𝙵𝚘𝚕𝚑𝚊 𝚍𝚎 𝙿𝚊𝚙𝚎𝚕
Fazia dois anos desde que a guerra entre heróis e vilões havia terminado. Estava um dia bonito, tranquilo, com uma leve brisa a aconchegar as pessoas que alegremente passeavam pelas ruas e pelos parques reconstruídos com as suas crianças... Nem pareciam lembrar-se do que ocorrera! De facto, o ser humano tem uma péssima memória... Prefere usufruir da sensação libertadora da paz sendo bombeada pelas suas veias do que ficar recordando o medo e as incertezas de uma época que já podia ser considerada longínqua pelas suas mentes torpes e ingénuas. Todas as criaturas racionais assim se comportam, é algo inerente à sua natureza, tão inevitável como chuva no inverno.
Todavia, para Dabi o cenário não era este.
Talvez Dabi não fosse uma criatura racional então, uma vez que diferia da sua atitude. Ou tivesse algo que o agarrasse ao passado, algo que não o deixasse seguir com a sua vida para a frente com consciência limpa, que lhe tirasse o sono por noites a fio. E esse algo são as memórias daquele dia que teimam em não o abandonar, que permanecem tão vívidas e que tão nitidamente são reproduzidas pela sua mente de forma constante. O dia da rendição... Provavelmente, ou melhor, quase de certeza que foi quando sentiu o maior rebuliço dentro de si, a maior angústia, raiva, confusão, tristeza... Foi onde perdeu o homem que uma vez teve o seu coração nas mãos.
Twice e Toga haviam sido mortos em combate e com o Exército da Fronte de Libertação Paranormal completamente inutilizado, a prisão esperava-os a todos. Era claro como a água, não havia por onde fugir. Os acontecimentos galopavam em direção a um final trágico para a antiga Liga dos Vilões e por isso, quando Shigaraki aceitou um acordo com os heróis de última hora, foi a luz vinda do túnel para o jovem queimado e seus dois companheiros restantes, Compress e Spinner. Mas à custa do albino... Liberdade e uma nova oportunidade para os três em troca de sua prisão... Tomura nem olhou atrás. A frieza de como as coisas levaram aquele rumo foi estonteante para Dabi, que nem sequer pôde se despedir do líder com decência. Simplesmente amarraram-lhe as mãos e levaram-no, e ele nem uma palavra soltou para os amigos...
Os seus sonhos, os sonhos da Liga, deitados fora assim de repente, no ferver da tomada de decisão, sem balançar as consequências que isso teria... Como não sentir frustração e cólera? E como não sentir ao mesmo tempo saudade daquele a quem em tempos agarrou a mão não por inteiro, a quem beijou escondido atrás do bar e com quem conversou por horas sob o céu estrelado da noite?
Agora dormia sozinho na cama, e só ele sabia a falta que o corpo friorento do outro lhe fazia! Só ele sabia o quanto Shigaraki era importante para si, e só ele conhecia a dor de ter de fabricar uma nova realidade, uma realidade da qual ele não fazia parte... Esses dois anos foram uma verdadeira tortura para o moreno, que se viu obrigado a se integrar numa sociedade com a qual não concordava e não se identificava. Ter de transparecer que era uma boa pessoa para o alívio daqueles que esperavam isso de si... Irónico. No fim, havia retornado ao início de tudo. A cumprir expectativas de outros.
Levantar-se todos os dias à mesma hora e correr pelas ruas adormecidas vagamente iluminadas pelos primeiros raios de sol da manhã tornou-se o seu escape do maldito ciclo vicioso do qual era refém. Pois após aqueles quarenta e cinco minutos de suor e esforço, teria que ir para o seu emprego, para manter a sua casa... A casa que conseguiu arrendar com a ajuda de Hawks, aliás. Factos eram factos, o loiro fora muito prestável ao longo destes meses, esforçando-se por ajudar o jovem das turmalinas elétricas a endireitar a vida. Inevitavelmente ficaram próximos, viraram amigos. Spinner também havia conseguido arranjar um trabalho numa loja de comida perto do apartamento de Dabi, o mais velho ocasionalmente ia até lá, atualizar as conversas... Ou talvez na procura de manter o mesmo clima de amizade que se vivia na Liga... No fundo, Spinner e Dabi eram ambos fração da mesma face da moeda... A face que ficava por baixo, ignorada. Mister Compress, por sua vez, resolveu ir embora, viajar para longe. A última coisa que deixou foi uma carta para o Todoroki desabafando sobre Shigaraki e sobre as suas vivências...
