xi. passei vergonha o dia inteiro, olha no que deu!
A sensação de acordar sem ter um sonho sequer é estranha. Sinto-me como outro alguém, regenerada depois de tanto tempo sem paz. O susto de acordar após um final sem sentido de outra loucura da minha cabeça não se compara com o sol que ilumina pelas frestas do chalé e me desperta calmamente.
Além da iluminação natural, o balançar delicado de Morgana me traz de volta ao mundo real. Ela murmura algo sobre acordar, mas eu resmungo e me viro para o outro lado. Estou tentando aproveitar a minha noite livre de sonhos, pesadelos e alucinações, não posso só acordar e arriscar que a próxima noite volte ao normal.
━━━━ Helena. ━━ A voz da mais velha me impede de cair no sono outra vez. ━━━━ Vai perder o café da manhã. Confia em mim, você não quer isso.
Mesmo com desgosto, e muita preguiça, eu me levanto. Perder o café da manhã não parece uma opção saudável considerando que treinamos com literal armas aqui. Já não tenho talento suficiente, se não tiver força para aguentar o resto do dia é capaz de morrer durante o processo.
Ainda consumida de sono, sigo Morgana e Luke para fora do chalé. Tenho vontade de perguntar sobre a irmã dela, mas confesso que não sei o que dizer. Vou falar o quê? "Gostei da sua irmã"? "Acho que agora tenho uma amiga"? Nada parece apropriado. É melhor ficar calada, então, fico. Caminho pelo chão terroso do acampamento, sujando meu coturno, e observo tudo que consigo. Os campistas treinando, insetos e pássaros voando por aí, as conversas entre pequenos grupos e o calor reconfortante que torna esse lugar mágico. Durante a jornada, Percy me conta onde ele estava na noite anterior e sobre um incidente no banheiro onde ele humilhou Clarisse e conheceu uma tal de Annabeth — a mesma figura que nos assistiu dormir algumas noites atrás.
Esquisita.
━━━━ Vão adorar isto, uma simulação de guerra no acampamento. A glória será dos vencedores.
━━━━ Nós. ━━ Morgana adiciona com um sorriso ladino, piscando para mim e Percy.
Isso é ótimo. Eu acho. Se ganharmos a glória, ganhamos a atenção de nossos pais divinos.
━━━━ Annabeth é a conselheira do chalé de Atena. ━━ Luke explica, direcionando o olhar para alguém na distância. ━━━━ Ela nos liderou em três vitórias seguidas. Faz tempo que ninguém ganha a quarta.
Me viro para a tal Annabeth, encontrando-a facilmente entre a multidão. Ela nos assiste, como se soubesse que falássemos dela. A garota deve ter a minha idade, pele retinta e cabelos negros trançados amarrados em um rabo de cavalo. Não estou perto o suficiente, mas chutaria que os olhos dela são castanhos escuro pela maneira que nos encara. Essa é, talvez, a menina mais bonita que já vi.
Não presto atenção no caminho e tropeço em uma pedra, quase caindo com tudo no chão. Para a minha felicidade, o pessoal havia parado de andar e Luke me salva com tranquilidade. Murmuro um obrigado envergonhada, voltando minha atenção para a conversa.
━━━━ Ela estava no banheiro. ━━ Percy conta, encarando ela com as sobrancelhas cerradas em visível confusão. ━━━━ Disse que estava esperando algo acontecer.
━━━━ Ela vê o mundo de forma diferente. Sempre seis passos à frente de todos. Dê um tempo a ela.
Sempre seis passos a frente. Interessante. Se Annabeth é filha de Atena, isso a torna sábia? Inteligente? Estrategista? O que define as habilidades de um semideus, eu não sei, mas adoraria descobrir. Não por causa de Annabeth, ela é só um exemplo dentre muitos. Um exemplo que não cansa de me encarar como se estivesse planejando meu assassinato.
━━━━ De qual lado você está? ━━ Percy questiona, revirando os olhos.
Com todo respeito ao Jackson, mas se Annabeth está seis passos à frente, eu estou do lado dela. Ela tem cara de quem não hesitaria em me matar pelo bem do plano dela, então prefiro não discutir.
━━━━ Do dela, sempre. ━━ Luke responde com certeza, sorrindo de leve ao observar Annabeth. ━━━━ Ela é minha irmã caçula.
