Capítulo 24 - Culpa II
2890 palavras
Danielle ouviu os gritos agonizantes que cortaram o silêncio do castelo, atravessando paredes como lâminas. Ela estava em seu quarto quando começaram, e ainda podia sentir o arrepio percorrendo sua espinha, congelando-a por completo. Não era a única; os outros nobres também haviam parado, incapazes de reagir, confusos sobre o que poderia ter causado tal som.
Ela odiava essa sensação de impotência. Mais do que isso, odiava a si mesma por não conseguir entender como os outros. Não tinha magia suficiente para decifrar a origem dos gritos ou a força que emanava pelos corredores. Era isso que mais a perturbava: ser limitada, pequena demais em um mundo onde poder era tudo.
Ser filha de uma serva que se casara com um nobre lhe trouxera muitos benefícios. Graças a isso, Danielle alcançou o status de "Dama do Rei", garantiu um casamento vantajoso e pôde conhecer Agamenon, o homem que conquistou seu coração. Contudo, esse privilégio vinha com um peso que ela nunca conseguiu ignorar.
A origem de sua mãe, vinda de uma família sem estudos mágicos ou poderes que se transmitiam entre gerações, refletia-se na própria magia que fluía em suas veias. Não era fraca, mas tampouco era suficiente para ser comparada, por exemplo, a magia que corria nas veias de Ayla, que tinha o sangue "puro", filha de monarcas de linhagens antigas.
Apesar disso, Danielle não se sentia inferior à feiticeira, mas a necessidade de provar seu valor constantemente era uma sombra que nunca se dissipava. Em um ambiente onde Ayla parecia ter mais espaço para falar, mais presença, mais direito à palavra, Danielle se via forçada a lutar por cada pequena vitória, por cada momento de reconhecimento. Essa dinâmica era a faísca que inflamava as constantes brigas e o ódio mútuo que cultivavam uma pela outra.
Danielle odiava Ayla por sua prepotência, pelo modo como carregava aquele ar de superioridade mascarado por uma falsa modéstia. O sorriso, sempre gentil e aparentemente carinhoso, soava como um insulto velado. Era uma afronta, principalmente porque Ayla insistia em passar a imagem de alguém digna de confiança, quando Danielle sabia, no fundo, que essa não era sua verdadeira face.
Ela ainda conseguia lembrar, com amargura, dos momentos em que acreditou na amizade de Ayla, deixando-se enganar por suas palavras doces e gestos generosos. Depois, quando a verdade finalmente veio à tona, sentiu-se traída por não ter enxergado o que sempre estivera diante de seus olhos. Ayla era tudo, menos amiga.
Ainda se martirizava por não ter percebido os sinais que Ayla deixara ao longo do tempo. Sempre estivera evidente, especialmente naquele sorriso irônico e condescendente, que a feiticeira jamais lhe daria uma verdadeira abertura. Ayla nunca a enxergara como igual; tudo não passava de um jogo de conveniência. Danielle fora usada como uma muleta, um apoio para que Ayla pudesse se engrandecer ainda mais.
Afinal, era fácil brilhar ao lado de alguém que ela julgava fraca e indigna da posição que ocupava. E isso doía mais do que qualquer briga ou troca de farpas, porque Danielle sabia que todos no palácio notavam Ayla primeiro. A feiticeira, sempre tão carismática e envolvente, parecia se destacar ainda mais ao ofuscar aqueles que considerava inferiores.
Sua mandíbula estava rígida, e esses pensamentos a acompanhavam como uma sombra enquanto percorria os corredores do palácio. A sensação de resignação, que a invadira assim que os gritos cessaram, ainda pesava em seu peito. Por mais que relutasse, sabia que a única forma de entender o que estava acontecendo seria enfrentar sua inimiga. Afinal, Ayla, de todas as pessoas ali, seria a primeira a ser chamada para lidar com algo de tamanha magnitude.
Danielle havia ponderado longamente antes de tomar essa decisão. Havia outras alternativas: poderia ter ido atrás de Agamenon ou Zaki para obter respostas, mas, no fundo, sabia que, independentemente de quem buscasse, Ayla estaria envolvida. A representatividade da feiticeira em assuntos mágicos dentro daquele palácio era inegável. Assim, optou por encurtar o sofrimento e ir direto à fonte: a sala de trabalho de Ayla, o único lugar que sempre fazia questão de evitar.
Assim que estava a poucos passos do lugar, pode ouvir o falatório que se seguia lá dentro. Não bateu na porta, apenas adentrou a sala de forma imponente, transparecendo autoridade, como se estivesse ali para julgar o que quer que tivesse acontecendo. Mas sua fachada carrancuda logo de desfez, quando viu a cena que se desenvolvia a sua frente.