Os três haviam refeito as suas vidas... Contudo a imagem do jovem de olhos carmins nunca saiu da cabeça de Dabi. E isso atormentava-o de uma maneira impossível de explicar. Dois anos depois ainda amava Tomura do mesmo modo que amou enquanto estiveram juntos e não saber nada dele feria-lhe o pouco que restava do seu coração, ele desejava apenas ter a consciência de que o outro estava bem, dentro do que era possível para si... Estas múltiplas dúvidas sobre o bem-estar do amado importunavam as suas noites de jeito cruel, o moreno já sofria de insónias de longa data, mas desde que o homem esguio deixou de ocupar o lado esquerdo da sua cama, a falta de sono apenas cresceu... Passava as longas horas da madrugada à janela, encarando melancolicamente o quadro de cidade em sua frente, permitindo-se até fumar um cigarro... Ou dois... Ou três, dependendo do nível da sua angústia e da sua necessidade de relaxar. Por mais que tentasse abafar as memórias de Shigaraki, ao se focar no trabalho ou até mesmo ao passear com Hawks por locais que vendiam variedades gigantescas de galinha, elas acabavam por voltar em todo o caso, e voltavam em força, provocando-lhe o já tão familiar ardor no peito e sufoco na garganta.
De há umas estações para cá que vinha pedindo a Keigo que o deixasse ver Tomura. Ansiava vê-lo, olhar os seus belos lumes encarnados, o cabelo branco fofo, até o sinal perto da boca... Sentia tanta falta dele, tanta... Ambicionava tocar-lhe na mão, talvez até agarrá-la se lhe fosse permitido, uma vez que beijá-lo não devia ser com certeza. No entanto, o moço de olhos âmbares perpetuamente lhe tinha vindo a recusar isso, justificando-se com desculpas esfarrapadas que o desapontavam profundamente, tais como "sabes que não posso fazer isso" ou "devias deixar isso para trás" ou ainda algo mais duro como "ele não te quer ver". Esta última ideia não fazia sentido para Dabi, afinal, porque Shigaraki haveria de não o querer ver? Eles passaram por tantas coisas bonitas... Elas haviam de possuir um significado, certo? No seu íntimo, o antigo vilão desconfiava que lhe ocultavam uma porção da conjuntura. Quanto mais pensava nisso, mais exaltado ficava... E se Tomura não estivesse a ser bem tratado? E se lhe aconteceu alguma coisa? Ele insistia com o loiro, mas nunca obtinha uma resposta razoavelmente satisfatória. Assim sendo, a sua paciência chegou ao limite e naquela tarde fez o último pedido, determinado em não aceitar num novo "não" como retorno.
— Deixa-me ir vê-lo... — tomou a iniciativa a meio do almoço, quando Keigo parecia bem-humorado e feliz com a nova receita de frango que provava. A solicitação repetida fez Takami pousar a peça que devorava e agarrar num guardanapo para limpar a boca. Dabi aguardou.
— Porque insistes nisto? Tomura te deu a oportunidade de virares costas e ires. Porque teimas em voltar para ele? — questionou calmamente.
— Deixa-me ir vê-lo. — o moreno reafirmou, firme.
— Já te disse que ele não te quer v-
— Então que seja ele a dizer-mo na cara. — Dabi retrucou de imediato, interrompendo grosseiramente o mais baixo.
— Não te posso levar lá. — Hawks suspirou, largando o guardanapo sobre a mesa. Perdera o apetite. — Aquilo é uma prisão para vilões perigosos, não é um hotel...
— Se não me levares, arranjo forma de ir vê-lo sozinho.
— Isso é uma ameaça?
— É apenas uma informação.
O loiro fitou o homem defronte de si, sentia-se encurralado, encostado à parede. Era bastante óbvio para ele e para qualquer um que Dabi não ultrapassara Shigaraki. A toda a hora pensava nele, mesmo que ele negasse e se fizesse de desentendido, a insistência em visitá-lo denunciava-o, e por mais que Keigo se tivesse empenhado em encobrir tudo o que diretamente se relacionava com o jovem líder, havia chegado ao momento crucial em que teria de lhe dar o que ele tanto desejava.