A informação nos choca. Não sou ninguém para definir como famílias devem surgir, mas descobrir que Luke, de todas as pessoas, tem uma irmã, me deixa estranha. Foi como me senti quando descobri que Pandora e Morgana eram irmãs. É uma especie de aceitação e confusão no peito, além da inveja, é claro.
Adoraria ser irmã de algum dos dois. Ter a oportunidade de crescer com alguém para me guiar pelo mundo e não ser a guia. Não me leve a mal, eu amo meu irmãozinho mais do que qualquer coisa no mundo, mas saber que eu sou o exemplo dele não me deixa nada contente. A última coisa que preciso é que Henry se torne tão melodramático quanto eu. Ele merece alguém melhor para admirar, alguém como Luke ou Morgana.
Como um truque de mágica, assim que penso nos dois, noto a garota agarrar a mão de Luke. Ainda estou extremamente confusa sobre o que eles são. Parecem próximos demais para amigos, mas ainda não fizeram nada que comprove minha teoria de serem um casal.
━━━━ Vou te contar a história. ━━ Luke adiciona, percebendo a confusão nos olhos de Percy.
━━━━ Vamos sair daqui.
Caminhamos até o Pavilhão, onde o barulho é menor e conseguimos conversar com maior facilidade. Nos sentamos em uma mesa, com Luke e Morgana em um lado e eu e Percy no outro. Consigo notar o nervosismo no garoto, talvez porque conversar sobre seu passado não seja seu passatempo favorito. Eu o entendo, não gosto de ficar lembrando do passado, ou pensar no futuro.
Na verdade, não gosto de nada que envolva pensar sobre minha vida.
━━━━ Antes daqui, eu estava na estrada. Conheci uma criança proibida pelo caminho. Seu nome era Thalia. ━━ O moreno conta, ainda com os dedos entrelaçados com os de Morgana. Não consigo deixar de notar que ele falou sobre Thalia no passado.
━━━━ O que significa "proibida"? ━━ Percy questiona, se sentindo culpado por ter o interrompido.
━━━━ Há muito tempo, Zeus, Poseidon e Hades viram que seus filhos estavam muito poderosos, então fizeram um pacto de não ter mais filhos. O pacto foi respeitado por muito tempo, até que Zeus o quebrou. Até Thalia.
━━━━ Você disse "era". ━━ Todas as cabeças se viram para mim, talvez intrigados que eu tenha notado o detalhe. ━━━━ Disse que o nome dela era Thalia.
━━━━ Uma criança proibida atrai problemas. Há monstros por toda a parte. É uma batalha constante para se manter vivo. ━━ Luke revela, como se respondesse temporariamente minha pergunta. Algo brilha em seus olhos, algo triste e solitário. Não sei dizer o que é, afinal, nunca estive na mesma situação que ele. ━━━━ Um dia, encontramos uma menininha se escondendo num beco. Era Annabeth. Estávamos preocupados em levá-la conosco e expô-la a todo esse perigo até que a vimos lutar. ━━ Um sorriso orgulhoso se forma nos lábios do moreno. Me encontro imaginando as habilidades da morena. ━━━━ Thalia não sobreviveu. Mas eu e Annabeth sim. Somos uma família desde então.
Heróis tendem a ter histórias trágicas, mas, mesmo assim, não estava preparada para ouvi-la. Quantos anos sequer tinham? Novamente, a raiva pelos deuses consome minha mente. Possuem todo o poder sobre o mundo mortal, mas não fazem de nada para salvarem os filhos? Se algum dia me fosse oferecido a eternidade eu recusaria, não pelo medo de viver para sempre, mas pela fúria de ter de aguentar caminhar lado a lado com os deuses malditos.
O clima pesado incomoda Luke, que aperta a mão de Morgana como um hábito ansioso.
━━━━ Ela tem me observado desde que chegou. ━━ Jackson arrisca mudar o assunto, voltando ao tópico de Annabeth. ━━━━ Por quê?
━━━━ Ela é a guerreira mais forte do acampamento. A única forma que tem de provar a si mesma é uma missão.
━━━━ E o que isso tem a ver comigo?
━━━━ Quíron fez uma promessa há anos. Um dia, chegaria um semideus, cujo destino era ir em uma missão, que ele mesmo não poderia impedir. E ela se juntaria a ele. Cada vez que alguém novo chega, Annabeth busca por um sinal. Ela costuma desistir depois de dois dias, mas ainda está observando você. ━━ Luke diz como se isso, por si só, fosse uma espécie de sinal.