A sala de Ayla tinha sido alterada de forma significativa. As estantes de livros foram afastadas, as mesas já não se encontravam ali e em seu lugar, duas camas da enfermaria estavam dispostas. A feiticeira com auxilio de duas enfermeiras acompanhavam os sinais vitais dos dois moribundos que estavam deitados ali.
Um deles, era Agamenon. Danielle não ouvi o que Ayla disse com sua chegada, apenas se aproximou do corpo do homem que amava, as lagrimas já escorrendo pela face. Gotículas de suor se formavam por todo o rosto dele, sua expressão era de desconforto, e havia resquícios de algo como tinta manchando sua pele.
Ela mal olhou para o outro moribundo. Seus olhos estavam fixos em Agamenon, cujo corpo febril tremia, a pele queimando como se o fogo tivesse se apoderado dele. O coração de Danielle se apertou, uma dor aguda atravessando seu peito, como se a agonia dele fosse a dela. Suas mãos tremiam ao tocar a bochecha dele, quente e úmida, e ela sentiu uma onda de desespero se formar em seu ser.
- O que aconteceu com ele? – A voz de Danielle saiu como um sussurro fraco, implorando internamente para que Ayla não confirmasse que os gritos que ouvira eram dele.
- Nada que te interesse. – A resposta de Ayla foi fria e desdenhosa. – Saia da minha sala.
- Tudo que tenha a ver com ele me interessa! – Danielle não conseguiu conter a raiva. O simples olhar de Ayla fazia sua pele ferver. As palavras que saíam da boca de Ayla soavam como facadas, cada uma fazendo a raiva crescer como uma tempestade prestes a explodir. Ela apertou as mãos em punhos, as unhas enterrando na carne, e o rosto de Ayla, com sua expressão de superioridade, se tornou a única coisa que Danielle podia ver. – Me conte agora, ou não medirei minhas atitudes!
A tensão entre as duas era palpável, Danielle estava disposta a agir, quando Ayla fez questão de desafiar ainda mais:
- Não pode fazer nada contra mim. Saia antes que eu perca a paciência. Tenho muito o que fazer, não tenho tempo para perder com alguém como você.
- Não! – Danielle rosnou, seu corpo se preparando para o confronto. Cada fibra do seu ser pulsava com fúria, as veias saltando em sua testa.
Antes que qualquer uma das duas avançasse, Zaki entrou no recinto, mas não foi sua presença que Danielle percebeu primeiro — foi o tom em sua voz.
— Num momento como este, vocês ainda encontram motivos para brigar? — Sua voz era grave, carregada de exasperação. — Façam o favor de se aturarem.
Ela sentiu a frustração dele, a mesma que a consumia, e isso fez seu estômago se revirar. Ela odiava que ele a estivesse tratando como uma criança, mas ao mesmo tempo, sabia que ele estava certo. Precisava se controlar, pelo menos por agora.
— Agamenon iria gostar que ela estivesse aqui. — Ele voltou seu olhar para Ayla
Ayla hesitou, mas acabou se afastando com relutância, os lábios contraídos em uma linha fina.
— O que aconteceu, Zaki? — a voz de Danielle tremia de preocupação. — Não me diga que foi o prin... — Ela engasgou, incapaz de terminar, enquanto a culpa queimava em seu peito.
Se tivesse sido Aldrin... Ela jamais se perdoaria.
- Ele não tem mais acesso ao palácio. - Zaki respondeu estendo a ela uma papel amassado. - Leia.
Danielle reconheceu a caligrafia de Agamenon no instante em que viu o papel. A letra fina e descuidada denunciava a pressa e o estado emocional em que fora escrita. Geralmente, a escrita dele era caprichada, mas aquela parecia gritar seus sentimentos. Conforme lia, uma mistura de raiva e arrependimento tomou conta dela.
Ela havia desistido de Agamenon, convencendo-se de que ele nunca seria seu e que talvez fosse melhor assim. Mas nunca imaginou que abrir mão dele, pudesse coloca-lo em uma situação como aquela. A aproximação de Kira o fizera chegar naquela situação decadente, se tivesse continuado a tentar afasta-los, talvez o lorde não estivesse naquela situação. Seus olhos se viraram para o rosto contorcido de dor da rainha de Kvinner. A raiva que sentiu dela no começo voltava ao seu corpo, ela não merecia estar ao lado dele.
- Porque essa mulher ainda vive? - gritou, a voz ecoando pela sala. - Como podem deixa-la aqui?