— Amanhã levo-te lá. — acabou por ceder.
— Vamos hoje. — contrariou o jovem de olhos azuis, impondo-se. Almejava ver o mais novo o quanto antes, tirar todas as suas dúvidas de uma vez por todas e assim ter sucesso em parar as ilusões maldosas que o seu entendimento fabricava.
Takami bufou, percebendo que não existia ali chance para negociar. Dabi encontrava-se mais determinado do que nunca e era precisamente isso que alarmava o herói, este temia os resultados daquele reencontro, posto que detinha perfeitas lembranças do quanto o mais alto era instável... E perigoso quando em choque... Hawks não possuía o controlo da situação, não tinha como impedir Dabi de conhecer demais e não tinha como dominar o rumo da conversa entre ele e Shigaraki. Não podia prevenir os estragos, porém, podia atenuá-los.
Foi mesmo o que optou por fazer no momento em que se encaminhou para o corredor de celas com o intuito de buscar o albino. Tomura olhou-o confuso quando a porta se abriu, contudo não o questionou. Keigo, por sua vez, também não apresentou justificações, somente procedeu à soltura de modo moroso. Conforme lhe pediu para se levantar e o acompanhar é que o mais novo o fitou desconfiado, não fazia ideia do que acontecia e isso assustava-o. Hawks pegou-lhe no braço e retirou-o do compartimento, optou por desprezar as suas questões por instantes, só lhe falou enquanto percorriam de volta o longo corredor que levava à sala onde Dabi aguardava ansiosamente.
"Tens ali uma visita que praticamente me implorou para que te pudesse ver. Sabes o que fazer, fala o mínimo possível e despacha o assunto, assegura-te que ele não vai querer voltar."
Shigaraki, notavelmente desnorteado, assentiu com a cabeça, não recebera qualquer visita ao longo destes vinte e quatro meses, efetivamente, tinha-se acostumado à ideia parva de que ninguém se importava com a sua fraca existência. Quem haveria de implorar para vê-lo? A sua cabeça caótica elaborava diversas perguntas, demasiadas e impossíveis de responder. Quando Hawks o colocou frente a frente com o homem queimado, Tomura pareceu ficar ainda mais desconfortável, coisa que não passou despercebida às turmalinas céticas que o encaravam com saudade. Viu o jovem pálido olhar para o herói como se pedisse ajuda, mas Keigo apenas fez um vago sinal para ele se sentar e encaminhou-se para a porta da divisão. Nem demasiado perto, nem demasiado longe. O suficiente para intervir se assim se visse obrigado.
Dabi não gostou daquilo, as teorias de que algo muito mau ali se passava ganhavam cada vez mais credibilidade. O seu corpo estremeceu. Olhou para o antigo líder ali sentado, tão perto de si, mas ao mesmo tempo tão distante. As orbes fogosas não possuíam sentimentos explícitos, o moreno identificava meramente medo e uma fina camada de preocupação. No entanto, ele aparentava estar bem tratado, os cabelos brancos apresentavam-se ligeiramente mais compridos e a sua pele normalmente com marcas de unhas não exibia mais nenhuma adicional. Sendo assim, o que podia estar errado?
— Há quanto tempo, chefe. — sorriu-lhe, a voz suavizada, ação que era incomum por parte dele. Shigaraki remexeu-se na cadeira, a sua posição era muito correta, muito firme, visivelmente tenso.
— Porque me chamas isso? — questionou. O tom com que fez a questão provocou um sorriso involuntário em Dabi, como sentia falta de ouvir a voz calma, mas que podia ser tão ameaçadora em situações extremas. Tomura fitou o sorriso do visitante e depois subiu os lumes cor de rubi para a face cheia de piercings e grampos. Por uns segundos, analisou-a, como se nunca a tivesse visto antes. Esboçou um sorriso leve.
— Ah, força do hábito! — o moreno falou com uma risada, relaxando na cadeira. — E como estás? Tratam-te bem? — quis saber.
— Sim. — direto e poupado nas palavras.
— Mesmo? — voltou a perguntar, não convencido, lançando um olhar rápido a Keigo, que se mantinha no mesmo local.