Seja o que for que Annabeth acredita que Percy Jackson possui, Luke parece concordar.
━━━━ Por que ela não persegue a Helena?
━━━━ Eu não quero ser perseguida.
Apesar de que ser perseguida por uma garota super inteligente, ótima guerreira e bonita não parece um pesadelo. Fiz amizade com Pandora, então conseguiria formar um laço com Annabeth. Eu acho. Quão difícil deve ser?
━━━━ Porque ela sabe que não é ela. ━━ Morgana explica, me observando com os olhos castanhos que parecem saber de tudo. ━━━━ Helena está destinada a coisas diferentes. São poucos os semideuses que recebem presentes dos deuses como o seu.
De primeira, não entendo o que ela quis dizer. Porém, a adaga na minha cintura parece pesar, como se dissesse "sou eu!" e compreendo tudo. A adaga não foi apenas pura sorte, foi colocada ali por alguém que queria que eu a encontrasse, mas quem? Se minha mãe desejava que Katroptis fosse parar em minhas mãos, por que a mesma não me entregou? Deuses tem seus jeitos misteriosos, suponho, mas a que fim? As coisas seriam tão mais fáceis se os imortais dissessem o que queriam dizer no lugar de mandarem sinais divinos e objetos mágicos. Se tiver a oportunidade, direi isso a eles.
━━━━ Como assim? ━━ Cerro as sobrancelhas, ainda confusa com que tipo de destino me aguarda.
Os mais velhos trocam olhares, comunicando entre si palavras que nunca serei capaz de saber. Um brilho diferente iluminam os olhos castanhos, mas, ainda, sim, não sei o que significa.
━━━━ Você saberá um dia. ━━ Morgana murmura.
Um arrepio percorre minha coluna e as palavras da garota me parecem mais um desafio do que um aviso. É como se estivesse duvidando que eu fosse capaz de descobrir, talvez acha que passarei o resto da minha vida nas sombras, com medo de agir conforme o que preciso. Ou talvez estou passando tempo demais conversando com A Voz, imaginando coisas onde não há.
O isolamento social me tornou paranoica e imprevisível. Quem sabe eu terei coragem, ou serei uma covarde até o dia da minha morte. Seja como for, nem eu consigo prever.
━━━━ Nada assustador. Beleza. ━━ Jackson resmunga irônico, voltando a atenção para ele outra vez. ━━━━ Ela não pode me deixar em paz?
━━━━ Pode, mas e se estiver certa? ━━ Luke questiona, erguendo a sobrancelha em dúvida.
O som de uma alta trombeta chama a nossa atenção, me fazendo perceber que a maioria dos campistas também sentam em mesas pelo Pavilhão. Estava tão focada na história de Luke que não percebi o tempo passar. Em uma das pontas — se é que posso chamar assim, afinal o Pavilhão é um círculo — Quíron se posiciona com a mesma confiança que sempre o vejo, um adolescente atrás dele segurando a enorme trombeta em mãos.
━━━━ Heróis, está na hora. ━━ O centauro anuncia, voz ecoando pelo acampamento como um chamado divino. ━━━━ O jogo vai começar.
Como uma ordem silenciosa, todos se levantam e preparam para o início dos jogos. Fiquei confusa, mas me foi entregue uma armadura e um capacete romano, com o cor azul estampada no topo como uma espécie de crina de cavalo. Surpreendente, não é tão ridículo quanto soa. Meu time consiste do chalé de Hermes e mais alguns que não saberei identificar, o lado positivo é que eu e Percy temos alguém para nos guiar. Acompanhei Luke pela vasta terra, olhando por cima dos ombros para me certificar que os outros dois nos seguiam.
Os times, azul e vermelho, estão separados pelo rio que corre com uma calmaria inapropriada para o jogo perigoso. Todos os semideuses estão armados com verdadeiras armas, o que não parece nada seguro — mas, tudo bem, não é? Somos semideuses, isso deve ser normal — mas, pelo menos, também recebemos escudos. Suponho que a meta do jogo não seja a morte.