— Acalme-se... — tentou Zaki, mas foi interrompido por Danielle, tomada pela ira.
— Não sabem se não foi ela quem o convenceu disso? Talvez ela soubesse! Já imaginaram que ela só fez isso para machucá-lo? Como podem confiar em alguém que foi nossa inimiga?
Os pensamentos dela eram um reflexo cruel dos próprios medos de Zaki. Assim como Danielle, ele odiava a ideia de que Kira pudesse ter machucado Agamenon de proposito. Mesmo que houvesse um acordo, a desconfiança fervilhava em sua mente.
— Pare de dizer bobagens! — Ayla se intrometeu, sua voz era afiada. — Ele deixou claro que era o que queria. Não jogue uma culpa sobre ela sem ter estado lá.
— Posso dizer o mesmo, Ayla. Não lance confiança infundada sem ter estado lá.
Danielle respirou fundo, tentando controlar a raiva que queimava em seu peito. Mas cada vez que olhava para Agamenon, seu corpo febril e a expressão de dor estampada em seu rosto, a indignação voltava a subir.
Zaki parecia tão dividido quanto ela, mas sua postura não deixava espaço para dúvidas: ele não iria perder o controle. Mesmo assim, havia algo nos olhos dele que Danielle reconheceu — o mesmo temor que a atormentava.
— Chega! — Ayla cortou o silêncio que se instalara, cruzando os braços com impaciência. — Ficar aqui discutindo não vai mudar o estado dele. Se vocês têm algo de útil para oferecer, façam. Se não, saiam.
- Não vou sair e deixa-lo sozinho com você, ainda mais que ela está aqui também. - Seu olhar foi direcionado a Kira, que também estava sofrendo logo ao lado. - Deveriam estar em alas separadas, é o mínimo que essa situação demanda.
- Você só sabe falar idiotices? - Ayla parecia perder a paciência. - Ela está tão mal quanto ele. Estarem juntos me ajuda a tratar os dois.
- Você pode ser uma grande feiticeira, mas convenhamos, eu sempre fui melhor em enfermaria magica do que você. - Um sorriso maldoso despontou nos lábios de Danielle. - Eu cuido do lorde e você pode se dedicar a sua querida rainha.
Ayla soltou uma risada seca, sem um pingo de humor, enquanto cruzava os braços com ainda mais força.
— Melhor em enfermaria mágica? — Ela arqueou uma sobrancelha, claramente debochada. — Ah, claro, porque isso é exatamente o que precisamos agora: seu ego inflado ditando como devemos salvar vidas.
Danielle estreitou os olhos, dando um passo à frente, mas Zaki se colocou entre as duas antes que algo mais acontecesse.
— Chega disso, as duas. — Sua voz cortou o ar como uma lâmina, firme e inegociável. — Este não é o momento para disputas mesquinhas. — Ele estava exausto, mas ainda assim manteve o tom autoritário. — Querida, Danielle tem razão ao dizer que deveríamos separá-los. Dedicar atenção exclusiva a cada um pode acelerar a recuperação. Cuide da rainha e permita que Danielle cuide de Agamenon. Não precisa admitir os dons dela nisso, apenas aceite.
- Faça como quiser. - O tom de sua voz exprimia todo seu descontentamento.
Ninguém disse mais nada. O silêncio caiu sobre eles como um véu pesado, cada um perdido em seus próprios pensamentos enquanto ajudavam a levar Agamenon para a ala da enfermaria. Danielle caminhava ao lado da maca, os olhos fixos no rosto do lorde. Cada gemido abafado ou tremor de seu corpo era como uma lâmina rasgando seu peito. Ela sentia a urgência pulsando em suas veias, um chamado inescapável para lutar por ele, mesmo que suas chances fossem escassas.
A ala da enfermaria estava vazia àquela hora, iluminada apenas pela luz suave de lâmpadas mágicas que projetavam sombras oscilantes nas paredes. Danielle tomou a dianteira, organizando os instrumentos e as ervas com mãos trêmulas, mas decididas. As lembranças de seu tempo na enfermaria surgiram como um refúgio, um lembrete de que sabia o que fazer. Enquanto molhava um pano para tentar baixar a febre dele, sussurrou para si mesma: "Vou trazê-lo de volta. Não importa o que custe."
Agamenon parecia afundar mais a cada instante. Seus gemidos diminuíram, e isso a aterrorizou mais do que quando ele gritava de dor. Danielle segurou sua mão, apertando-a com força como se sua própria energia pudesse fluir para ele. Lágrimas silenciosas escorreram por seu rosto enquanto ela se inclinava para perto, depositando um beijo de dor em sua testa.