— Sim.
— Que bom. — Dabi buscava algum contacto visual, mas o mais novo não parecia disposto a isso, sempre desviava os olhos para qualquer outro sítio, como se tudo o resto fosse mais apelativo de olhar do que o outro. — Desculpa não te ter visitado mais cedo...
Tomura arregalou os olhos.
— Não tem problema.
— Está mesmo tudo bem? — insistiu, cada vez tinha mais certezas que a resposta à interpelação era negativa.
— Claro que sim. — ele sorriu. Um sorriso forçado que Dabi notou de imediato. — Porque vieste...? — perguntou com traços de receio.
Porque veio?
Como assim, porque veio?? Dabi conteve-se para não se levantar, todavia, inclinou-se bruscamente sobre Shigaraki, como se não tivesse ouvido bem aquelas palavras. Não era óbvio??
— Mas que raio de pergunta é essa...? — os olhos azuis cativantes mostravam-se muito abertos, em puro choque. — Porque te amo! Porque sinto a tua falta, porque a minha vida ficou ainda pior sem ti! Alô? Em que mundo estás, Tomura??? A tua memória varreu-se? — da boca remendada saiu um riso incomodado e inconformado. — Tu rendeste-te e eu fiquei sem nada! Absolutamente desamparado! O Compress foi embora e o Spinner deu um novo rumo à vida dele! Mas e eu? Eu que de um momento para o outro fiquei sozinho! Eu que fiquei sem ti para me dizeres que ia ficar tudo bem e que íamos superar tudo! Lembras-te disso pelo menos? Tu é que sempre tiveste a porcaria do controlo sobre tudo e eu seguia-te! E do nada resolveste desperdiçar todo o nosso esforço! Do que me vale estar em liberdade se tu fazes estas merdas...? — Dabi deitou tudo para fora, demasiado até, foi inevitável, há muito tempo que armazenava todos aqueles sentimentos dentro de si, uma hora ou outra haveriam de sair, é sempre assim que se sucede. As sensações de se encontrar completamente perdido e sem ninguém a quem se amparar são das mais horríveis de se experimentar, até para um vilão.
Os orbes carmins estreitaram com todo o excesso de informação exteriorizada assim de rompante. Shigaraki era incapaz de formular o quer que fosse para consolar o moreno, tudo mostrava-se imensamente nublado para si. De tudo o que passava pelo seu pensamento, só tinha consciência de uma coisa: não merecia Dabi.
— Desculpa. — soltou somente.
— Desculpa?? É isso que tens para me dizer? — se ainda possuísse a capacidade de chorar, certamente estaria a fazê-lo agora. Sentia-se como se tivesse levado uma facada no peito, "desculpa" era o que recebia depois de todo o sofrimento que enfrentou? Esperava mais dele, esperava melhor.
— O que queres que eu diga?
Dabi encarou-o, desacreditado. Fez-se silêncio antes dele falar, magoado:
— Queria que pelo menos me recebesses com alguma felicidade. — pausou. — Queria que ficasses tão feliz por me ver como eu fiquei feliz por saber que finalmente te ia poder ver.
— Eu estou feliz. — Tomura se inclinou na direção de Dabi, a expressão do moreno angustiava-o, não queria fazê-lo sofrer mais do que pelos vistos ele tinha sofrido.
— Não, não estás... Os teus olhos estão vazios, o teu corpo está tenso, é como se já nem me conhecesses. — ele suspira. — Dois anos foi o suficiente para eu me tornar em rigorosamente nada para ti? Pois eu ainda me lembro de tudo o que vivemos juntos e não quero esquecer tão depressa.
— Era melhor que o fizesses.
— Tomura... — Desapontamento. Era a única coisa que aquela conversa trazia para o jovem Todoroki. — Sério?
— Eu estou aqui. E vou ficar aqui para sempre. Tu tens uma vida lá fora. — ele justificou-se. — As tuas memórias de mim já não valem nada, porque o Tomura que conheceste não sou eu.