━━━━ A primeira equipe que roubar a bandeira do oponente e levá-la até o outro lado do rio, vence. ━━ Com tom autoritário, Quíron explica as regras do Caça a bandeira. Atrás do centauro, um adolescente segura a trombeta de mais cedo, esperando o momento apropriado para tocá-la. ━━━━ É proibido mutilar e matar, como sempre. Confio que respeitarão as regras. Seus objetos mágicos podem ser usados. Os campistas que não estão feridos precisam participar.
Agarro minha adaga, que nunca escapou de minhas mãos. Preferi ela a aceitar uma das espadas oferecidas, pois não queria arriscar ser péssima. Não que eu seja boa com a adaga, mas me sinto muito mais segura, afinal, as palavras de Morgana ainda ecoam em minha mente.
São poucos os semideuses que recebem presentes dos deuses como o seu.
As palavras de Quíron são afogadas pelo mar agitado da minha mente. Regras cujo vou demorar para entender, mas que pouco me importam agora. Sei que preciso achar a bandeira e tentar não morrer ou matar durante o processo, não deve ser tão difícil assim. Além de que, Annabeth é a líder do nosso grupo, acredito que ela tem conhecimento suficiente para nos levar a vitória.
━━━━ Que os jogos comecem! ━━ Quíron anuncia, a trombeta sendo soada outra vez.
O time vermelho esbraveja como feras ferozes prontas para assassinar qualquer um que entre em seu caminho. Entre eles, Clarisse me chama a atenção, ainda mais assustadora com uma lança em mãos. Espero nunca conhecer a fúria dela ou de algum filho de Ares, não acho que eu me sairia bem. Incrivelmente calmos, o time azul, o meu, bate em seus escudos com as armas e gritam com confiança e tranquilidade — o total oposto. Parte de mim é grata, mas outra só consegue pensar que vamos ser esmagados pelos vermelhos. Espero estar errada.
Me viro para Luke, mas uma dupla de garotas se aproximam antes que eu possa dizer algo. A asiática de cabelos pretos eu reconheço como Pandora, e a mais baixa ao seu lado é, inegavelmente, Annabeth. Agora que a vejo de perto, me sinto levemente tonta.
━━━━ Temos vinte minutos até o próximo sonido e o inicio do jogo. ━━ A garota em questão diz, encarando o casal atrás de mim com sobrancelhas erguidas. ━━━━ Vocês sabem o que fazer?
━━━━ Sim, senhora. ━━ Luke responde.
━━━━ Sempre, chefe. ━━ Morgana rapidamente concorda, sorrindo para as mais novas.
Confesso que a maneira que conversam me impressiona. Eles realmente respeitam Annabeth como líder, mesmo ela sendo anos mais nova. Caramba, acho que é mais surpreendente do que descobrir que sou uma semideusa. Ela deve ser bastante especial.
Antes que Luke e Morgana possam sair, a mais nova agarra o garoto pelo braço.
━━━━ Você acha que hoje é um bom dia para ganharmos?
━━━━ Não quero azarar, mas eu acho que você sabe. ━━ Morgana quem responde, tom brincalhão, mas sincero.
━━━━ Boa sorte. ━━ Pandora deseja, sorrindo para os mais velhos. Ela e a irmã trocam olhares e sorrisos carinhosos, e minhas bochechas se tornam levemente vermelhas ao perceber que estava as encarando.
━━━━ Te vejo do outro lado. ━━ Luke sorri, piscando para a irmã. ━━━━ Companhia, em frente!
Me viro para segui-lo, assim como Percy, mas não tenho tempo de sequer pisar um passo antes que a voz sarcástica e estranhamente familiar ecoa pelos meus ouvidos. Apenas agora percebi que, de fato, ela era a garota que falou comigo naquela noite estranha e chuvosa. Que vergonha, ela me ouviu falar dormindo. O que será que eu disse? Ela lembra?
━━━━ Vocês não vão, dorminhocos. Vocês vêm conosco.
As garotas seguem o caminho oposto que o resto do grupo e as seguimos cegamente. Não há outras opções, principalmente por não sabermos quase nada sobre o funcionamento do jogo — ou da vida — no acampamento. Somos separados em duplas durante a jornada sem explicações, com Annabeth e Percy adentrando a floresta sozinhos e eu e Pandora nos aventurando pelos arredores. Queria protestar, me certificar de que havia alguém para grudar, mas me senti menos assustada com a presença da Liu.