- Ele vai ficar bem. - Ela disse para Zaki que observava as ações dela em silencio.
- Ele tem que ficar. - O nobre respondeu de forma resignada. - A magia deu certo, só teve um custo muito alto de ambos.
Danielle virou-se para a mesa de ervas, tentando ocupar as mãos para manter o foco, mas sua voz quebrou o silêncio novamente.
— Eu não entendo, Zaki. — Ela triturava as folhas com força excessiva, quase como se estivesse descarregando a própria angústia. — Por que essas memórias eram tão importantes? Por que precisavam disso ao ponto de quase morrerem?
Zaki permaneceu em silêncio por um momento, os olhos fixos no lorde desfalecido, como se as lembranças o puxassem para outro tempo. Quando finalmente falou, sua voz era carregada de um peso ancestral.
— Deve se lembrar de quando os olhos dele eram castanhos. — Ele falou com um tom quase nostálgico, como se estivesse revisitando um eco distante. — Ele herdou essa cor da mãe. Mas, da noite para o dia, ficaram azuis. Azul como os olhos de seu pai.
Danielle virou-se lentamente, a raiva e a tristeza guerreando em seu olhar.
— Os olhos dele sempre mudaram de cor — retrucou, a voz baixa e carregada de lembranças. — Castanhos nos dias comuns. Vermelhos quando estava furioso. Quando ficaram azuis... foi pelo luto. Pela perda da Lídia. - Mesmo depois de tantos anos, o nome dela ainda tinha um gosto amargo em sua boca.
Zaki assentiu, mas seus lábios franziram, como se ele guardasse algo mais profundo.
— Sim, mas houve um período... — Ele pausou, hesitando. — Um momento em que ele me confessou que algo estava corroendo a magia dele. Ele não mencionou essa mulher, não naquela época, mas os olhos... Eles trocavam de cor sem motivo aparente, como se refletissem algo quebrado dentro dele. Eu o alertei, e as palavras que eu disse... mudaram tudo.
Danielle se aproximou, deixando o remédio de lado, seus olhos fixos nele como lâminas.
— O que você disse, Zaki? — A intensidade em sua voz parecia capaz de perfurar o silêncio da enfermaria.
Ele desviou o olhar, como se as palavras o queimassem ainda hoje.
— Eu disse que... mesmo o amor pode ser uma maldição. Que o amor que dói não vale a pena ser vivido. Nem ser lembrado.
Danielle piscou, incrédula, o peito apertado.
— Zaki... Se ele estava lutando contra um feitiço... — Sua voz vacilou, e ela engoliu seco, tentando dissipar o amargor que subia pela garganta. — Você o fez desistir... aceitar a derrota.
— Sim... — O olhar de Zaki transparecia um peso insuportável. — E isso me consome. Porque, se eu tivesse prestado mais atenção... Se eu tivesse sido mais do que um treinador, mais do que um pai rígido... Se eu tivesse sido o amigo que ele precisava... ele teria se aberto comigo. Ele teria me contado sobre ela antes. Talvez tudo fosse diferente. Talvez ele não estivesse assim agora.
As palavras se quebraram em um desabafo que há muito tempo ele tentava sufocar. Lágrimas começaram a cair, não mais contidas, como uma enchente rompendo as barreiras que ele ergueu ao longo dos anos. Pela primeira vez, Zaki se permitiu sentir a dor da própria culpa, aceitar o peso de um pecado que ele nunca reconhecera plenamente até aquele momento. A culpa, tão antiga quanto a história deles, agora se derramava com uma força que o deixava vulnerável, despido de qualquer máscara de autoridade.
— Eu nunca vou me perdoar... — Zaki murmurou, sua voz quebrada pelo peso de suas próprias palavras. Ele nem percebeu quando Danielle se aproximou, até sentir seus braços o envolverem em um abraço firme e silencioso. Não era o tipo de gesto que ele esperava, mas a gentileza dela foi a única coisa que conseguiu atravessar as muralhas que ele havia erguido ao redor de si. Por um instante, o tempo pareceu parar, enquanto ele permitia que a dor finalmente transbordasse.
Danielle não disse nada, mas manteve o aperto, firme, como se aquele gesto pudesse reconstruir algo dentro dele que já havia se perdido. Seus olhos se desviaram para Agamenon, imóvel na cama, o silêncio carregado preenchendo o espaço entre os três. Ela sabia que não havia palavras capazes de apagar os erros do passado, mas às vezes o perdão não vinha de si mesmo, e sim do outro. Talvez, quando Agamenon despertasse, encontrassem juntos uma forma de cicatrizar todas as feridas, mesmo aquelas que não estavam no corpo, mas na alma.
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