— Wow, que sensibilidade... — ele riu de novo, desta vez gélido. Sentia-se idiota por ter apostado em Shigaraki, por achar que possuía tanta importância no coração dele como ele possuía no seu. Porém, era evidente que não. Dabi não conseguia descrever mais o que sentia, de todas as emoções que fervilhavam no seu estômago havia uma que o contorcia, instigando-o à sensação de vómito. — É verdade que não me querias ver? — perguntou, olhando fixamente o tampo da mesa, revestida por um tom sombrio de cinzento.
— O quê?
— Keigo disse que não me querias ver. É verdade? — insistiu.
Tomura hesitou. O que ele devia fazer era concordar e aceitar levar com insultos, para depois tudo ficar bem. No entanto, odiava ver aquele homem assim, destroçado... Quebrado.
— Ele nunca me falou de ti. — resolveu ir contra tudo o que lhe recomendaram. Hawks endireitou-se instantaneamente. Merda. Dabi fitava-o perplexo, antes de direcionar os orbes meio enraivecidos, meio surpreendidos para o albino novamente.
— Como assim...? Eu pedi imensas vezes para te visitar. Ele disse que tu não me querias ver...
— Eu não disse tal coisa. — contrariou. — Acho melhor ires embora. — falou com um tom amável, ousando tocar-lhe a mão de leve. Dabi não perdeu a oportunidade e agarrou-a firmemente, assustando o mais baixo com o ato.
— Não, não vou. Está a escapar-me aqui qualquer coisa. Porque ele haveria de mentir? — questionou, olhando com ansiedade os lumes em pânico do amado.
— Não sei... Mas vai embora e esquece isso.
— Porque teimas tanto em que eu esqueça? O que se passa? Diz-me. — pressionou-o. Tomura empenhou-se em soltar a mão, contudo, Dabi agarrou-a fortemente. Assim sendo, Shigaraki levou a outra mão à mão dele numa tentativa desesperada de se soltar, mas Dabi agarrou-a também, mantendo o olhar sério sobre ele. Naqueles míseros segundos, o preso entrou em absoluta agonia, procurando se soltar a qualquer custo e fugir dali. E mesmo vendo cada expressão dele, Dabi não o largou. O pobrezinho contorcia-se e desviava a questão, todavia de nada lhe valeu.
Takami já avançava para separar aquilo de uma vez por todas, mas foi então que as lágrimas começaram a rolar em cascata pelo rosto aflito do antigo líder dos vilões.
— Quero que vás embora, porque eu não faço a mínima ideia de quem és! — libertou, puxando as mãos numa ação repentina. — Eu não sei de nada do que falas! Compress, Spinner? Eu deveria conhecê-los? — soluçou. — Vens aqui atirar-me com um monte de culpas sobre acontecimentos que eu não sei que ocorreram! E fere-me ouvir-te falar que me amas e que ficaste mal por minha causa, sendo que eu nem sequer sei o teu nome! – fungou, o rosto todo molhado. — Tu não significas nada para mim, porque eu não tenho qualquer recordação tua, a única recordação que tenho é deste lugar! E não quero ouvir-te dizer que significo tudo para ti, porque não te posso corresponder!! — o rapaz havia desabado completamente, de momento não se importava com as consequências de ter revelado a verdade, ele apenas queria sossego e que aquela sensação de culpa que lhe crescia no âmago se esfumasse.
Dabi petrificou enquanto o seu cérebro processava cada uma das sílabas proferidas. Ele... Não se lembrava...? Não tinha qualquer lembrança dos momentos em que foram felizes, das pequenas e grandes conquistas da Liga, do Twice, da Toga... Dele? Afastou lentamente o olhar para o loiro, que havia igualmente estacado no meio do trajeto. Era como se tudo tivesse parado em seu redor, era como um pesadelo horrível do qual não conseguia acordar por mais que se esforçasse... Não queria acreditar que anos e anos se tinham evaporado assim tão facilmente, com um estalar de dedos... Não queria encaixar na sua mente desvairada que perdera para sempre aquele que amava. Shigaraki não podia ser como uma folha de papel... Não podia...
— Eu posso explicar. — Keigo começou, porém, não sabia como continuar a frase. Fitava apreensivo o dono das chamas azuis, os lumes hipnotizantes apagados e as feições adormecidas.
— Podes...? Podes explicar como é que ele não se lembra de nenhuma das pessoas que o fizeram feliz? — interpelou-o com um tom baixo. — O que é que vocês lhe fizeram...?