━━━━ Para onde vamos? ━━ Ouso questionar uma vez que a dupla está distante demais para ouvir.
Aos poucos, a grama se mistura com areia, tornando a textura do chão estranhamente confortável. Meus fracos conhecimentos do Acampamento Meio-Sangue não são suficientes para decifrar o local que nos encontramos.
━━━━ Annabeth tem um plano. ━━ Pandora murmura, como um robô programado a tal resposta.
Mordo minha bochecha, girando o pulso que segura a adaga enquanto caminho. Apesar de ouvir apenas coisas boas por Annabeth e ter certeza que ela é bem competente, a filha de Atena não fez nada para me provar suas habilidades. Como me certificarei que ela não machucará Percy, ou a outros durante sua jornada? Não a conheço e não conheço seu plano, é difícil só acreditar. Preciso de comprovações.
━━━━ Isso deveria me deixar melhor?
━━━━ Sim. Ela é a melhor estrategista que conheço. Você não precisa se preocupar.
Murmuro em concordância, encarando o chão, os arbustos e as árvores ao meu redor. Não tenho certeza do que sentir, ou como lidar com tudo que venho sentido. O meu papel no plano ainda é algo que desconheço, na verdade, meu papel em geral está fora do meu alcance. Não fui reclamada ainda, não tenho habilidades especiais, ganhei uma adaga sem sequer saber como cortar um melão e agora estou aqui, caminhando pela enorme floresta do acampamento com minha nova amiga que conheci um dia atrás. Que maravilha.
━━━━ Sabe, eu nunca vi Annabeth se interessar por alguém por tanto tempo. ━━ Pandora diz, quebrando o silêncio. Ela caminha pouco a frente, usando da espada de bronze para cortar galhos que atrapalham a passagem. ━━━━ Ela geralmente desiste quando vê que não são capazes.
━━━━ Bom, o Percy matou o Minotauro. ━━ Dou de ombros, mordendo minha bochecha outra vez.
Talvez eu tenha inveja da facilidade do garoto em adentrar esse mundo, matando monstros, procurando ser o melhor para impressionar o pai, conversando com Luke e Morgana como se fosse normal. Eu queria ser como ele. Ser, só um pouco, menos estranha e mais comunicativa.
Porém, a vida não é um campo de morangos. Eu não sou o Percy Jackson, não importa o quanto eu almeje.
━━━━ Não estava falando de Percy.
A fala me pega de surpresa e quase tropeço em raízes, mas consigo me safar. Estou começando a achar que a terra está fazendo isso de propósito. De qualquer modo, mal tenho tempo para digerir o que me foi dito, pois a trombeta soa uma última vez — maldita trombeta e seu timing perfeito — sinalizando o início oficial do Caça Bandeira. A glória será dos vencedores, mas que de nada me servirá se não for útil para minha mãe.
De repente aquela areia que pisei mais cedo se torna mais grossa, apenas então percebo que estamos perto do litoral. O som da água acalma meu coração acelerado, mas sou forçada a me abaixar por trás de arbustos cheios e verdes brilhantes por uma mão estranhamente forte para uma garota de doze anos.
━━━━ Não faça nenhum barulho. ━━ Pandora ordena, colocando o dedo sobre a boca.
━━━━ O que vai acontecer?
A de cabelos negros só repete o ato e eu entendo o recado. Beleza, Pandora! Para alguém que fala demais, você bem que sabe fechar a boca na hora do suspense, em? Mas, tudo bem. Suponho que essa seja a graça para leitores como você, não é? Quando a nuca arrepia e os olhos percorrem as palavras ansiosamente esperando para o momento certo de agir. Me sinto assim também, enquanto seguro minha adaga com força e tento enxergar além das folhas saudáveis da planta que me esconde.
O som de galhos quebra o silêncio, mas eu os ignoro. Estou procurando pela água, pois ouvir o correr da correnteza não me é o suficiente, prefiro absorver a beleza dos rios, lagos e mares. Prefiro sentir o frio em meus dedos, assistir enquanto animais e plantas existem por debaixo daquela transparência molhada.
━━━━ Deu certo? ━━ Pandora questiona, me chamando atenção.
Cerro as sobrancelhas ineditamente ao notar que não havia ninguém ali. Ou a garota ficou maluca, ou existe algum ser invisível que eu não tenho poderes ou capacidade de enxergar.
