos, olhando profundamente em seus olhos.
— Ela não poderá usurpar minhas honrarias. — Disse agora num tom baixo e Oneiros enxugou uma lágrima que caíra. — A castigarei tal qual Atena fez com Medusa.
O tom saiu tão negro que assustou Morpheus.
— A ira de Deméter cairia sobre ti. — Advertiu apertando mais forte as mãos dela— Irás querer briga com uma deusa primordial ?
— Ela não poderá usurpar minhas honrarias !— Disse agora num tom agressivo, afastando-se bruscamente do homem de preto.
Morpheus a encarou de longe, o rosto suavizando ao notar que a deusa parecia chorar.
— Ela não pode ter o que é meu por direito divino, isso é uma blasfêmia.. — O homem se aproximou dela, visivelmente preocupado.
A mão pousou em seu ombro.
— O que posso fazer para não vê-la triste.
Afrodite fungou e inclinou o belo rosto para vê o do companheiro. Seus olhos brilhavam devido às lágrimas, mas não era a tristeza que transbordava, era algo a mais, sombrio e carregado de rancor.
— Faça conforme eu te disser. — Disse com a voz rouca e a mulher mais uma se desvencilhou dos braços do senhor dos sonhos e caminhou, subindo uma escadaria. As grandes portas abriram-se sozinhas e Afrodite as ultrapassou a passos que ecoaram por todo pátio a céu aberto, o mármore cinza escuro era a parte principal da infraestrutura o piso era do mesmo material e estendia por alguns metros até que a natureza comandasse. Os salgueiro brancos tinham uma folhagem vermelho sangue e eram tantos que rodeavam todo espaço. No centro, duas fontes chamavam a atenção, uma delas era adornada de ouro e prata, enquanto a outra inteiramente de bronze. A deusa estendeu as mãos e em cada uma surgiu um frasco. Um era de ouro, outro de bronze, com esculturas minúsculas em alto relevo de cisnes. A mais bela entre as deusas os mergulhou em cada fonte, conforme seu material e sorriu maldosa para os objetos, em seguida virou para Morpheus que a olhava com o semblante confuso.
— Molhe os lábios dela com a água do frasco de bronze, amargos como um amor não correspondido — Começou enquanto colocava o pequeno frasco na palma de sua mão, poucos segundos depois, a outra brilhou num filete espesso de luz dourada surgindo uma flecha no lugar. O corpo girava em espiral até a ponta que lembrava um coração. — Depois encoste isso no coração dela, é uma flecha da própria aljava de meu filho, Eros.
— O que irá acontecer ? — Perguntou o homem desviando o olhar dos objetos para a bela mulher.
— Será a punição dela, por ter feito o que fez! Dar-lhe-ei motivo para se arrepender dessa beleza injustificada.
Quando a noite abateu sobre a cidade de Astraea agora calma e vazia, uma sombra negra atravessou as ruas desertas. O protetor do Sonhar virava as esquinas de forma fugaz, entrando em algumas casas e vendo como os sonhos e pesadelos trabalhavam no sono das pessoas. Ele subiu a colina e do alto dela avistou o castelo do rei Hadeon, o corvo que sempre o acompanhava grasnou a sua atenção. Nada disseram, mas ambos sabiam o que cada um queria dizer. Morpheus olhou mais uma vez os objetos dados por Afrodite e direcionou os olhos para onde seria o quarto da princesa Isla, virando numa sombra novamente.
Os corredores do palácio estavam silenciosos, no entanto, em alguns lugares era possível escutar o som dos guardas fazendo as patrulhas. A luz da lua banhava o pátio externo, e por cima das ameias Morpheus os observou.
— Alto ! — Gritou o comandante e a marcha tornou-se em silêncio.
Morpheus não lhes deu tanta atenção e continuou seu caminho. Sua sombra fora projetada na cortina do quarto de Isla que dormia vulneravelmente. Oneiros entrou observando o cômodo e tão silencioso quanto já era se agachou diante dela. Por um instante ele sentiu pena, mas seus pensamentos estavam dominados pela figura de Afrodite e sua fúria insaciável. Ele então abriu o frasco de bronze e derramou gotas de água amarga nos lábios da jovem e a tocou com o lado da ponta da seta dourada. O ato a fez despertar e Isla sobressaltou-se sentando no colchão de penas de gansos. Ela olhou ao redor, mas seus olhos nada viam. Morpheus também se sobressaltou e a ponta da flecha feriu a própria mão desnuda. Os olhos da jovem focaram-se no lugar onde o homem estava, invisível, mas ela não o vira. Desesperado para desfazer o mal que fizera, o deus dos sonhos soprou sua areia na direção do rosto juvenil que voltou a adormecer, com muito esforço, um sono tranquilo. Derramou as gotas de alegria sobre os sedosos cabelos da jovem e se descuidando do próprio ferimento, retirou-se dali como uma brisa fria.
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