— Ele era demasiado perigoso... E convicto. Ele tinha-se rendido para vos salvar, mas ele não desistiu. Ele era imprevisível. Foi uma escolha que tomámos. — respondeu-lhe com a voz igualmente baixa e com os olhos amarelados presos na figura confusa do referido.
— Vocês nem sequer tinham a certeza que ele fosse tentar alguma coisa! — Dabi respondeu frustrado. — Ele rendeu-se às vossas mãos e vocês fizeram-lhe isto... Vocês... Vocês mataram-no! — exclamou, a voz falhou-lhe. As suas veias bombeavam raiva, apetecia-lhe atear fogo a tudo aquilo, incluindo a Hawks, oh se queria matá-lo naquele segundo! Desta vez, não falharia! Como um dia chegou a considerá-lo amigo...? Ao herói desgraçado que não se contentou em matar um vilão, mas sim dois. Que estúpido ter confiado nele!
— Não o matámos, salvámo-lo. — corrigiu.
— Ah sim? Salvaram-no de quem? — Dabi deixou escapar uma risada fria. Ele ainda ousava dizer-lhe que o haviam salvo? Salvo? Já ouvira muitas palavras, mas salvar era nova.
— Dele mesmo. Ele era completamente fragmentado, amaldiçoado pelo passado, fizemos-lhe um favor.
Para o moreno esta frase foi a gota de água. Formou duas chamas nas suas mãos e estava mais do que pronto para ir para cima do dito herói e desfazê-lo em cinzas, quando Tomura se levantou rapidamente e lhe prendeu um braço, impedindo-o. No seu rosto predominava o caos, decerto era uma chuva de novidades caindo-lhe em cima. Devia estar totalmente desorientado. Dabi desistiu da ideia de levar a sua fúria avante, pelo menos por aqueles minutos, e abraçou o estimado de modo frouxo, não queria invadir o seu espaço ou assustá-lo.
— Ele era mesmo, mas não o salvaram. Todas as más vivências, recordações, acontecimentos, fizeram dele quem ele era. E vocês chegaram e apagaram a existência dele como quem pega numa borracha e apaga umas letras a lápis. E chamam-se a vocês de heróis? Escumalha. — retorquiu e buscou novamente pelo olhar carmim, que ainda estava fixo no seu. — Gabam-se de ter dado uma nova oportunidade a mim, ao Compress e ao Spinner e, no entanto, não deram uma mísera chance a ele. Ajudaste-me porquê, Keigo? Culpa?
— Não. Ajudei-te porque quis, quis ajudar-te a teres uma vida decente. — respondeu, o seu semblante não dizia muito.
— Larga-me, Tomura, que eu quero ir à cara deste miserável. — deu um passo em frente, mas Shigaraki apertou-o contra si, recorrendo para isso ao outro braço. — Ele merece... Ele fez-te isto... — argumentou olhando o mais novo.
— Lembro-me que antes tinha pesadelos... Mas agora não tenho mais. Não faças isso. — pediu-lhe o antigo líder. Dabi permaneceu imobilizado, por mais que quisesse satisfazer o pedido dele, o ódio era muito, lembrava-se mais uma vez porque odiava tanto os heróis. Para eles as vidas não eram iguais. Para salvar uns, estragavam a vida de outros. Eles constantemente priorizavam uns e menosprezavam outros. Sociedade decadente e podre.
— Ouve-o. Ele está melhor assim. — afirmou Takami, apontando para Shigaraki.
— Cala a merda da tua boca senão queimo-ta. E só não a queimo agora mesmo porque ele, como tu disseste, pediu-me para não o fazer. Mas não percas pela demora, todos vocês vão ter o que merecem. De uma vez por todas. — ameaçou sem filtros e virou-se para o ex-namorado, os seus lumes mostravam-se amedrontados.
Levou-lhe uma mão aos cabelos brancos, continuavam macios, do mesmo modo que antes. Tomura não se debateu, limitou-se a sentir o carinho leve e pensativo do homem que permitia os seus dedos escorregar pelos fios compridos do seu couro cabeludo. Num movimento rápido, o mais alto encostou as suas testas e fez-lhe uma promessa em voz baixa, promessa essa que Shigaraki, mesmo não o conhecendo, sabia que ia ser cumprida.
— Ainda hoje te venho buscar.
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