A segunda opção é a mais próxima da verdade, pois, como um truque de mágica, Annabeth surge na nossa frente, um boné azul dos Yankees em mãos. Não tenho orgulho em dizer que estou, literalmente, de boca aberta ao encará-la em choque.
━━━━ Como você fez isso? ━━ Pergunto indignada, apontando para ela em horror.
━━━━ Foi um presente da minha mãe. ━━ Annabeth sorri, erguendo o boné com orgulho. Ela tem um belo sorriso. ━━━━ O plano está em ação.
Assim, de perto, ela não parece tão assustadora. A presença de Pandora deve deixá-la mais tranquila, mas, seja o que for, sou grata. De complicações e garotas raivosas já basta Clarisse.
━━━━ O que devo fazer? ━━ Questiono, olhando ao redor. Percy não veio, o que deveria me preocupar.
As duas se entreolham, formando um sorriso ansioso nos lábios da asiática, que tromba os ombros com os meus.
━━━━ Você verá.
Sinceramente, não faço ideia do que isso significa. Pandora está cada vez me deixando mais confusa, apesar de ser uma garota querida e animada, ela parece conter tanta energia que não cabe no corpo. É agitada, principalmente quando está ansiosa, me lembra um cachorro filhote que está descobrindo o mundo.
━━━━ Ela está falando sério. Veja. ━━ Annabeth comanda, apontando para a Katoptris em minhas mãos.
Ainda não entendo a proposta, mas faço o que me é pedido. Meus olhos caem para a adaga, encarando-a por alguns segundos, vagamente confusa. Nada acontece. Ergo o olhar para Annabeth, que parece gigante quando estou ajoelhada, me encarando com aqueles olhos castanhos profundos. Ela e Pandora parecem trocar palavras silenciosas, e as mãos da asiática se apoiam com firmeza em meus ombros.
━━━━ Você precisa ver, não só olhar. ━━ Pandora explica.
Volto a encarar a adaga, dessa vez com mais certeza do que estou fazendo. Não esperava que fosse funcionar, mas a lamina estremece, aos poucos formando uma imagem vívida. Minha respiração para, olhos arregalados ao ver Percy Jackson e Clarisse no chão, a lança da filha de Ares repartida no meio. Ninguém me contou que isso era possível, mas as duas agem como se sempre soubessem. Era algo óbvio, e eu que não percebi? Ou tenho razão em sentir incômodo?
Seja o que for, não tenho tempo para processar. Estou começando a odiar esse sentimento. Antes, quando estava em casa o dia inteiro, parecia segurar o tempo nos dedos, porém, agora, me sinto correndo para acompanhar o passar das horas, dias e anos.
━━━━ O que vê? ━━ Pandora pergunta, curiosa.
As conto da visão, evitando pensar em outras coisas. Tenho o hábito de focar demais no ruim e esquecer as coisas ao meu redor. Contudo, estou atenta o suficiente para notar a maneira que Annabeth sorri orgulhosa, de modo que me deixa contente — a minha resposta era o que ela estava procurando. Fui útil para o plano.
━━━━ Continuem quietas, vou ficar de olho no outro. ━━ Ela diz, erguendo o boné outra vez e o colocando sobre a cabeça, desaparecendo.
Me sinto uma criança descobrindo o mundo pela primeira vez, encarando com olhos brilhantes o lugar que Annabeth costumava estar. Quero ser tão admirada e talentosa quanto ela um dia.
Assim como nos é dito, fazemos. O silêncio caí sobre nós, mas não é desconfortável. É o tipo de silêncio que me deixa reflexiva, não por ser estranho ou sufocante, mas por ser tão leve que tenho vontade de preenchê-lo. A filha de Hécate não aparenta se importar, observando por entre os galhos e folhas a vista do mar, se preparando para o que está por vir. Minha mente é consumida pela visão da adaga e tento encará-la por mais tempo, procurando por outra mensagem, mas nada me aparece.
Talvez a adaga escolha o que vai me mostrar, ou, quem sabe, ela só funciona na presença de outros olhos curiosos. Se eu for corajosa o suficiente, perguntarei para alguém e assim vou descobrir.
E assim que me conformo com a ideia de que nada aparecerá, a lamina reluzente treme outra vez, formando com feixes de luz uma imagem surpreendente. Um homem alto de roupas pretas me encara, cabelos e barba quase grisalhos e olhos tão profundos que parecem tristes e solitários. Nunca o vi antes, mas ele me observa como se me conhecesse, como se encarasse meus olhos. Continua cedo para afirmar que tudo que a adaga mostra é real, certo? Posso estar ficando maluca.
Antes que pudesse mostrar para Pandora, o som de folhas quebrando e laminas entrando em contato me distraem, fazendo a imagem desaparecer. A garota se ergue o suficiente para assistir os eventos sem ser vista e eu faço o mesmo, dois pares de olhos curiosos observando Clarisse e sua trupe lutando com Percy Jackson — ou melhor, destruindo o pobre garoto. Isso é, até a cena que vir mais cedo se tornar real e a lança da filha de Ares partir-se no meio.
Nunca me senti tão aterrorizada antes, nem mesmo quando lutei com o Minotauro, do que quando ouvi o grito que escapou pela garganta da morena. Por sorte, os gritos do time azul preenchem o local e, antes que Jackson fosse esmagado igual um besouro, a bandeira vermelha é fincada no litoral e Clarisse desiste. Aproveito disso como sinal para sair do esconderijo e ir ajudá-lo, com Pandora seguindo atrás de mim.
━━━━ Nada mal, herói. ━━ Annabeth diz, retirando seu boné e reaparecendo diante de nós.
━━━━ Estava aqui o tempo todo? ━━ O loiro questiona, olhos brilhando com lágrimas, ficando ainda mais chateado quando a resposta da filha de Atena é sim, seco e sincero. Ele se vira para mim, engolindo o choro. ━━━━ Vocês também?
━━━━ Sim. ━━ Murmuro, de repente consumida por culpa.
Atrás de mim, Pandora resmunga algo entre "A gente não liga para você." e "Me desculpa.", mas não saberei te dizer qual, pois não consegui ouvir.
━━━━ Estavam aqui o tempo todo e não ajudaram?
━━━━ Annabeth tinha um plano. ━━ Liu justifica, mas aparenta estar tão sentida quanto eu.
O garoto se vira para Annabeth com os olhos arregalados, perguntando a razão, mas ela não o responde. Pelo contrário, apenas estica a mão para ajudá-lo, o que, para mim, me parece um pedido de desculpas. Porém, para a surpresa de todos, assim que ele está de pé, ela murmura algo e o empurra direto na água, como uma piada de mal gosto. Minha admiração pelos talentos e inteligência da morena deixam meu corpo na velocidade da luz e eu avanço para resgatar Percy.
━━━━ Qual seu problema? ━━ Ele grita, chamando a atenção das pessoas. Assim que meu pé encosta na água, os machucados do loiro começam a se curar sozinhos. Congelo, encarando-o enquanto um tridente enorme surge no topo da sua cabeça, brilhando em azulado. Essa talvez seja a imagem mais linda que já vi. ━━━━ Não entendo... ━━ Ele murmura, alternando o olhar entre mim e o tridente, esperando que eu desse uma resposta racional.
As palavras morrem em minha boca, estou tão confusa quanto ele. A água e o tridente me fazem pensar em Poseidon, mas o que significa? Que Percy está sendo reclamado? Ninguém nos explicou o que aconteceria, não imaginei que fosse assim. Na verdade, não imaginei que seria tão cedo. Uma mistura de felicidade e inveja queimam no meu peito, secando minha garganta e trazendo lágrimas aos meus olhos, estas que não deixo escorrer.
━━━━ Seu pai está chamando.
Annabeth e Pandora parecem contentes, como se isso fosse um sinal bom. Quer dizer, eu sei que é. Ele estava procurando pelo pai desde que chegou aqui e, agora, o encontrou. Mas hoje mesmo Luke nos contava a história de Thalia, uma criança proibida, filha de um dos três grandes, que morreu tragicamente por existir. O que farão com Percy Jackson, uma criança proibida e filho de um dos três grandes? A conexão que sinto com o garoto ainda é sufocante e pensar em perder ele me deixa tonta. Não posso perdê-lo, sinto que existe algo entre nós para ser explorado, um segredo que nem mesmo nós conhecemos.
Olho para cima em uma esperança boba de enxergar algo acima de mim, mas nada aparece. Não fui reclamada, não sou filha de ninguém.
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